Entrevista a Isaías Dalle
Para garantir a manutenção de políticas públicas básicas para combater as diversas formas de violência contra as mulheres e garantir mecanismos de promoção da igualdade, o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, elaborado pela Fundação Perseu Abramo e pelo PT, insiste na criação de um fundo nacional para financiar programas com essas finalidades.
Já existe um projeto de lei, apresentado ao Congresso em 2014, no entanto travado nos escaninhos do parlamento. Para a ex-ministra das Mulheres Eleonora Menicucci, é preciso um esforço extra para fazer avançar a pauta. “Então nesse sentido eu reforço um apelo às bancadas femininas, à bancada de mulheres do PT, do PCdoB, do Psol, do PSB, do PDT, para se unirem e fazerem caminhar esse projeto”, diz.
Eleonora, coordenadora do NAPP (Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas) Mulheres, fala nesta entrevista sobre este e outros pontos contidos no Plano, que ajudou a elaborar. A criação do fundo, lembra ela, servirá como instrumento para dificultar a vida de governos autoritários que queiram simplesmente desmontar as políticas públicas.
“Um Fundo Nacional seria mais resistente a esse tipo de arbitrariedade por parte de um governo. O governo é obrigado a colocar o dinheiro. Ele pode fazer desmonte desse fundo também, mas nós judicializamos”, comenta.
Acompanhe a entrevista, concedida na semana em que se comemora o 8 de Março, Dia Internacional da Mulher:
Seja benvinda. Tudo bem com você?
Tudo bem, é um prazer poder contribuir, conversando com você sobre quais são as questões fundamentais das mulheres. Veja, nós, quando fizemos esse Plano de Reconstrução, começamos a fazê-lo no segundo semestre de 2020. Imagina, nós entramos em março, Mês da Mulher, e é muito simbólico também fazer essa entrevista agora. Numa situação muito mais grave da pandemia, mas muito mais. Eu sou da área da Saúde Pública, sou professora titular da Unifesp, e tenho discutido muito com meus colegas médicos infectologistas e nunca vi, e eles mais ainda, tragédia tão grande feito essa. Um desgoverno tão grande, um descontrole tão grande sobre a crise sanitária. Um descontrole proposital da parte do presidente. Então, o que o NAPP Mulheres – eu coordeno o NAPP Mulher, e a Anne Karolyne, que é a secretaria nacional de Mulheres do PT, é a vice-coordenadora – o NAPP já tem dois anos, é mais velho que o tempo da pandemia. Ele é mais amplo do que a maioria dos NAPP’s, ele é suprapartidário, porque nós temos companheiras do Psol e do PCdoB, temos feministas não orgânicas ao PT, temos a CUT, o MST, o MTST, da Marcha Mundial de Mulheres, Articulação de Mulheres Brasileiras, e Frente pela Legalização do Aborto. Então é muito amplo, muito produtivo, muito propositivo também.
É importante você falar isso, porque esse Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil tem esse propósito, essa cara, até porque ele não está concluído ainda. Estão chegando contribuições e a Fundação Perseu Abramo e o PT estão abertos e inclusive pedindo que essas contribuições cheguem a partir do debate em cima do projeto.
Eu quis destacar essa característica do nosso NAPP que o difere de todos, exatamente porque o movimento de mulheres é mais amplo do que os movimentos temáticos, porque nós somos 52% da população e mãe da outra metade. Eu falo isso desde que eu era feminista quando jovem. Então veja, eu tenho 76 anos e continua a mesma coisa. O feminismo é muito amplo, nós temos que agregar e não desagregar. Participar desse Plano de Reconstrução foi bastante rico porque nós discutimos o ir e vir. O NAPP tem uma proposta, e tem cumprido. Ele faz artigos sobre todos os temas; nosso último artigo foi escrito por uma freira, a Ivone Gebara, que é sobre teocracia religiosa. E mandamos para publicar, e sempre pela Fundação Perseu Abramo. E nós propomos sempre atividades e debates, como agora na semana do 8 de Março, por exemplo, que estão sendo transmitidos pelo programa Pauta Brasil.
Eleonora, uma coisa que chama bastante atenção no Plano no tocante às políticas para as mulheres é a proposta, já apresentada no Congresso, de instituir um Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. A ideia é criar algo parecido com o Fundeb, no sentido de que se torna um fundo permanente e, portanto, menos vulnerável a um governo de plantão que seja avesso à promoção da justiça e da igualdade?
Esse é o projeto de lei 7371 de 2014, fruto da Comissão Parlamentar Mista de Investigação da violência contra as mulheres, que foi coordenada pela então deputada do PCdoB de Belo Horizonte, minha amiga Jô Moraes, e é um projeto que foi trabalhado em conjunto pela maioria das mulheres de partidos de centro-esquerda. É um fundo permanente e, aprovado pelo Congresso, passa a ser um fundo como o Fundeb. É permanente e independe do governo. Mas ele não vai pra frente, as nossas bancadas sentem muita dificuldade para fazer andar o projeto. Já foi, já voltou, já foi, já voltou. É um projeto que nós colocamos como prioritário, porque sem isso as políticas de enfrentamento à violência não têm continuidade, e isso é dramático para a vida das mulheres. Então nesse sentido eu reforço um apelo às bancadas femininas, à bancada de mulheres do PT, do PCdoB, do Psol, do PSB, do PDT, para se unirem e fazerem caminhar esse projeto. Eu tenho conversado com muito com elas, e há dificuldades no Congresso atual. Quem sabe agora... O projeto é importante por si só. Mas agora neste momento ele é fundamental por causa do impacto das políticas neoliberais e do impacto da pandemia, principalmente sobre as mulheres. Veja, o lugar menos seguro para as mulheres ficarem é em casa. É porque elas ficam em casa com o agressor. E com políticas de isolamento, confinamento, fundamentais para diminuir a circulação do vírus, aumentou em 78% a violência contra as mulheres na pandemia. Aumentou quase 48% os feminicídios no mês de julho do ano passado em relação ao mesmo mês de 2019. Isso porque as mulheres não têm os recursos, são pouquíssimos. Agora, a responsabilidade não é do vírus e do isolamento, da política necessária do confinamento. A responsabilidade é das políticas públicas que não fazem valer a proteção necessária para garantir proteção da vida das mulheres. Com esse recrudescimento da pandemia, é necessário e fundamental que esse projeto seja aprovado.
Embora exista essa necessidade cada vez mais urgente de atender as mulheres neste momento de pandemia, por outro lado há uma correlação de forças políticas no Congresso e no governo federal que é muito contrária a esse tipo de política. Como atravessar esse terreno pantanoso em que a gente se encontra?
Do ponto de vista do governo, não há coisa pior. É uma pandemia fundamentalista. Nunca vivemos um pandemônio político, neofascista, igual. Por que eu chamo de neofascista? Porque ele tem estratégias do fascismo, mas ele ainda não se constitui num regime de governo fascista. E é um governo absolutamente fundamentalista e misógino. Odeia e definiu como alvo as mulheres, a população negra e LGBTQI+ e os trabalhadores e trabalhadoras e indígenas. Ele definou como alvos grupos que fazem parte dos 52%. Não tem como. Então, é muito difícil passar no Congresso. Primeiro, que não tem uma ministra feminista. É uma ministra que é a bússola do governo na questão da orientação ideológica, que é essa tal de Damares. E eu faço questão de falar de tal de Damares para poder caracterizar como eu a compreendo. Além disso, um presidente que diz que não precisa de política de combate à violência, pois são as mulheres que devem cuidar de sua própria garantia. Então unificou a pandemia do coronavírus com o pandemônio fundamentalista. É isso que nós estamos vivendo. O orçamento do governo para políticas para as mulheres em 2021 é desastroso. Não tem nada, nada. E aí você há de perguntar pra mim: o que fazer?
É uma boa pergunta.
As mulheres sempre estiveram presentes e resistindo ao longo da história do Brasil. Em todos os processos as mulheres tiveram protagonismo e agora, mesmo com essa situação, nós mulheres estamos resistindo nas lives, nas diferentes frentes de luta. Estamos denunciando os impactos de tudo isso sobre nós, sobre nossas vidas. Estamos numa fase agora, o nosso campo da esquerda, de redescoberta de estratégias de resistência. Se você pensar na saúde integral da mulher, o presidente da República retirou do leque de violências contra as mulheres a violência obstétrica. A violência obstétrica é imensa sobre as mulheres, e principalmente com as mulheres mais pobres. Então, um Fundo Nacional seria mais resistente a esse tipo de arbitrariedade por parte de um governo. O governo é obrigado a colocar o dinheiro. Nós temos no Plano uma proposta de recursos vindos de grande parte das loterias federais. Para mim, esse fundo é fundamental. Inclusive para manter as Patrulhas Maria da Penha, também. Nós defendemos muito um projeto que é o X Vermelho: as mulheres vítimas de violência chegarem nas drogarias – teria de fazer uma parceria com as drogarias – e abre a mão, tem um X, a atendente vê um X, vai atrás e liga para Patrulha Maria da Penha. A Patrulha acolhe essa mulher. No Rio Grande do Sul, o nosso Edgar Preto, nosso deputado, ele fez lá o projeto da Máscara Roxa. Já é lei lá. As mulheres vítimas de violência chegam nas drogarias, em redes que têm parceria, e pedem o medicamento Máscara Roxa. Aí a atendente responde que não tem o produto, mas que pode encomendar. Anota os dados todos da mulher para depois procurar ajuda. Muito interessante.
Para isso é preciso ter recursos. Evidentemente que quando o fundo carimba as verbas, quando as verbas são claramente destinadas para um determinado fim, mesmo que o governo se recuse a transferir, é possível denunciar a não transferência, como o pessoal da Saúde tem feito em relação à retenção das verbas do SUS que o governo tem praticado.
Claro, o desmonte que ele está fazendo com o SUS... Ficou comprovado agora, na pandemia, que se não fosse o SUS, nós teríamos três vezes mais o número de mortos. Ele pode fazer desmonte desse fundo também, mas nós judicializamos.
Você falava há pouco da tal Damares, e isso me faz pensar num assunto muito importante e que é uma discussão não necessariamente nova, mas que tem obtido mais destaque atualmente, que é a diferença entre representação e representatividade. O fato de haver uma mulher lá não significa exatamente que haverá uma política pró-igualdade.
A Damares não tem representatividade. O que ela representa não são as mulheres brasileiras, ela representa um porcentual de mulheres que comungam com ela de ideias fundamentalistas, que não são comungadas pela grandíssima maioria das mulheres brasileiras. Eu não vou perder tempo falando da Damares, entendeu, mas ela está lá, ela que está com o dinheiro, ela que está com a caneta. Ela desmontou as Casas da Mulher Brasileira, ela desmontou tudo.
Estamos chegando ao final da nossa entrevista. Eu queria saber se você tem algo a acrescentar e que você fizesse as suas considerações finais, desde já agradecendo muito a tua participação.
Eu que agradeço, e teria duas questões, que é a questão da saúde integral da mulher, da violência obstétrica e a questão dos CAPS, que são os Centros de Atendimento Psicossocial, que é fundamental para as mulheres serem atendidas. A questão dos direitos sexuais e reprodutivos, lembrar que é fundamental a questão da garantia do exercício da orientação sexual e o exercício dos direitos sexuais, que envolvem a questão da legalização do aborto. Não podemos esquecer, mesmo que seja difícil, temos que falar. E a concepção da mulher em todos os ciclos de vida, por isso é integral. Nós é que construímos o país. Infância, adolescência, juventude, maturidade e velhice. Viu agora, ninguém se importava com as idosas, os idosos, e hoje na pandemia eles assumem um protagonismo, se tornam visíveis, porque muitas das famílias dependem do salário das avós e dos avós aposentados.
E aí eu entro na última questão que quero falar, que é autonomia econômica, que é a questão das trabalhadoras domésticas. A PEC das Trabalhadoras Domésticas por si só não está garantindo os direitos delas. A autonomia econômica das mulheres está diretamente ligada à garantia dos direitos a uma vida de direitos plenos.