Mariana Mazzucato[1]

Tradução de Wilson Jr. Original disponível aqui.

Boris Johnson atribuiu o sucesso da vacina no Reino Unido ao “capitalismo” e à “ganância”. Embora essas observações tenham sido rudes, se as palavras do primeiro-ministro são qualquer indicação de sua visão de como o Reino Unido pode se recuperar da pandemia, há implicações preocupantes para as políticas do país em casa e no exterior.

Esta não é a primeira vez que Johnson tirou lições econômicas erradas da crise da Covid. Há alguns meses ele disse com o mesmo espírito que para “os de esquerda, que pensam que tudo pode ser financiado pelo Tio Açúcar [Uncle Sugar é uma combinação de Uncle Sam e Sugar Daddy, para se referir à generosidade do governo federal dos Estados Unidos em conceder dinheiro e benefícios aos cidadãos], o contribuinte ... chega um momento em que o Estado deve recuar e deixar o setor privado fazer isso”.

Johnson não é a primeira pessoa a ver as vacinas como um golpe do setor privado. Vale lembrar que a vacina “AstraZeneca” foi criada por cientistas da Universidade de Oxford e desenvolvida e distribuída pela gigante farmacêutica. Ainda assim, o setor privado emergiu como o vencedor na celebração pública das vacinas contra Covid.

Na verdade, uma quantidade sem precedentes de financiamento público foi aplicada na pesquisa, desenvolvimento e fabricação de vacinas. As seis vacinas candidatas principais receberam cerca de US$ 12 bilhões de dinheiro público, dos contribuintes, incluindo a injeção de US$ 1,7 bilhão para a vacina Oxford/AstraZeneca e US$ 2,5 bilhões para a candidata Pfizer/BioNTech.

Esse nível de investimento representa um risco enorme - mas não é o único risco que o setor público assumiu. Os governos usaram “compromissos avançados de mercado” [AMCs, na sigla em inglês] para garantir que as empresas privadas que produziram com sucesso uma vacina contra Covid-19 sejam amplamente recompensadas com grandes pedidos.

Os fundos públicos gastos em pesquisa e desenvolvimento costumam ser mais empreendedores - no sentido de que os governos estão investindo nos estágios iniciais e mais arriscados da inovação em saúde, antes que qualquer mercado seja viável. Essa é parte da razão pela qual as empresas conseguiram desenvolver uma vacina contra Covid em tempo recorde.

Como um novo relatório do Conselho de Estratégia Industrial do Reino Unido deixa claro, a rápida obtenção das vacinas contra Covid-19 teria sido impensável sem o envolvimento do Estado. A coordenação governamental eficaz e “orientada por missão” - de política industrial a investimentos em ciências biológicas, compras públicas estratégicas e parcerias público-privadas - tem sido a chave para a história de sucesso das vacinas contra Covid-19.

Mas há uma advertência importante nesta narrativa. Apesar da consciência do governo da força do Reino Unido no setor de ciências da vida e de sua intenção de impulsioná-lo por meio de dois novos acordos setoriais, a capacidade do Reino Unido de fabricar doses suficientes está longe de ser garantida.

O fracasso de longo prazo da Grã-Bretanha em apoiar sua base de manufatura doméstica se reflete nas recentes disputas entre a UE e o Reino Unido sobre o fornecimento da vacina Oxford/AstraZeneca. Antes da crise, o Reino Unido estava desinteressado em investir em uma base industrial onshore para a produção em massa de vacinas e outros produtos de ciências biológicas. Se os ministros tivessem elaborado um plano para investir nas fábricas de vacinas britânicas antes da pandemia do coronavírus, eles provavelmente teriam recebido uma recepção menos entusiasmada.

Esse é o benefício da visão de retrovisor [hindsight]. No entanto, o retrospecto também mostra porque uma estratégia industrial de longo prazo voltada para o futuro, que invista na produtividade e no crescimento econômico e, ao mesmo tempo, vise desafios mais amplos, como a crise climática e futuras pandemias, é vital.

