Entrevista a Isaías Dalle

“Nós estamos falando em tributar de forma mais que proporcional aquela parcela da população que tem uma renda altíssima, e tributar aquele que tem um patrimônio muito alto. Não vamos tributar a sua casinha gente, nós estamos falando em quem tem patrimônio de R$ 10 milhões, R$ 15 milhões, quem ganha R$ 80 mil por mês, e mesmo assim nós queremos tributar isso de forma progressiva”, comenta a ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome Tereza Campello, economista e doutora em Saúde Pública.

Ela se refere à proposta de criação do imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição e proposto pelo Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, elaborado pela Fundação Perseu Abramo para subsidiar as ações do PT no próximo período. Na avaliação dos formuladores do plano, esse imposto será crucial para subsidiar a reconstrução econômica e social do Brasil no pós-pandemia.

“Classe média no Brasil, quando a gente fala em rico, acha que a gente está falando dela. Gente, nós não estamos falando de vocês”, garante Tereza, atualmente professora visitante da Faculdade de Saúde Pública da USP e integrante do Centro de Altos Estudos da Fundação Perseu Abramo e do NAPP (Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas) Desenvolvimento Social.

Nesta entrevista, Tereza também critica duramente a condução do país durante a pandemia pelo atual governo, atribui a volta da fome no país a um conjunto de fatores em que se sobressaem a sanha de lucro dos produtores e a falta de políticas públicas e denuncia a PEC 186 – falsamente intitulada de PEC Emergencial, na opinião dela – como “golpe”.

“Eles estão na verdade tirando vantagem da pandemia, se aproveitando da pandemia para acelerar uma agenda de destruição do Estado brasileiro e da destruição dos direitos do povo”, ataca Tereza, recém-chegada de uma temporada de estudos e pesquisas na Universidade de Nottingham, na Inglaterra, onde não perdeu a oportunidade de visitar a floresta de Sherwood, lar de Robin Hood, mítico arqueiro que tirava dos ricos para dar aos pobres.

Tereza Campello vai falar conosco sobre as propostas emergenciais do Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil para a área social. É uma área que tem conexão com todas as demais, não é mesmo, Tereza? Seja bem-vinda.

Obrigada, é uma oportunidade excelente de a gente poder voltar a falar do nosso plano. Talvez a primeira grande questão a lembrar é que o Plano se organiza tanto pensando em medidas emergenciais – o que tínhamos que estar fazendo desde o início de 2020, principalmente depois que a pandemia chegou ao país em março, o que a gente chamava de medidas emergenciais – como ele traz um conjunto de medidas para a saída da situação emergencial, considerando que agente não quer voltar para o que as pessoas começaram a chamar de novo normal. Nós não queremos um novo normal, nós queremos avançar em um conjunto de políticas públicas que permitam que o Brasil possa transitar para um modelo de desenvolvimento econômico justo, sustentável e inclusivo. Sustentável do ponto de vista ambiental. A gente organizou o plano, que contou com mais de 600 pessoas, multissetorial, intersetorial, envolvendo atores das mais diversas profissões, áreas de conhecimento, ativistas, movimento social, pensando nisso: como enfrentar a crise sanitária, econômica, social e política que o Brasil está vivendo, e como construir, a partir inclusive dessas medidas emergenciais, uma saída pós-Covid. Apesar de termos construído o plano em julho, agosto, setembro do ano passado, o plano continua muito atual, infelizmente. O Brasil está numa situação pior do que estava em março do ano passado, quando começamos a pensar o nosso plano. Se esse bloco de medidas estivesse sendo implementado desde março do ano passado, certamente hoje a gente estaria numa outra situação.

Em março do ano passado, quando a gente começou a brigar pelo auxílio emergencial, o Brasil tinha 12 milhões de desempregados. E os últimos dados que nós temos dão conta de que hoje no Brasil nós temos mais de 14 milhões de desempregados – isso que o IBGE chama de desemprego aberto. Antes, a gente tinha uma parcela da população que estava trabalhando, deixou de trabalhar e sequer está procurando emprego. Porque empregos não existem ou porque essa parcela está com medo de se contaminar, é parte do grupo de risco ou mora com familiares que são do grupo de risco. O último dado que nós temos, que é de novembro, dava conta que existem 14 milhões de desempregados no Brasil, mais 24 milhões de adultos que gostariam de trabalhar, que estariam trabalhando se pudessem. Então a situação é gravíssima.

A primeira coisa que a gente propunha já desde março do ano passado era um seguro de renda, que no Brasil começou a se chamar de auxílio emergencial. Essa proposta saiu do PT. Outros setores da sociedade também passaram a defender o auxílio emergencial, mas nós fomos os primeiros. E o governo na época dizia que não era necessário, que a pandemia ia passar rápido. Depois ele começou a dizer "tudo bem, vamos fazer, mas de 200 reais". Diga-se de passagem, era o que o Guedes defendia para o Bolsa Família, a gente dizia que era necessário atualizar o valor e ele dizia que ia passar para R$ 200. Então ele sempre propôs isso. Já em março a gente já propunha um salário-mínimo. Eles diziam que não precisava de nada. Depois, quando o Congresso ameaçou aprovar, com o apoio das oposições e da sociedade civil organizada, aí o governo aceitou a ideia e passou a implementar os R$ 600. Que bom, se não o país teria colapsado já desde abril do ano passado. Então a primeira medida que já está no Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil era a ideia do auxílio emergencial, que desde aquela ocasião agente defendia que fosse enquanto durasse a pandemia. A pandemia até hoje não terminou. Para você ver como era correta nossa formação, porque essa pandemia você sabia quando começou, mas não sabe quando vai terminar. Talvez a gente até tivesse saído da situação dramática de altíssima mortalidade se esse conjunto de medidas tivesse sido adotado.

Se eles tivessem prorrogado o auxílio emergencial em dezembro, nem precisaria de emenda constitucional. É importante a gente lembrar disso: que em dezembro eles poderiam ter prorrogado o decreto, não precisava de emenda constitucional. Isso é a maior prova de que o que eles fizeram agora com essa PEC 186 tem nome: chama-se golpe.

Eu acho que não foi por acaso que eles não tenham prorrogado o decreto. Eles pensavam mesmo numa emenda constitucional para poder associar isso com outras coisas, numa manobra que você chama de golpe.

Inclusive porque na verdade a PEC não trata do auxílio emergencial, trata de um conjunto de coisas e o auxílio emergencial é uma azeitoninha lá no empadão indigesto e venenoso. Na época a gente exigia quatro grandes blocos de medidas. O auxílio emergencial, cuja ideia era garantir a vida e a sobrevivência, fora medidas de saúde que eu nem vou tocar, você deve estar certamente fazendo matérias com o nosso pessoal da saúde. Mas nessa área de garantir que as pessoas sobrevivam, tenham dinheiro para comer, pagar luz, pagar energia, pagar gás e o aluguel, era o auxílio emergencial.

E o emprego já, que que colocava a necessidade de que o Estado gerasse, se organizasse para ser ele o empregador, gerando pelo menos 5 milhões de empregos, uma parte deles inclusive empregos vinculados à própria pandemia. Uma coisa que o governo poderia ter feito, a gente durante a pandemia viu muita gente nas comunidades, nas favelas, no Brasil, se solidarizando, gente que sabia que o idoso não tinha como ir ao supermercado e se dispõe a ir ao supermercado e ajudar a fazer a compra, ir para rua. Por que essas pessoas não podiam ser remuneradas por isso? Com isso agente geraria uma renda, uma parte da renda dessas pessoas que estão se dispondo a colaborar nessa rede de solidariedade a idosos, gente doente, com deficiência. E assim por diante.

Então, o auxílio emergencial, o emprego já e medidas para garantir que as micros e pequenas empresas, médias empresas não fechassem. A gente já sabe que nos dados do IBGE, 714 mil micros, pequenas e médias empresas tinham fechado, e a gente sabe informalmente que já chegou a mais de um milhão. É um número gigantesco de empresas que fecharam e não vão voltar a abrir as portas. Isso podia ter sido evitado se as medidas de crédito emergencial e de suporte aos empregos tivessem sido adotadas imediatamente. E não foram, foram adotadas tardiamente, demoraram muito para chegar.

E medidas que segurassem os empregos, que o mercado de trabalho não fosse desorganizado. Então esses quatro blocos de medidas teriam permitido que a gente atravessasse a crise sem esse número escandaloso de desemprego que comentei no começo. Mais de 38 milhões de pessoas completamente a descoberto. Então se agente tivesse feito isso a gente passaria por um momento difícil, como todos os países passaram, desde países desenvolvidos, Inglaterra, Alemanha, França, Portugal, até países médios, que tomaram medidas e conseguiram segurar minimamente a economia funcionando, como é o caso do Chile, por exemplo. Não estou nem falando de países progressistas, estou falando de um país de direita ou de países liberais clássicos. A hora que precisou, o Estado entrou para garantir que a crise não destruísse as empresas, que não destruísse a economia. Quando a crise sanitária recuar, essas empresas, esses trabalhadores, estarão prontos a voltar. Essa sempre foi a nossa ideia.

Você falava no número escandaloso de pessoas sem emprego. Há um outro fato escandaloso que já voltou há algum tempo, mas que agora começa a ganhar rosto e nome, porque a imprensa entrou na cobertura, que é a fome. O Data Favela divulgou uma pesquisa dizendo que grande parte, quase 70% das pessoas que moram nas periferias estão tendo dificuldade para comprar comida. Só a pandemia explica isso, a quebra da safra, mudanças climáticas, ou existe algo além?

Olha só, nós estamos vivendo uma confluência de problemas. Saíram os dados do Data Favela mostrando que as pessoas estão comendo menos. A maior parte das famílias nas favelas passa um dia no mês sem comer, já reduziu o número de refeições por dia, para menos de duas refeições por dia. Isso significa em geral que quem está comendo são as crianças. Os adultos provavelmente estão comendo uma vez por dia só, né? A gente que conhece a população pobre sabe que principalmente as mulheres, quando falta comida em casa, dão a comida para as crianças e ficam sem comer. A gente volta para não só um quadro de fome, mas um quadro de desnutrição que começa a atingir as nossas crianças. Isso acontece no momento dramático onde o preço dos alimentos cresceu, disparou o preço de alimentos básicos, arroz, feijão, óleo, legumes, batata, tomate. No momento em que a população ficou sem recurso nenhum, a população pobre, que estava vivendo do auxílio emergencial, três meses sem renda. Vários outros setores foram atingidos, como a classe média, mas têm uma poupança.

O preço das commodities tende a permanecer alto no mundo. E isso tem muito a ver com o movimento que, eu diria, tem dois lados. Os países se protegendo. Por exemplo no caso do arroz, isso aconteceu claramente. Os grandes países produtores de arroz, os grandes consumidores, o que eles fizeram? Pararam de exportar, para proteger o seu mercado interno, para proteger o seu povo. O Brasil, quando o preço do arroz no mercado internacional cresceu, começou a exportar o arroz, e o preço subiu, prejudicando massivamente a população pobre, prejudicando a segurança alimentar. Porque a questão do arroz para o brasileiro não é somente "você pode comer batata, você pode comer macarrão, você pode substituir o arroz por outra coisa". No caso do brasileiro, como a base do alimento dele, o que organiza a alimentação do brasileiro é o arroz com feijão – que diga-se de passagem é uma comida muito nutritiva, com o arroz e o feijão você organiza o prato e se tiver só arroz e feijão já está bem alimentado, mas é claro que o ideal é você ter uma verdura, uma carne. Mas o arroz e feijão te dá uma base nutricional mínima. Só com macarrão, você não está bem alimentado.

Houve um ministro que falou isso: não tem arroz, coma macarrão.

Além de ser uma crueldade, além de demonstrar que a pessoa não tem a menor empatia com o povo, e que não entende denutrição e não tinha que estar se metendo abesta a falar coisa errada. Além disso, isso acelera um processo no Brasil que já vem acontecendo, que chama transição nutricional. É um escândalo ele falar isso, do ponto de vista nutricional, da segurança alimentar e nutricional. Porque já existe um processo, que muitos países viveram violentamente, perdendo a sua cultura, perdendo a sua base alimentar e começando a comer produto ultraprocessado. Então você pega a Inglaterra, por exemplo – eu não estou falando de países pobres - a Inglaterra tem uma base de segurança alimentar e nutricional terrível. O povo come majoritariamente produtos ultraprocessados, cheios de sal, de gordura – de comida que não é comida. E não só fica só obeso, mas mal alimentado. O Brasil é um país que resiste a essa transição alimentar. Quando você fala "come macarrão", você está desorganizando essa base cultural que é estratégica, fundamental para garantir alimentação saudável. Não dá nem para dizer que é a não política, é pior do que isso. É uma contrapolítica, orientando mal a população, como orienta mal a população quando diz "vai para rua o quanto antes, não use máscara, tome medicamentos para se prevenir".

Eu queria voltar um pouquinho numa questão que é fundamental e que tema ver com auxílio emergencial e que foi muito pouco compreendida. Isso é fundamental entender hoje. Eu vi o Bolsonaro falando que o Brasil foi um dos países que mais gastou, tomou medidas, teve um gasto alto com a pandemia. É verdade. O auxílio emergencial o ano passado chegou quase a 300 bilhões de reais. Só que eles fizeram a pior coisa que eles poderiam fazer, que é gastar muito e não ao atingir os resultados esperados. A gente propôs o auxílio emergencial não como medida keynesiana – aí falando um pouco como economista - não era para manter a economia funcionando. Tinha essa função também, mas o auxílio emergencial tinha uma função fundamental que era garantir que as pessoas ficassem em casa. Pegue esse dinheiro e fique em casa, desse jeito você vai se proteger e proteger a sociedade. O governo fez o oposto, ele disse: pega esse dinheiro e vai para rua. Então nós tivemos o pior tipo de resultado. Alto gasto fiscal sem medidas preventivas.

Gastou muito e gastou mal, como os neoliberais costumam dizer.

E levou a população à morte. Essa é uma política de morte. Hoje a gente olha pra trás, e há vários estudos que comprovam isso: o auxílio emergencial evitou que o PIB no Brasil caísse o dobro. A prova maior daquilo que a gente passou 13 anos dizendo: gasto social faz bem para a economia. Não é somente uma medida de justiça social, também tem impactos na economia. A gente dizia que a cada um real no Bolsa Família retorna para a economia R$ 1,78. Com o auxílio emergencial provavelmente retorna mais, porque ele se tornou uma renda estratégica fundamental.

E aípodemos falar um pouquinho da PEC 186, Isaías?

Podemos sim, acho importante. Foi pouco abordado.

Foi pouco abordado. Eu acho que a gente tinha de começar a explicar, inclusive eu acho que a gente tem que parar de chamar de PEC Emergencial, porque senão passa a impressão de que tratou da emergência. Não tratou. Ela tinha uma única coisinha que tratava de emergência, mas o restante não tem nada a ver com a emergência, e sim com o médio e longo prazo. É como seu o dono de uma empresa chamasse o trabalhador e dissesse: "Olha, como nós estamos na pandemia, nós vamos, por medida emergencial, te dar um vale-refeição extra por quatro meses. Não dá pra comprar muita coisa com ele, mas dá para comer meio lanche. Mas é melhor do que nada, é um extra para você, uma medida emergencial por causa da crise. Mas eu vou vender sua casa – que são as privatizações – vou congelar o seu salário, acabar com qualquer possibilidade de valorização do seu salário, o teu filho vai deixar de ter acesso a escola porque eu vou cortar os recursos que você usava para escola". Então todas medidas estruturais que vão ter impacto na vida do cidadão para o resto da vida, em troca desse vale-refeição pela metade, por quatro meses. A PEC tem efeitos estruturais para o resto da vida, à medida que viabiliza privatizações, à medida que corta recursos para educação, para saúde, para assistência social e congela o salário. Aí faz uma cortina de fumaça dizendo que tem a ver com auxílio emergencial e não tem, é só uma fraude. É muito importante que a população se conscientize que isso foi uma chantagem que eles fizeram e que o Congresso aceitou. Não as oposições, que nós fomos contra e denunciamos, mas a própria imprensa não noticiou isso como deveria.

O estrago pretendido inicialmente pelo governo e pela base aliada foi minimizado?

Algumas coisas não passaram. Acho quedá para a gente dizer que é um ganho, claro. A gente tem hoje um teto de gastos, mas agente também tem um piso para algumas políticas, que são saúde e educação. Significa que não pode gastar em saúde e educação menos do que esse piso. Eles queriam acabar com esse piso, e isso seria dramático. Hoje esse teto canibaliza as políticas sociais, mas pelo menos saúde e educação têm um piso lá, preservando. Mas a política de assistência social está sendo completamente destruída, outras políticas sociais, de segurança pública, de direitos das mulheres, aquelas envolvendo a questão racial, um conjunto de políticas está sendo completamente destruído.

Algumas questões saíram da PEC mas mesmo assim o dano para a agenda social brasileira e para os direitos da Constituição Federal do Brasil é gigantesco. Essas medidas não têm nada a ver com minimizar os efeitos da pandemia, isso é que é o mais dramático. Eles estão na verdade tirando vantagem da pandemia, se aproveitando da pandemia para acelerar uma agenda de destruição do Estado brasileiro. Quando o Guedes assumiu, ele já tinha proposto isso. Ele propôs isso em 19, ele propôs isso em 20. Aliás, ele está propondo isso desde que nasceu, o bicho já nasceu ruim. É a mesma proposta que eles fizeram na campanha eleitoral. Essa é a agenda de direita, de destruição do Estado, de destruição dos direitos da população brasileira. E conseguiram passar boa parte dela agora, infelizmente. Não podia chamar PEC Emergencial, deveria chamar PEC da Morte, do Genocídio, PEC da Destruição da Constituição.

Você dizia que não houve cobertura crítica da imprensa. Eu diria que houve até uma cobertura simpática.

E justificando, dizendo que foi pouco, dizendo que tinha que ter sido mais. Que é quem sempre defendeu que o povo não tem direito à Constituição Federal. Quem defende essa agenda estava achando que era pouco. Nós vamos ter de refazer tudo de novo, infelizmente.

Isso é importante, eu queria a partir daí fazer uma pergunta que eu pretendia. Refazer tudo de novo. No pós-pandemia, com a possibilidade de a gente mudar essas pessoas que estão comandando o país, o que é que a gente vai ter de fazer, e como?

O plano, eu recomendo muito porque ele é um plano muito amplo, tem um conjunto de medidas, e vou falar aquelas que eu acho que são estratégicas e que pegam em cheio essa agenda que é um misto do social e econômico e do ambiental. Mas não dá pra gente dissociar essas três grandes questões.Mas o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil tem essas medidas emergenciais ejá apontava para essa transição para um futuro sustentável. Então uma das coisas que a gente defendia na área social, por exemplo, com relação à renda é o que a gente chamou de Mais Bolsa Família. O Bolsa Família é conhecido e reconhecido no mundo todo como o melhor e o maior programa de transferência de renda. Mas pelo tamanho da crise que o Brasil está passando, e que na saída vai continuar vivendo, exige que o Bolsa Família seja turbinado. Então é auxílio emergencial enquanto durar a pandemia e Mais Bolsa Família para a saída da crise. Um Bolsa Família que pegue muito mais gente, nós estimamos que na saída da crise vão ser perto de 30 milhões de famílias, número que vai cair gradualmente à medida que as outras ações sejam implementadas, como emprego já, as medidas de infraestrutura, retomada de investimento do Estado, garantindo com isso inclusive que a gente retome os empregos no Brasil. Então precisará ser ampliado do ponto de vista de quem recebe e ampliar o grupo de divisão dos valores. Para você ter uma ideia, o Bolsa Família, no auge do Brasil Sem Miséria, no final do governo da presidenta Dilma, comprava meia cesta básica. Para comprar a mesma coisa hoje, o Bolsa Família teria que estar valendo no mínimo R$ 300. No auge do governo da presidenta Dilma agente tinha menos de 5% de desemprego. Hoje nós estamos com mais de 20% de desemprego se a gente for considerar o desemprego aberto e o desemprego oculto. Ele não pode ser só um complemento de renda, por isso a gente está propondo R$ 600, dependendo do tamanho da família.

Então uma primeira medida estrutural é que o Bolsa Família seja revisto e ampliado. Segunda, a retomada de emprego com investimento público, considerando isso que o Lula falou: se o próprio Estado não investir, não vai ser a iniciativa privada que vai investir.

No Brasil, nós temos muito por fazer. Neste momento, não ter saneamento básico suficiente, não ter rodovia suficiente, não ter obra de energia suficiente, água, pode ser na verdade um meio para que o Estado executando essas obras, retorne o investimento e retornem com isso também os empregos. Inclusive uma das coisas que a gente está dizendo é que o ideal seria a gente retomar o investimento público já com olhar de sustentabilidade, garantindo que esses empregos sejam empregos verdes, vamos retomar os investimentos em energia caminhando por uma transição energética também para uma energia verde, vamos garantir investimentos do ponto de vista da tecnologia digital. Enfim, gerando empregos já modernos, para uma nova fase.

Essa articulação é o que a gente está propondo para essa retomada. Nós apostamos muito – aliás, o país que mais cresce neste momento, que é a China, tem apostado nesse mesmo modelo – em usar o próprio mercado interno como alavanca para a retomada do crescimento. Isso o Brasil vinha fazendo lá atrás, durante os governos do presidente Lula e da presidenta Dilma.

Agora, para garantir que a gente tenha um padrão de gasto social, inclusive em saúde e educação, assistência social, reconstruindo essa rede – a área de assistência social foi completamente dizimada – exigirá que a gente tenha recursos para fazer isso. De onde sairão esses recursos? Neste momento emergencial, óbvio que nós vamos fazer a mesma coisa que todos os países estão fazendo, o que a Alemanha está fazendo, o que a Itália está fazendo, o que Portugal está fazendo, o que a Inglaterra está fazendo. Garantir através dos recursos públicos atuais e do endividamento que a gente atravesse este momento de crise. Mas o Brasil tem como financiar um modelo de desenvolvimento sustentável porque nós temos uma parcelada população muito rica, e se a gente conseguir cobrar do 0,03% mais rico da população... A gente fala em aumentar imposto e o povo já se arrepia, classe média no Brasil, quando a gente fala em rico, acha que a gente está falando dela. Gente, nós não estamos falando de vocês, tá. Estamos falando de quem ganha 70 salários por mês, 80 salários por mês. Imagina, quem ganha R$ 80 mil por mês, coisa que a maioria leva seis meses para ganhar, ou mais. Então nós estamos falando em tributar de forma mais que proporcional aquela parcela da população que tem uma renda altíssima, e tributar aquele que tem um patrimônio muito alto. Não vamos tributar a sua casinha gente, nós estamos falando em quem tem patrimônio de R$ 10 milhões, R$ 15 milhões, e mesmo assim nós queremos tributar isso de forma progressiva. Então nós temos como financiar isso, com uma reforma tributária justa e solidária, que tribute aqueles muito ricos, o milionário, gente, e não a classe média e os pobres, que é quem paga a conta hoje.

Você acredita que precisaremos também de um esforço político na reformulação da Constituição, para essa reconstrução no médio e longo prazo?

A nossa Constituição permitia que a gente trabalhasse, porque já tinha previsto, por exemplo, o imposto sobre grandes fortunas. Já estava previsto. Nós estamos falando em reforma no plano infraconstitucional. Agora, eles entraram na Constituição com um conjunto de medidas que amarra o país, que aliás sufoca o país. O país não consegue respirar, pegando a frase do George Floyd: eu não consigo respirar. Essa decisão (a PEC 186) colocou o joelho no pescoço do Brasil. Isso nós vamos ter que mudar, gente. Já tinham feito a PEC 95 e agora criaram uma série de gatilhos. A própria pandemia mostrou que essas medidas não são suportáveis. Sem sair da crise, eles apertam ainda mais o gogó do Brasil.

Eles poderiam dizer: mas não é sempre que teremos pandemia, uma crise dessas proporções. Como responder a isso?

Primeiro que eles podiam discutir isso depois da pandemia, e não no meio da pandemia. No meio da crise, o que você faz? Discuto como eu saio da crise. Saio da crise com auxílio emergencial, com vacina, com leito, com medidas de isolamento, e nada disso eles fizeram.

Com a emenda constitucional do teto dos gastos, mesmo que não tivesse havido pandemia, ela sufocaria o país no médio e longo prazo de qualquer maneira. Já que a gente não precisaria de uma crise, criaríamos a nossa própria. Muito obrigado pela entrevista e pelas suas análises. Você está como pesquisadora convidada na Universidade de Nottingham, não é?

Não, eu já voltei para o Brasil. Eu sou professora visitante da Faculdade de Saúde Pública da USP hoje, um orgulho muito grande. E sou membro do Centro de Altos Estudos da Fundação Perseu Abramo.

E você visitou a floresta de Sherwood?

Claro que sim.