Por Bruno Moretti, NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo

Diante da crise econômica e sanitária em curso, com mais de 264 mil óbitos por Covid-19 e queda do PIB de 4,1% em 2020, o governo reforça seu projeto de destruição de instrumentos estatais capazes de combater a pandemia e reconstruir a economia. Sob o argumento de busca do equilíbrio orçamentário, a PEC 186, aprovada pelo Senado Federal, mistura deliberadamente suspensão de regras fiscais para retomada do auxílio emergencial e o endurecimento do regime fiscal. No entanto, o aumento da dívida é um fenômeno mundial. O Brasil, endividado em moeda local, é capaz de rolar sua dívida em condições favoráveis, tendo em vista o reduzido patamar das taxas de juros internas e externas. Em janeiro, o custo médio do estoque da dívida foi de 8,29% ao ano, o menor da série histórica. Também é relevante assinalar que a trajetória do endividamento líquido do setor público no Brasil é amenizada em função das reservas internacionais.

Não há justificativa para um ajuste abrupto nas despesas. O auxílio emergencial de R$ 600, autorizado pelo Congresso Nacional em 2020, poderia ser pago, em 2021, sem contrapartidas fiscais. No entanto, limites autoimpostos seguem impedindo o combate à pandemia e a recuperação da economia. Com a retomada do teto de gasto, o governo federal pratica uma contração fiscal de 8% do PIB, comparando as despesas de 2020 com o projeto orçamentário de 2021. Além disso, até 2021, em função da Lei Complementar nº 173/2020, na prática, os gatilhos já estão acionados, com vedações a reajustes salariais, variação de despesas obrigatórias acima da inflação, entre outras.

A PEC 186 é uma reforma estrutural do arcabouço fiscal, acelerando o desmonte do Estado e a redução de serviços públicos induzida pelo teto de gasto. Diante da sobreposição de regras de controle fiscal, o orçamento público não será capaz de contribuir para a estabilização econômica e financiar serviços públicos. Em particular, a PEC impacta investimentos de longo prazo, capazes de promover a sustentabilidade ambiental e o aumento da capacidade produtiva da nossa economia.

Para a União, além das regras fiscais já existentes (teto de gasto, regra de ouro e meta de resultado primário), a proposta determina que passaria a valer um “subteto do teto”, ativando gatilhos da Emenda Constitucional nº 95, quando a despesa obrigatória superar 95% da despesa sujeita ao teto. Também se prevê meta de dívida, a ser estabelecida por lei. O emaranhado fiscal aumenta, reforçando um regime, sem paralelo no resto do mundo, que reduz estruturalmente as despesas como proporção do PIB e é pró-cíclico na crise, implicando cortes de despesas quando há desaceleração da economia.

A desvinculação de receitas públicas ilustra os propósitos da PEC 186. O trabalho das oposições garantiu relevantes exceções, mas fundos estratégicos ao desenvolvimento do país perderão receitas, inviabilizando diversas políticas públicas. Por exemplo, o Fundo Social destina a arrecadação oriunda da exploração do pré-sal à educação (ao menos 50% do fundo) e a outras políticas, como saúde, ciência e tecnologia e meio-ambiente.

Vale tomar uma fonte de receita específica do pré-sal, o excedente em óleo da União. Trata-se da parcela do óleo lucro que as empresas petrolíferas destinam ao governo federal. As previsões oficiais, considerando apenas as áreas já licitadas, apontam que, até 2032, o Fundo Social receberia R$ 422 bilhões relativos ao óleo lucro[1]. Caso metade deste valor fosse aplicada em educação (conforme a regra geral do Fundo Social), a perda para o setor seria de R$ 211 bilhões em dez anos. Diante das pressões do teto de gasto pela redução da despesa, o mais provável é que as receitas do pré-sal sejam canalizadas para o resultado primário, impedindo que a renda petrolífera seja utilizada em favor do desenvolvimento econômico e social do país, conforme pensado no modelo de partilha.

Além da desvinculação de recursos anuais no orçamento, o superávit financeiro acumulado dos fundos não ressalvados no texto poderá ser utilizado para amortização da dívida pública. Ademais, caso reconhecido o estado de calamidade, a PEC prevê que o Tesouro poderá utilizar o superávit financeiro apurado em balanço para amortizar dívida, salvo recursos vinculados à repartição de receitas com entes, à seguridade social, ao FAT e à educação.

Se houver reconhecimento do estado de calamidade, o prejuízo aos fundos públicos será ainda maior. Nesta hipótese, a PEC prevê que recursos não executados em exercícios anteriores, por exemplo, do Fundo Nacional de Cultura e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) poderiam ser desvinculados no período de vigência do Decreto. No primeiro caso, a medida afetaria o audiovisual, que gera cerca de 300 mil empregos. Em relação ao segundo, convém lembrar que o FNDCT é o principal instrumento de estímulo ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação do país, inclusive, investindo em vacinas e em plantas de produção que adensam o complexo econômico e industrial de saúde, contribuindo para a estrutura produtiva de um setor que representa 9% do PIB e para a garantia do direito à saúde. Cerca de 80% dos recursos do FNDCT foram contingenciados em 2020, convertendo-se em superávit financeiro, e poderiam ser canalizados para o resgate de títulos públicos.

Mais de R$ 100 bilhões que estão na Conta Única do Tesouro, vinculados a fundos públicos, poderiam ser destinados à amortização da dívida. O resultado seria o aumento de reservas bancárias e o excesso de liquidez teria de ser enxugado pelo Banco Central, de modo que a Selic convirja para a sua meta, por meio de operações compromissas que impactam a dívida bruta do governo geral. Isto é, os fundos perdem seus recursos, colocando em risco o atendimento a demandas da sociedade por serviços públicos, e a dívida pública permanece no mesmo patamar. Dado o aumento de operações compromissadas, os detentores da riqueza financeira apenas mudam seu portfólio em direção a títulos públicos de curtíssimo prazo, piorando o perfil da dívida, sem qualquer impacto positivo para a sociedade.

Nada mais sintomático em relação ao espírito da PEC. Afinal, a proposta não é tanto um ajuste fiscal de curto prazo, mas o ataque a instrumentos estatais essenciais ao desenvolvimento do país, afastando o orçamento público das demandas da população por empregos e serviços de qualidade. O Congresso Nacional não pode ficar de costas para a sociedade, particularmente em um momento de crise profunda, e deveria evitar o desmonte das instituições públicas, aprovando apenas a retomada do Auxílio Emergencial.

[1] Disponível em: https://www.presalpetroleo.gov.br/ppsa/conteudo/ebook_25_11.pdf. Embora os índices de excedente em óleo destinados à União sejam estabelecidos nos leilões, as estimativas de valores nominais variam em função do preço do barril de petróleo e do câmbio.

Bruno Moreti é economista, doutor e pós-doutor em Sociologia pela UnB, faz parte do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo