Entrevista a Isaías Dalle para Observa BR

Do mesmo modo como educação, saúde e segurança, a valorização das pequenas e microempresas é tema que volta à cena de tempos em tempos, apontado como prioridade. Daquelas prioridades quase sempre adiadas.

Desta vez, porém, o PT, por intermédio de propostas contidas no Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, elaborado a centenas de mãos e ainda aberto a colaborações, garante que o segmento ocupará o lugar não apenas merecido, mas, segundo nosso entrevistado Paulo Feldmann, necessário.

Até uma meta numérica foi estipulada: dobrar, no espaço de oito anos, a participação da pequena empresa no PIB nacional, dos atuais 29% para 60%. A principal razão para tal meta é simples, segundo Feldmann. É na pequena empresa em que é gerada a maioria dos empregos e oportunidades. Mas para isso é preciso estabelecer políticas públicas claras e estruturadas, como existem em países como Itália, Espanha e Alemanha. Alemanha, aliás, o país que melhor resistiu aos efeitos econômicos da pandemia até agora, justamente por ter seu PIB fundado preferencialmente nas pequenas empresas.

Paulo Feldmann é engenheiro formado pela Escola Politécnica da USP, doutor em Administração pela Fundação Getúlio Vargas e é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Faz 30 anos que ele participa de grupos de pequenos e microempresários progressistas que debatem os rumos do país, e sempre associado ao PT. Agora, como coordenador do NAPP (Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas) Micros e Pequenas Empresas, é um dos responsáveis pela elaboração do Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil.

Acompanhe a entrevista:

O Plano explicita um objetivo que é, em oito anos, elevar para 60% a participação das micros e pequenas empresas no PIB nacional. Hoje, segundo o Sebrae, 99% das empresas são pequenas e micros, mas participam de apenas 29% do PIB do país, enquanto apenas 90 mil grandes e médias empresas, 1% do total, representam 71% do PIB. O Plano de Reconstrução do Brasil propõe inverter essa pirâmide. Como isso vai se dar, professor?

Olha, o que nós queremos fazer é que o Brasil trate as suas pequenas e microempresas da mesma forma como faz a grande maioria dos países, e não só os desenvolvidos, mas como outros países em desenvolvimento, na própria América Latina, que dão muito mais importância para pequenas e micros do que o Brasil. O Brasil realmente é um país que não dá a mínima atenção para suas pequenas e microempresas, e por isso que esses números são tão horríveis. Apenas 1% das empresas no Brasil não são pequenas e micros. São cerca de 85 mil empresas, mais ou menos, mas que detêm 71% do PIB. Essa concentração é inédita no mundo, não existe em lugar nenhum. Por isso que muitos falam que o Brasil é o paraíso da grande empresa. E é mesmo, porque a grande empresa está tranquila e soberana em todo território nacional. Eu vou te dar alguns exemplos de algumas medidas que existem outros países e para você ver o que falta no Brasil. Nós até temos alguma legislação que favorece essas pequenas empresas. São legislações em geral na área fiscal. Temos alguma facilidade, não muita, mas alguma, facilidade na concessão de crédito para as pequenas empresas, mas o que nós não temos são políticas públicas que apoiem a pequena empresa e principalmente que coloquem a pequena empresa numa situação favorável frente às grandes. Por que os outros países apoiam tanto as pequenas e microempresas? Não é pura generosidade, benevolência, é porque os outros países estão muito preocupados com o domínio das grandes. Na Alemanha, por exemplo, eles estão muito preocupados com o fato de que todos os setores serem dominados por três, quatro empresas apenas.

Uma típica política pública é aquela que proíbe grandes empresas em determinadas atividades. Veja o que acontece na área de supermercados na França. Na França, se você quer ter um supermercado numa grande cidade – não só em Paris, mas em outras - você tem que ser pequeno. Os grandes são proibidos. A maior rede de supermercados do mundo é a francesa Carrefour. E durante muitos anos o Carrefour foi proibido de atuar em Paris e em outras grandes cidades. Muito recentemente é que permitiram o Carrefour de atuar, desde que as lojas fossem bem pequenas. Um outro exemplo que eu gosto de dar é o da Itália. Na Itália, em todas as cidades, as farmácias têm que ser pequenas, e é proibido que haja cadeia de farmácias, como nós temos aqui em São Paulo. Aqui, a pequena farmácia foi extinta. Na Itália isso é impossível de acontecer porque não é permitido. No entanto, o governo italiano cria todo tipo de facilidade para que as pequenas farmácias italianas façam suas compras em conjunto. Elas se unem e fazem as compras junto aos laboratórios em conjunto, porque dessa forma elas conseguem um preço mais baixo. Essa facilidade de compra das grandes cadeias é que fez com que elas eliminassem completamente a pequena farmácia aqui na nossa cidade.

Outro exemplo que eu gosto de citar, e que é cada vez mais frequente lá fora, que começou na Itália e na Alemanha. Antes é preciso citar um dado estatístico muito importante: quando você pega o total das exportações italianas, verá que 43% das exportações são provenientes de pequenas ou microempresas. No Brasil, é menos de 1%. A pequena empresa italiana é tão mais competente que a brasileira? Não, simplesmente na Itália existe uma legislação que é a lei do consórcio: a pequena empresa é estimulada a formar consórcios destinados à exportação. Se ela quer exportar, é estimulada a se associar com outras empresas do mesmo setor, parecidas com ela, e juntas vão fazer essa exportação, mas vão ter grandes benefícios do governo, como por exemplo: não vão pagar uma série de impostos que a grande tem de pagar; vão receber apoio até gerencial do governo para algumas atividades. Na Espanha você tem a mesma medida, e na Espanha é interessante porque essa medida é municipal. As cidades espanholas é que dão esse benefício. As prefeituras criam uma marca, elas patrocinam aquela marca e dão todo apoio àquela marca. E aquelas marcas são destinadas a reunir empresas de determinado setor. Então, além do consórcio, essas empresas terão uma marca para seus produtos.

Você cria uma marca fantasia, com grande impacto comercial, mas você tem uma série de pequenas empresas, de empresas familiares, dando suporte, sendo a alma deste grande negócio.

Exatamente.

Aqui no Brasil, a maior parte das micros e pequenas atuam em que segmento do mercado?

A grande maioria atua no setor de serviços. É muito importante no Brasil como um todo, quase dois terços do PIB brasileiro estão no setor de serviços. A pequena empresa em sua maioria atua no setor de serviço, e a grande também. Restaurantes, bares, são os principais. Cabelereiros, pequenos consertos, como relojoarias, oficinas mecânicas, também são importantes. No setor industrial você quase não tem pequenas empresas, mas há algumas poucas na fabricação de móveis, de roupas e calçados, mas sempre em desvantagem em relação à grande.

Como essa ideia de consórcios ajudaria essas empresas? Vamos imaginar um pouco como é que seria essa mudança.

Isso já foi tentado no Brasil e infelizmente não se deu muita atenção, e não foi à frente. No final do governo Fernando Henrique houve uma tentativa – não do governo, mas uma tentativa dos marceneiros - de criar algo parecido. O Brasil tinha tudo pra ser um grande fabricante de móveis e o maior exportador. A Itália é o maior fabricante de móveis do mundo, porque justamente ela tem esse modelo, de juntar todos os marceneiros num consórcio. E o Brasil teria tudo para dar certo, tem a matéria-prima básica em abundância, nós temos a mão de obra, muita gente que conhece fabricação de móveis, tem o equipamento necessário e a tecnologia. Mas não somos, porque precisaria unir os pequenos marceneiros e criar uma marca. Aí ele parte para o mundo. A Itália faz isso. Essas marcas de móveis que nós conhecemos aqui no Brasil, inclusive, a maior parte são de empresas italianas formadas dessa forma. Aqui não deu certo porque não basta os marceneiros se juntarem. Tem que ter um apoio governamental, como isenção de alguns impostos, a criação da marca e apoio gerencial. Por isso a política pública é fundamental. Esse é o grande problema no Brasil. De uns tempos pra cá, o Brasil foi assolado por uma visão de “deixa que o mercado resolve”. Esse era o grande lema, que começou com o Pedro Malan, ministro da Fazenda do Fernando Henrique. O mercado resolve sim, sempre a favor da grande, nunca da pequena.

