Entrevista a Rose Spina
O ObservaBr entrevistou Reinaldo Guimarães, médico sanitarista, professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Foi secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (2007-2010) e vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz (2005-2006).
Nesta conversa o professor avalia o enfrentamento da pandemia no Brasil, o papel desempenhado pelo SUS e o seu reconhecimento pela sociedade. Fala ainda sobre o futuro próximo e incerto de um sistema que já nasceu em meio à adversidade. “O SUS tem de ser a prioridade entre as políticas públicas”. Descreve o complexo econômico e industrial da saúde do país, suas deficiências e possibilidades de desenvolvimento.
Qual o balanço possível de ser feito nesse um ano e meio de enfrentamento da pandemia, tendo em vista os diversos atores, profissionais da saúde, comunidade científica e governos?
Sim, um balanço intermediário é possível. No aprendizado dessa pandemia, estamos enfrentando uma situação bastante nova em relação ao que estávamos acostumados a creditar. Desde meados do século passado, com o desenvolvimento de muitos antibióticos, antibacterianos, foi construída uma visão de que estaria havendo uma inversão epidemiológica, ou seja, as doenças transmissíveis estavam diminuindo, ao menos nos países do hemisfério Norte, e as doenças crônicas não transmissíveis, como do coração e o câncer, estariam aumentando.
A pandemia da Covid-19 cristalizou, estabeleceu definitivamente, que isso não é verdade. Estamos vivendo mais do que uma inversão epidemiológica, uma adição epidemiológica, em todo o mundo. Ao lado das doenças crônicas, as doenças transmissíveis continuam a desempenhar um papel central, mesmo nos países ricos. Isso porque também vivemos uma situação de desafio climático, uma vez que houve uma alteração muito radical no meio ambiente e surgiu uma série de enfermidades transmissíveis, como é o caso da provocada pelo Sars-Cov-2. Na maior parte delas, trata-se de doenças que “saltaram” de animais para o homem.
Digo que se cristalizou porque já tínhamos suspeitas de que isso estaria acontecendo desde a pandemia de HIV, Aids, que trouxe um recrudescimento da tuberculose, houve o ebola, todas as epidemias e pandemias de gripe, que vieram de suínos e aves... No Brasil, tivemos uma série de problemas de saúde, como a febre amarela que chegou próxima das cidades, as doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, dengue, chikungunya e zika. Isso tudo já vinha se insinuando, mas a minha hipótese é que com essa pandemia se cristalizou.
Esse é o grande aprendizado em termos globais que se cristalizou: as alterações climáticas provocando mudanças que fazem com que as doenças transmissíveis passem a ter um lugar que se suspeitava há cinquenta anos que não tinham mais.
E no Brasil?
A maneira pela qual o país enfrentou essa pandemia, provavelmente, teve mais de um herói e mais de um vilão. Não há nenhuma dúvida de que o grande herói foi o Sistema Único de Saúde (SUS), com todas as dificuldades que sempre enfrentou. O SUS foi imaginado no começo dos anos 1980, inscrito na Constituição de 1988 e criado em 1990. Sua criação foi generosa, num ambiente de tratar a saúde como direito e não mercadoria, num contexto de seguridade social, no qual assistência social, previdência e saúde interagissem, mas começou a ser destruído e desbastado desde que foi promulgada a lei orgânica que regulou efetivamente o sistema em 1990.
Nessa pandemia, as adversidades se colocaram. Um exemplo concreto é que temos o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que é anterior ao SUS, mecanismos de vigilância epidemiológica muito consolidados, mas tanto um quanto outro foram profundamente atingidos. Isso porque o nosso sistema único de saúde se fundamenta numa relação harmoniosa entre as três esferas de governo, federal, estadual e municipal, e nesta pandemia o sistema estava descabeçado. A esfera federal, em vez de coordenar o enfrentamento da pandemia a partir do presidente da República, se aliou ao vírus. Esse drama acabou por gerar algo positivo: o reconhecimento do SUS por segmentos da sociedade que jamais prestaram atenção ao sistema de uma maneira positiva. Pois antes, o que nos vinha à cabeça sobre o SUS na mídia? Reportagens extensas mostrando camas nos corredores, filas, mau atendimento, ineficiência etc. Então, o SUS adquiriu um reconhecimento contra a atuação do governo federal, mas pelos entes subnacionais, estados e municípios.
Houve a fantasia do tratamento precoce, as dificuldades com relação a vacinas... Jamais tínhamos tido problemas com vacinas, pois o país tem duas instituições, o Instituto Butantan e Biomanguinhos, da Fiocruz, com tradição de décadas no desenvolvimento e na produção de vacinas para o PNI. Evidentemente existiu o fenômeno global, a demanda por vacinas muito maior do que a capacidade de produção ao menos nos primeiros tempos em que elas apareceram e uma interveniência de potências globais, EUA, China e Rússia, em uma guerra de vacinas, mas nada disso justifica o fato de o Brasil ter ficado no final da fila. O país teve uma falência completa de sua postura diplomática perante o mundo. Esse é um fenômeno político brasileiro, a aliança do presidente com o vírus.
E o que dizer do retorno à vida “normal”, aos moldes pré-pandemia, decretada por alguns estados, como por exemplo São Paulo?
Não estamos no fim da pandemia, no mundo e muito menos no Brasil. Se tomarmos o conjunto do país, há uma quantidade relativamente pequena de imunizados, os que tomaram apenas uma dose de vacina e uma grande população à espera de ser imunizada. Eu acredito que isso possa atrasar a queda mais rápida dos casos e principalmente dos óbitos.
O futuro ainda não está no horizonte. A atitude do São Paulo de acabar com o grande comitê técnico assessor montado desde o início da pandemia, com vários especialistas e técnicos, ou reduzi-lo drasticamente, ao lado de uma política de abertura, faz com que suspeitemos que a maioria dos integrantes do comitê era contrária a essa medida.
Há problemas no Rio de Janeiro também, onde ocorreu aumento significativo da variante delta, que tem uma taxa de transmissibilidade maior.
É preciso olhar para o futuro com muita cautela. Essas aberturas que olham só para a economia e não subordinam o econômico ao sanitário são perigosas.
O senhor mencionou as adversidades enfrentadas pelo SUS e mesmo assim o sistema respondeu razoavelmente bem a essa pandemia. O que dizer dos cortes orçamentários frequentes que o sistema e área da saúde vêm sofrendo ano após ano?
Talvez a principal inspiração do nosso Sistema Único de Saúde tenha sido o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, sigla em inglês), criado em 1948. Aliás, há um documentário do cineasta Ken Loach (O Espírito de 45), que mostra bem o nascimento do serviço britânico. Quando no início dos anos 1980, com Thatcher no poder e as perspectivas neoliberais, o NHS começa a ser atacado já tinha tido tempo suficiente para mostrar à população a joia que tinha em termos de política social. O Sistema Único de Saúde, não! O SUS começou a ser atacado assim que foi criado. A concepção de Seguridade Social, que unisse previdência, assistência e cuidado à saúde num todo, com financiamento global na seguridade e a divisão em partes equânimes entre os três componentes, já foi cortada no governo Sarney. Foi então que começou a se estabelecer o dito que “a Constituição de 1988 não cabe no Orçamento do Brasil”. E o SUS foi um dos principais alvos dessa afirmação tão fora de propósito.
A partir daí o SUS com oscilações de ganhos e perdas sempre viveu na adversidade. Depois de 2016 com as propostas contidas no documento “Uma ponte para o futuro”, o programa econômico do governo Temer, que geraram a Emenda 95, do teto de gastos, e com essa calamidade que é o governo Bolsonaro, o SUS sofre ainda mais. Só não foi pior porque com o orçamento emergencial, que está fora do teto, foi possível fazer o enfrentamento da pandemia com todos os problemas que mencionei. Quando esses orçamentos acabarem não sabemos como será.
Por isso, é importante que haja uma reviravolta política no país, e que em 2022 seja eleito um novo governo que tenha um olhar carinhoso para as políticas sociais, não só na saúde, mas na educação também. Estamos vivendo uma calamidade na educação também por conta da pandemia. Não sabemos qual será o impacto dessa relação de precariedade das crianças com a escola por dois anos. Mesmo quando a pandemia desaparecer ou virar uma endemia, com níveis baixos de frequência na população, haverá efeitos sanitários da pandemia por muito tempo. As consequências na saúde mental das pessoas é um deles. Não se tem dados, mas há uma escalada de quadros clinicamente depressivos. Existem também os efeitos retardados da Covid, por exemplo pessoas que ficam em fisioterapia por meses.
Tratando-se nesse caso dos efeitos em quem adquiriu a doença...
Sim, são 20 milhões. Não dimensionamos quantitativamente, mas há certeza de que a despesa com saúde em decorrência dos efeitos prolongados da pandemia aumentará muito os custos da saúde. Portanto, haverá de se ter um olhar especial para o nosso sistema público de saúde.
Além das doenças crônicas que deixaram de ser tratadas nesse período.
Sim, há pessoas que descobriram que eram diabéticas quando foram internadas por causa da Covid, ou foram a uma unidade de saúde. Outras postergaram cirurgias eletivas, o que pode piorar o quadro do paciente. Será necessário que o SUS seja extremamente reforçado, que seja mais cuidado do que tem sido em toda sua história.
Temos de ter o SUS para todos.
No que o reconhecimento ao SUS adquirido nesse período pode influenciar numa mobilização da sociedade para se ter um sistema mais forte?
Dependerá da militância pró-SUS. O SUS tem de ser a prioridade entre as políticas públicas, não apenas para os pobres, mas para todos. E para isso essa militância tem de ter presença nas decisões políticas que o país tomar em 2022. Se o país reconhece o SUS, ele tem de escolher um governo que olhe para o sistema e não que faça, por exemplo, uma emenda burra, horizontal, de teto de gastos, como se o equilíbrio fiscal pudesse se sobrepor à sobrevivência das pessoas.
Há ainda um outro aspecto. Esse reconhecimento maior adquirido na sociedade tem gerado uma tendência a reinterpretações do SUS. Há novos “amigos” do SUS. Alguns dizem que o sistema de saúde é bom, mas é ineficiente, e é preciso ter outros “arranjos” institucionais, estabelecer pontes maiores entre o SUS e a saúde suplementar, o sistema privado; que os órgãos reguladores possam regular o SUS assim como regulam os órgãos da saúde suplementar. A saúde como direito e não como mercadoria deve prevalecer.
Se tivéssemos tido alguma política federal em prol de vacinas no devido tempo, em que medida os institutos brasileiros teriam suprimido a necessidade do país?
No que diz respeito à configuração do complexo econômico e industrial da saúde, a pandemia nos possibilitou outro aprendizado. No início, quando ainda não havia vacinas, faltavam respiradores, seringas, agulhas e até máscaras. O Brasil, por meio do Butantan e da Fiocruz, não entrou na corrida do desenvolvimento científico de vacinas, como países do hemisfério Norte fizeram. Mas os dois institutos fizeram muito bem o que já era feito há décadas, acordos de transferência de tecnologia. Quando ocorreu o problema da escassez de insumos, percebemos que é necessário que o nosso complexo econômico e industrial da saúde suba o seu patamar de autossuficiência. Não é preciso ser soberano. Aliás, nenhum país tem soberania integral nesse campo. Todos dependem das cadeias produtivas globais. Mas é necessário que dependamos menos delas.
Isso tem muito a ver também com a ampliação das indústrias capazes de fabricar medicamentos e vacinas no Brasil. Temos uma boa indústria farmacêutica brasileira, mas ainda é muito pautada em medicamentos genéricos, sem patente. É preciso entrar na produção de medicamentos inovadores. Da mesma forma em relação a vacina. Butantan e Biomanguinhos têm de ser preservados, desenvolvidos, apoiados, mas precisamos de mais fabricantes de vacinas.
Precisamos fomentar pesquisas. Há vários grupos que têm protótipos de vacinas desde o início da pandemia, mas é preciso uma política de ciência e tecnologia. Esse é outro lado da questão: precisamos de invenção.
Hoje temos protótipos de respiradores sendo fabricados no Brasil, mas antes não eram. A necessidade da pandemia impulsionou esse desenvolvimento. Enfim, esse complexo precisa de uma política industrial sólida.
Relacionado a isso também não está questão das patentes?
Um ponto que não pode ser negligenciado é a nossa política de propriedade intelectual. Em 1994, quando foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC), estabelece-se um acordo internacional para assegurar os direitos de propriedade intelectual (Trips), que harmonizou as regras relativas a patentes e outros tipos de propriedade intelectual de acordo com os interesses dos países detentores de patentes e foi assinado pelo Brasil. Por pressão dos países em desenvolvimento, esse acordo incluiu alguns dispositivos no sentido de permitir um prazo maior para a adesão para que os países se adaptassem às novas regras – até dez anos. Por exemplo, o Brasil não reconhecia até então patentes de medicamentos. A índia só aderiu ao Trips em 2004.
No entanto, no Brasil em 1996, no auge da perspectiva neoliberal, da globalização, no governo Fernando Henrique, foi instituída uma nova lei inteiramente enquadrada pelos critérios do Trips, que não somente respeitava as patentes de medicamentos como ia além. Constava por exemplo um dispositivo de que o período que o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) usasse para examinar uma patente seria descontado dos 20 anos (tempo de proteção de determinada patente), o que na prática aumentava o prazo de proteção. Mas há cerca de dois meses o STF felizmente estabeleceu que se tratava de matéria inconstitucional.
Então, a indústria farmacêutica brasileira que não reconhecia patentes foi obrigada a reconhecê-las, encontrando uma saída somente a partir do ano 2000 com a política de genéricos (medicamentos não protegidos por patentes).
A dinâmica tecnológica na área da saúde é muito acelerada e o país ficou na situação de não poder produzir localmente medicamentos mais inovadores, por estarem protegidos por patentes.
Outro aspecto diz respeito ao licenciamento compulsório, conhecido como “quebra de patente”. Ou seja, a patente continua com seu proprietário, mas ele é obrigado a fornecer a tecnologia, como faz etc. Essa medida já está incluída na lei brasileira, pois em 2002 Índia e África do Sul pressionaram a OMC e conseguiram que fossem instituídas flexibilidades no Trips para a área da saúde. O Brasil teve papel importante nessa decisão, conhecida como Rodada Doha, no Catar, sob a liderança de Celso Amorim, que viria a ser ministro do governo Lula.
Embora esse dispositivo, tal qual foi incluído na lei brasileira, tem um rito para ser aplicado, que em situação de pandemia, emergência sanitária, pode ser longo. Recentemente a Câmara e o Senado aprovaram projeto de lei do senador Paulo Paim (PT-RS), que simplifica esse rito, mas foi sancionado pelo presidente com vetos, que retiram parte de sua eficácia.