Por Robert Skidelsky para o The Project Syndicate
Tradução: Rafael Tatemoto
Ninguém admite que a política fiscal está dirigindo a política monetária no Reino Unido, e não apenas para manter a percepção de independência do Banco Central. Mais fundamentalmente, admitir que o Banco da Inglaterra é um agente do Tesouro destruiria o edifício intelectual da teoria macroeconômica atual.
Desde março de 2020, o Banco da Inglaterra (BOE, sigla em inglês) comprou £ 450 bilhões (US$ 639 bilhões) em dívidas do governo do Reino Unido por meio de sua chamada Asset Purchase Facility. Praticamente tudo isso foi uma nova dívida emitida pelo governo desde o início da crise da COVID-19. As compras do BOE parecem uma tentativa velada de usar a flexibilização quantitativa (QE, em inglês) para financiar o déficit do governo e garantir baixos custos de empréstimos. Isso ainda é política monetária ou o banco central está conduzindo a política fiscal pela porta dos fundos?
O BOE afirma que não há conexão entre as políticas monetária e fiscal, e que suas compras de ativos visam apenas cumprir sua meta de inflação de 2%. O fato de o valor das compras de ativos do banco desde março de 2020 coincidir com o déficit do governo no mesmo período não seria mais do que uma coincidência. Afirmar o contrário - que o BOE está se envolvendo no financiamento monetário clandestino do déficit - cheira a teoria da conspiração.
Além disso, os defensores do banco central dizem que mesmo um mera sugestão de que a quantidade de QE era qualquer coisa diferente do necessário para atingir a meta de inflação do BOE danificaria as credenciais anti-inflacionárias do banco. Como o BOE poderia atuar como um agente do governo e manter sua credibilidade como um controle sobre os gastos excessivos do governo? O BOE não faz política fiscal, ponto final: isso é privilégio do Tesouro.
É fácil ver como entramos nesta sala de espelhos. Os bancos centrais são propriedade dos governos e, até recentemente, eram considerados braços operacionais dos tesouros nacionais. Então, na década de 1980, surgiu uma nova ortodoxia apontando que o endividamento excessivo do governo era a principal causa da inflação. Assim, na década de 1990, os bancos centrais receberam metas de inflação e o controle das taxas de juros para cumpri-las, enquanto os governos tiveram que equilibrar suas contas cortando gastos.
Isso transferiu o controle macroeconômico dos governos para os bancos centrais. Se o governo e o setor privado estivessem gastando mais do que ganham, o banco central aumentaria sua taxa de juros básica para tornar os “gastos em excesso” mais caros para ambos. E até o crash de 2008-09, muitos elogiaram esse regime por seu sucesso em manter a inflação estável e baixa, em contraste com os excessos inflacionários da era keynesiana anterior. Mas essa análise excluiu outros fatores, muito mais importantes, que mantinham os preços baixos, como o aumento da concorrência de fabricantes chineses com baixos custos.
A Grande Recessão de 2008-09 levou a uma inversão de papéis sem uma inversão de linguagem. A política monetária tornou-se expansionista, enquanto a política fiscal tornou-se contracionista. Com a política de taxas de juros desativada pelo “limite zero”, os bancos centrais recorreram a “medidas monetárias não convencionais” - na verdade, imprimir dinheiro - para gerar recuperação. Ao mesmo tempo, os governos reduziram os gastos, a ferramenta tradicional usada para combater as recessões, sob o argumento de que eram inflacionários. O resultado foi uma das recuperações mais fracas da história.
Na esteira da desaceleração econômica induzida pela pandemia, as políticas fiscais e monetárias foram, finalmente, expansionistas. Mas o fato de que a política do Tesouro agora está conduzindo a política monetária não pode ser admitido, e não apenas porque isso desafiaria a percepção de independência do banco central. Mais fundamentalmente, qualquer admissão de que a política monetária por si só é virtualmente impotente para estabilizar as economias destruiria o edifício intelectual que sustenta a teoria atual de política macroeconômica.
Tal edifício remonta à desastrosa reformulação da teoria quantitativa da moeda em 1956 por Milton Friedman. Desde então, a maioria dos economistas bem treinados passou a acreditar que as economias de mercado são naturalmente estáveis no pleno emprego, desde que os formuladores de políticas mantenham o nível de preços estável, porque a incerteza sobre a inflação futura introduz um elemento crucial de dúvida nas decisões das empresas privadas. Portanto, os bancos centrais independentes devem receber o controle da emissão de dinheiro e os governos devem equilibrar seus orçamentos, reduzindo assim a política macroeconômica à administração do nível de preços.
A iteração de Friedman da teoria quantitativa do dinheiro dependia crucialmente da suposição aparentemente inócua e empiricamente não verificada de "uma demanda estável por saldos monetários". Foi a proporção previsível entre poupança e gastos que deu ao banco central o controle sobre o nível de preços. Ao variar a quantidade de dinheiro que tornava disponível ao público, o banco central poderia atingir o nível de preços que desejasse e, assim, simultaneamente, garantir que a economia não superaquecesse ou subaquecesse.
Mas Friedman ignorou o que John Maynard Keynes chamou de "demanda especulativa por dinheiro", que o economista britânico Ralph Hawtrey identificou sucintamente em 1925. "Quando o comércio está lento, os comerciantes acumulam saldos de caixa porque as perspectivas de lucro de qualquer empresa são mínimas, e a taxa de [retorno] de qualquer investimento é baixa ”, disse Hawtrey. “Quando o comércio está ativo, um saldo ocioso é uma perda mais séria, e os comerciantes se apressam em usar todos os seus recursos em seus negócios”.
Isso significa que o estado da economia determina a quantidade de dinheiro em circulação, e não o inverso. A incerteza sobre a inflação futura é apenas um dos muitos fatores que afetam as decisões de negócios, que refletem as expectativas das empresas de haver "clientes na porta". A capacidade de um banco central de controlar o nível de preços e o nível de atividade econômica por meio de operações puramente monetárias é, portanto, muito limitada.
O resultado final é que, para que o dinheiro afete a economia de maneira previsível, ele deve ser gasto de maneira previsível. E isso só pode acontecer se o gastador for o governo. A eficácia da política monetária depende, portanto, de o banco central ser o agente do Tesouro. Mas ninguém pode admitir isso, porque o Tesouro é perverso e o banco central é virtuoso. Portanto, a linguagem oficial da política macroeconômica continua sendo a as política monetária. Qualquer correlação com a política fiscal é, obviamente, mera coincidência.