Biden precisa consertar o futuro, não o passado

Autor: Dani Rodrik

Tradução: Rafael L. Tatemoto

Link original: https://www.project-syndicate.org/commentary/biden-infrastructure-plan-potentially-transformative-by-dani-rodrik-2021-04

O plano de infraestrutura de US$ 2 trilhões do presidente Joe Biden provavelmente será um divisor de águas para a economia estadunidense, apontando claramente que o período neoliberal, com sua crença de que os mercados funcionam melhor deixados por conta própria, ficou para trás. Entretanto, embora o neoliberalismo possa estar morto, ainda não é evidente o que virá em seu lugar.

Os desafios que os Estados Unidos e outras economias desenvolvidas enfrentam atualmente são fundamentalmente distintos daqueles que encararam nas primeiras décadas do século 20. Esses desafios anteriores deram origem ao New Deal e ao estado de bem-estar social. Os problemas atuais – mudanças climáticas, desarticulação dos mercados de trabalho devido às novas tecnologias e hiper globalização – exigem novas soluções. Precisamos de uma nova visão econômica, não da nostalgia por uma era mitificada pela prosperidade amplamente compartilhada em nosso país e de supremacia global sobre o resto do mundo.

Em relação à mudança climática, o plano Biden fica aquém do New Deal Verde defendido por democratas progressistas, como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez. Mas contém investimentos significativos no sentido de uma economia verde, como o apoio a mercados de veículos elétricos e outros programas que miram a redução das emissões de dióxido de carbono, tornando-se o maior esforço federal já empreendido para reduzir os gases de efeito estufa. Na questão laboral, o plano visa ampliar a oferta de empregos com boa remuneração e benefícios, com ênfase, além da infraestrutura, na manufatura e na crescente economia de cuidados essenciais.

Novas formas de pensar o papel do governo são tão importantes quanto as novas prioridades. Muitos analistas viram o plano de infraestrutura de Biden como um retorno ao grande governo. Entretanto, o pacote que está programado para durar oito anos aumentará os gastos públicos em apenas um ponto percentual do PIB e as previsões são de que, ao final, ele se pague. Há muito, já deveria ter ocorrido um impulso no investimento público em infraestrutura, na transição verde e na criação de empregos. Mesmo 2ue o plano não fosse nada mais do que uma grande injeção de investimento público financiado por impostos sobre grandes corporações, ele já seria muito bom para a economia dos Estados Unidos.

Mas o plano de Biden pode ser muito mais. Poderia reformular profundamente o papel do Estado na economia e como esse papel é percebido. O ceticismo tradicional sobre o papel econômico do governo está calcado na crença de que os mercados privados, movidos pelo lucro, são eficientes, enquanto os governos gastam demais. Mas os excessos dos mercados privados nas últimas décadas – o aumento dos monopólios, as loucuras das finanças privadas, a extrema concentração de renda e o aumento da insegurança econômica – tiraram o brilho do setor privado.

Paralelamente, atualmente compreende-se melhor que, em uma economia complexa caracterizada por tantas incertezas, é improvável que a regulamentação de cima para baixo funcione. Independentemente da área específica – promoção de tecnologias verdes, desenvolvimento de novos arranjos institucionais para trabalhadores em cuidados domiciliares, aprofundamento das cadeias internas de suprimentos para desenvolvimento de alta tecnologia ou construção de bem-sucedidos programas de desenvolvimento da força de trabalho – a colaboração do governo com atores não governamentais será essencial.

Em todas essas áreas, o governo terá que trabalhar com os mercados e empresas privados, bem como outras partes interessadas, como sindicatos e grupos comunitários. Novos modelos de governança serão necessários para garantir que os objetivos públicos sejam atingidos com a plena participação dos envolvidos que têm o conhecimento e a capacidade para atingi-los. O governo terá que se tornar um parceiro confiável, assim como terá que confiar em outros atores sociais por sua vez.

No passado, cada oscilação excessiva no equilíbrio entre mercado e Estado acabou gerando uma oscilação excessiva na direção oposta. O plano Biden pode quebrar esse ciclo. Se for bem sucedido, o exemplo que dará de mercados e governos atuando como elementos complementares, não substitutos – demonstrando que cada um funciona melhor quando o outro faz sua parte – pode ser seu legado mais importante e perene.

Assim, é inútil ver o plano Biden como uma forma de restaurar a posição competitiva dos Estados Unidos no mundo, especialmente em relação à China. Infelizmente, o próprio Biden é culpado por essa concepção. O pacote “nos colocará em posição de vencer a competição global com a China nos próximos anos”, disse ele recentemente.

Pode ser politicamente tentador divulgar o plano de infraestrutura dessa maneira. Em um momento anterior, o medo prevalecente de que os EUA estivessem perdendo sua vantagem para a União Soviética em relação aos mísseis balísticos e à corrida espacial ajudou a catalisar uma mobilização tecnológica nacional.

Mas atualmente há muito menos motivos para alimentar o medo. É improvável que se obtenha muito apoio dos republicanos para o plano, dada a intensidade da polarização partidária. O medo tambám desvia a atenção da questão real: se o plano aumentar a renda e as oportunidades para os cidadãos comuns dos EUA, como deveria, terá valido a pena, independentemente dos efeitos sobre o status geopolítico do país.

Ademais, a economia é diferente de uma corrida armamentista. Uma economia estadunidense forte não deve ser uma ameaça para a China, assim como o crescimento econômico chinês não precisa ameaçar os Estados Unidos. A concepção de Biden é prejudicial na medida em que transforma a boa economia doméstica em um instrumento de uma política exterior agressiva de soma zero. Podemos culpar a China se ela aumentar as restrições às corporações dos EUA como uma medida defensiva contra o plano de Biden?

O plano pode transformar os EUA e dar um importante exemplo a ser seguido por outros países desenvolvidos. Mas, para atingir seu potencial, deve evitar dicotomias enganosas entre Estado e mercado e desatualizadas metáforas sobre a Guerra Fria. Apenas superando os modelos do passado ele pode traçar uma nova visão para o futuro.