Guilherme C. Delgado
A produção legislativa dos arautos do agronegócio no Congresso e no Executivo tem sido pródiga nos últimos tempos, perseguindo benefícios privados de toda ordem aos proprietários de terras; muito embora com alta probabilidade de criar problemas de várias modalidades para sociedade, economia e natureza. Exemplos típicos do que estamos falando são duas leis editadas em intervalo de 12 meses – Lei 13.986, de 7/2/2020 (Lei do Agro, sobre fracionamento de hipotecas nas operações de crédito rural); e Lei 14.130, de 29/03/2021 (Lei do FIAGRO, sobre constituição de condomínios imobiliários rurais.
Essas duas normas legais em vigor se complementam na seguinte tarefa: a) fracionar garantias reais na emissão de títulos de dívida rural (Cédula do Produtor Rural – CPR, Cédula Imobiliária Rural –CIR, Títulos do Agronegócio etc.), mantidos rodos os subsídios fiscais e financeiros pré-existentes, por um lado – (Lei do Agro); e b) constituir condomínios ou consórcios imobiliários detentores desses títulos e de outras aplicações imobiliárias, incluindo os "investimentos" do capital estrangeiro, por outro ( Lei do Fiagro). Tais aplicações constituem um fundo patrimonial com pretensão de oferecer rendimentos muito atrativos aos seus aplicadores, detentores de quotas ou certificados de participação a quem aportou títulos de imóveis rurais nestes Fundos (FIAGRO).
Por sua vez, a base documental que se requer para legalização do imóvel rural respectivo, oferecido como garantia real na emissão dos títulos de crédito – CPR, CIR, e vários outros títulos, é tão somente sua inscrição no Cadastro de Imóveis Rurais do INCRA, auto declaratório e adimplente com o pagamento do ITR. Não há exigência de registros cartoriais desses imóveis, com respectivo georeferenciamento, algo que melhoraria a certificação, se esse método - o georeferenciamento-, fosse funcional e factível à tal pretensão do fracionamento.
As duas iniciativas – Lei do AGRO e do FIAGRO– vêm sendo vendidas ao senso comum como se cumprissem finalidades que não têm: 1) retirar a dependência do Sistema Nacional de Crédito Rural do fundos públicos (Lei do Agro); e 2)- constituir uma instância financeira nova – os Condomínios Rurais, como espécie de instituição mágica de valorização imobiliária, financiamento rural e circulação de direitos de propriedade (frações de hipoteca) à escala internacional (Lei do FIAGRO).
Observe-se que os Condomínios Rurais constituídos sob a égide da Lei do FIAGRO obtêm rendimentos realizando arrendamentos e vendas lucrativas dos seus imóveis, como também pela valorização autônoma dos preços desses imóveis. As valorizações desses rendimentos irão se refletir no preço unitário das quotas ou certificados de participação no Fundo respectivo, que no caso de “Condomínios Abertos” estarão desimpedidos ao ingresso de quaisquer capitais internos ou externos.
Tudo que apresentamos até agora são, para utilizar uma expressão popular, as rigorosas descrições dos gatos que as respectivas leis prometem criar. Vejamos então àquilo que elas efetivamente podem entregar.
É importante em primeiro lugar esclarecer uma distinção básica – o chamado Fundo de Investimento para o Setor Agropecuário (FIAGRO), não é fundo de crédito nem de investimento (aquisição de bens de capital produzidos). Tampouco financia demandas rurais, seja investimento, custeio ou comercialização, de forma substitutiva ao crédito bancário (crédito rural). Sua função (dos FIAGRO) é de gestão e valorização de ativos fundiários, postos como garantia real aos títulos de dívida emitidos por proprietários rurais (CPR, CIR, Títulos do Agronegócio etc), que no caso não estão demandando dinheiro de crédito, mas quotas de participação em um fundo especulativo. De posse dessas quotas, seus detentores podem até se dirigir ao banco provedor de crédito rural e realizar uma operação de crédito, oferecendo essa quota ou certificado como garantia, cuja aceitação do banco respectivo dependerá da credibilidade do respectivo fundo e das próprias condições do ciclo imobiliário.
Por outro lado, como vimos anteriormente, todas as formas de valorização do patrimônio do FIAGRO dependem da evolução dos preços dos imóveis que detêm. E como é sabido, os preços dos imóveis, na versão dos mercados, movimentam-se em ciclos de valorização e desvalorização, fortemente guiados pela evolução dos preços da ‘commodities’. Daí que, desvalorização cíclicas das ‘commodities’ funcionariam no caso, como desvalorização do patrimônio do Fundo e dos seus respectivos certificados de participação, a menos de intervenções extra mercantis de salvação financeira.
Ademais, é preciso alertar para os aspectos das relações com o setor externo da economia, que estão até certo ponto escondidos na combinação dessas duas leis. A financeirização do mercado de terras, com pretensão de envolver também o mercado de crédito rural, na hipótese de contar com participação expressiva do capital estrangeiro, criaria de fato um problema do passivo externo correspondente a essa participação, sem investimento real em termos macroeconômicos, mas com apreciável elevação do déficit de Serviços na Conta Corrente do Balanço de Pagamentos. E como já existe um déficit remanescente dessa conta muito elevado desde 2014, tal situação tenderia a se agravar à proporção do eventual sucesso externo dos FIAGRO.
Por outro lado, toda e qualquer pendência judiciária em assuntos relativos aos FIAGRO, no caso dos Condomínios Abertos com participação de capital estrangeiro, envolvendo eventuais demandas desse capital, recorreria à jurisdição dos tribunais internacionais de origem desses “investimentos fundiários”, nos termos dos acordos bilaterais ou multilaterais de investimento assinados pelo Brasil.
Por último, cabe uma pergunta de sentido, com seus desdobramentos. Qual a legitimidade dos direitos de propriedade que estão sendo transacionados nesses Fundos, se não há certificação de que são legítimos esses direitos, ou seja, de que as terras aí envolvidas cumprem a função social e ambiental (Art. 186 da CF) ou de outros regimes fundiários constitucionais de domínio público (terras étnicas – Art. 231 e Terras de Parques e Reservas – Art. 225 e Terra Devolutas –Art. 20).
Do exposto, depreende-se da combinação arquitetadas das referidas Leis (do AGRO e do FIAGRO), consequências prováveis a vários ônus socioeconômicos – novos passivos externos, perda de soberania, grilagem de terras públicas e potenciais crises financeiras na fase de declínio dos preços das terras, se o sistema bancário entrar no arranjo legal arquitetado.
Os benefícios da iniciativa estão todos remetidos à especulação privada dos imóveis rurais, para a venda da ideia fantasiosa da “cadeia da felicidade” perpétua da renda fundiária ascendente.
Guilherme C. Delgado é economista, IPEA e membro do NAPP Agrícola e Agrário