Aconteceram algumas iniciativas isoladas em prefeituras. Quando o Fernando Haddad foi prefeito em São Paulo, criou uma agência chamada Agência de Desenvolvimento AD Sampa, que tinha essa finalidade. Tomou medidas muito importantes. Só para você ter uma ideia de uma medida muito comum lá fora, principalmente na França, e que nós aqui no Brasil praticamente não temos nada, e o prefeito Haddad fez: ele fixou que as compras públicas têm que ser direcionadas para empresas pequenas. Ele fixou que as compras abaixo de 80 mil reais tinham de obrigatoriamente ser dirigidas para a pequena empresa. Foi ótimo, mas precisaríamos ter muito mais. E isso não pode ser uma iniciativa só das prefeituras, isso tem de ser feito pelos governos estaduais e pelo governo federal. Então isso é uma coisa perfeitamente simples de ser feita. Houve tentativas de fazer coisas desse tipo, que foram totalmente combatidas pelas grandes empresas. Quando alguns políticos e governantes tentaram fazer isso não tiveram sucesso, porque as grandes empresas entraram na Justiça contra essa ideia. Eu lembro de uma história de uma iniciativa no Estado de São Paulo, o governador, há uns dez anos, um governador do PSDB inclusive, tentou fazer alguma coisa nesse sentido. Houve uma concorrência que destinava boa parte da compra de uniformes escolares para pequenas empresas e aconteceu uma coisa interessante: um grupo de pequenas empresas se uniu para disputar a concorrência. Evidentemente, ganharam. Mas aí as grandes entraram na Justiça e derrubaram, dizendo que a união das pequenas empresas é ilegal, porque no Brasil não é permitido que empresas se unam para participar de uma licitação. Vejam o que é a falta de legislação que permita a união das pequenas empresas. Algo que existe em qualquer lugar do mundo.

A gente precisaria também de uma mudança cultural, talvez. Não vejo, por exemplo, os grandes veículos de comunicação comprando essa bandeira, talvez porque os grandes anunciantes são as grandes empresas. Então é bom não contrariar. Eu morava na região do ABC e lembro que havia uma indústria moveleira dinâmica e à época, as Casas Bahia, por exemplo, constituiu uma grande fabricante de móveis na região, e os meios de comunicação e os prefeitos comemoraram, mas aquilo desmontou a indústria moveleira que havia em São Bernardo.

Você tocou num ponto importantíssimo. Mas agora você me lembrou de um exemplo que eu não posso deixar de mencionar. Já que você citou uma marca, eu vou mencionar o Magazine Luiza. Ela tem uma estratégia clara, que em administração tem até nome, que é a Estratégia do Oceano Azul, quando uma empresa decide ir para um mercado onde ela não tem concorrência. As lojas do Magazine Luiza no Brasil quase todas são localizadas em cidades onde não existe nem Pão de Açúcar nem Carrefour, nem nenhuma outra rede importante, só pequenas empresas. E quando o Magazine Luiza chega numa cidade destrói as pequenas. E foi assim que o Magazine Luiza cresceu. Eliminando emprego dramaticamente naquela cidade média – são sempre cidades médias. E a população toda daquela média cidade, depois de um tempo, está completamente dependente dela. E isso elimina empregos. No curto prazo, parece que não. Mas no médio prazo, depois de três, quatro anos, você vê que houve uma redução dramática de emprego.

Essa questão cultural que você está levantando é muito importante. Eu gosto de citar um exemplo. Temos um grupo de pequenos empresários progressistas que se reúne há 30 anos. Alguns anos atrás, antes mesmo do NAPP, a gente fez uma reunião com um grupo de pequenos empresários italianos que esteve no Brasil. Na época falava-se muito no Ministério da Pequena Empresa no Brasil. Era inclusive o nosso governo, da presidenta Dilma. Perguntamos: vocês têm lá o Ministério da Pequena Empresa? ‘Não, não existe’. E aí eu perguntei: e algo como o Sebrae, tem? O italiano com quem eu falava ficou surpreso. Mas o governo da Itália não tem nenhum órgão de defesa da pequena empresa? O Italiano disse: “Não, não faz falta. A prioridade máxima do governo é a pequena empresa. O governo inteiro é o governo da pequena e da micro empresa”. No Brasil, quando houve o Ministério da Pequena Empresa, quem foi ministro conta que a atividade era ser “despachante, apenas despachante, junto aos outros ministérios, para convencer os outros que tinham que favorecer a pequena empresa”. Então é claro que é uma questão cultural. No Brasil ainda é preciso mostrar que a pequena empresa é importante. Na Itália, quando o jovem está fazendo o equivalente ao ensino médio do Brasil, nos três anos de curso ele tem disciplinas de empreendedorismo. Ele aprende, aos 16, 17 anos, como que se administra uma empresa. Aprende contabilidade, aprende cálculo de custos, marketing, aprende uma série de coisas ligadas à gestão, porque a chance de ele se tornar pequeno empresário é muito grande e ele vai precisar daquele conhecimento. Não precisa entrar na universidade para entender e administrar empresas.

Esse tema das micros e pequenas empresas é um daqueles que me parecem sempre estar em entre as prioridades, mas que nunca deslancha. O exemplo da Itália foi citado algumas vezes. Vale lembrar que na Itália, que dá prioridade total às pequenas e microempresas, não significa que isso diminui o espaço das grandes empresas. Algumas das multinacionais mais poderosas do mundo têm origem italiana e tem liberdade de atuação. Professor Feldmann, como o PT, um governo do PT, pode fazer o que os outros não fizeram e como dessa vez a gente pode conseguir modificar essa situação das pequenas e microempresas?

Foi uma iniciativa muito importante da Fundação Perseu Abramo abrir espaço para a discussão sobre as pequenas e microempresas. Em primeiro lugar, nenhum partido tem isso. Agora, o PT e a Perseu Abramo têm uma área pensante na pequena empresa. E nosso grupo quer justamente alimentar o debate com novas ideias. Agora, o que nós gostaríamos que fosse feito é mais ou menos isso que eu contei para você que tem sido feito na Itália. Você deu agora um exemplo interessante, e eu queria só comentar um outro fato, porque todo mundo acha que a Itália é o país da pequena empresa, mas há um outro país em que a pequena empresa é mais forte ainda, que é a Alemanha. A Alemanha é uma coisa interessante, pois é o país que tem a maior participação da pequena empresa no PIB. É quase 70%. Olha só a Alemanha: todo mundo conhece a Volkswagen, a Siemens, a Basf, Mercedes-Benz, todas empresas alemãs enormes, gigantescas, mas efetivamente quem comanda a economia alemã é a pequena empresa, que é quase 70% do PIB. Olha o que aconteceu agora na pandemia. O governo da Angela Merkel, a primeira preocupação dela foi com a pequena empresa. Ela criou uma mesada para a pequena empresa. Vários países criaram seguro-desemprego. Maravilha. Alemanha criou uma mesada para a pequena empresa. Então a pequena empresa na Alemanha precisa em primeiro lugar mostrar quanto ela tinha de faturamento no ano passado e quando ele está tendo agora, quanto ela perdeu. Essa diferença, o que ela perdeu, o governo cobre. Claro que o governo exige, e o que exige? Que a pequena empresa continue comprando de seus fornecedores da mesma forma que ela comprava no ano passado; que ela continue mantendo todos os seus trabalhadores empregados. Se fizer isso, o governo alemão banca a mesada. Resolveu. A Alemanha foi o país da Europa que teve o menor problema do ponto de vista econômico. Teve problemas com a pandemia? Sim, mas do ponto de vista econômico não, muito pouco. Então é isso que nós queremos ver: que o governo priorize a pequena empresa. Por que o governo alemão fez isso? Porque é onde está a maioria dos trabalhadores alemães. Quando você faz isso, você não precisa de seguro-desemprego.

E olha, no Brasil, apesar de todos esses problemas, a pequena empresa tem uma importância grande. Ela participa pouco do PIB, mas é responsável por metade do emprego formal do Brasil. O que espero é que quando o PT chegar ao poder no ano que vem, o nosso presidente declare que a prioridade máxima será o apoio à pequena empresa, com políticas públicas como essas todas que a gente mencionou.

Há também a questão da concessão do crédito. Uma das propostas que esse nosso grupo está fazendo – nós até já encaminhamos e o deputado Paulo Teixeira apresentou no Congresso na semana passada – é a volta do cartão BNDES, mas agora de uma forma diferente: seria distribuído somente pelos bancos oficiais e os bancos oficiais teriam obrigação de realmente usar e distribuir o cartão BNDES, o cheque especial, porque essa questão do crédito é muito importante, mas os bancos privados não têm interesse.