Ao invés de ver o presente como o momento de colocar em marcha um plano dessa natureza, Johnson está pedindo tempo para uma estratégia industrial sensata. O fim do Conselho de Estratégia Industrial, recentemente anunciado, não é um bom presságio para a compreensão de seus valiosos insights.

Embora o governo tenha se comprometido a dobrar as despesas públicas de P&D do Reino Unido para £22 bilhões por ano até 2024-25, ele está propondo cortes no orçamento do UK Research and Innovation (UKRI), com  o financiamento para projetos de desenvolvimento internacional reduzido pela metade.

Se isso prejudicar a infraestrutura que foi fundamental para o sucesso da vacina no Reino Unido, como parece provável, a recém-fundada Advanced Research and Invention Agency [Agência de Invenções e Pesquisa Avançada, ARIA na sigla em inglês]ria) estatal poderia correr o risco de se tornar uma distração cara. Nos Estados Unidos, o modelo da Advanced Research Projects Agency [Agência de Projetos de Pesquisa Avançada, ARPA], na qual a ARIA se inspira, tem sido um grande sucesso justamente por estar localizada dentro de uma infraestrutura de pesquisa vibrante e descentralizada, respaldada por investimentos públicos em ciência, que o governo Biden está planejando impulsionar.

O fato de esses cortes nas pesquisas do Reino Unido estarem ocorrendo durante uma pandemia global envia uma mensagem preocupante sobre as prioridades de Johnson. Quando ele falou sobre ganância, ele identificou o que há de errado com o sistema - não o que merece elogios. Sozinha, uma vacina não será suficiente para parar o coronavírus em seu caminho, e o Reino Unido não estará a salvo da Covid-19 até que a maioria da população mundial tenha sido vacinada. É extremamente difícil ver como a ganância ajudará a garantir que a vacina seja disponibilizada para todas as pessoas, em todos os países, gratuitamente.

Encarar o monopólio das empresas farmacêuticas sobre a ciência, know-how e tecnologia, e compartilhar isso com o maior número possível de países, será essencial para expandir e descentralizar a fabricação de vacinas em todo o mundo. A Organização Mundial da Saúde estabeleceu um pool voluntário de acesso à tecnologia Covid-19 (C-Tap) para permitir que governos e empresas façam exatamente isso.

Além disso, a África do Sul e a Índia apresentaram uma proposta à OMS, com o apoio de mais de 100 países, para renunciar temporariamente aos direitos de propriedade intelectual para tecnologias relacionadas à Covid. Uma pesquisa recente descobriu que 74% das pessoas no Reino Unido apoiam essas posições. Em resposta, o governo ignorou o C-Tap e bloqueou a renúncia temporária à propriedade intelectual.

Quando a ganância é a filosofia orientadora do governo, a “vacina do apartheid” é quase garantida. Até agora 56% das mais de 455 milhões de doses da vacina foram para pessoas em países de alta renda e apenas 0,1% foram administradas nos 29 países de renda mais baixa. A Covax, que visa vacinar até 27% da população em 92 dos países mais pobres, provavelmente não será suficiente por si só.

Tendo se saído bem com seu próprio programa de vacinas, o Reino Unido agora deveria estar em uma posição robusta para ajudar a fornecer uma vacina popular para o mundo. A promessa do governo do Reino Unido de doar vacinas excedentes é um começo, mas está longe de ser suficiente.

O que é necessário é uma liderança forte e esperança. No entanto, em vez disso, o primeiro-ministro parece ter a visão anacrônica e contraproducente de que o capitalismo e a ganância são o que vacinarão o mundo e ajudarão a reconstruí-lo após a pandemia.

[1] Mariana Mazzucato é professora de economia da inovação e valor público no University College London e diretora fundadora do Institute for Innovation and Public Purpose (IIPP) da UCL. Seu último livro é Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism