Por Dora Lucia de Lima Bertulio (1), especial para o Observa BR

O Brasil historicamente, na formação do Estado, desde o Império à República, dirigiu seu sistema de segurança privilegiadamente para a população negra. Escravizada ou livre, a população negra tornou-se o elemento nocivo na sociedade, devendo a Segurança Pública estar alerta qualquer que fosse ou seja o lugar em que essa população se encontre.

E, o Poder Judiciário, segue a mesma linha das Polícias, recebendo os indivíduos negros como previamente propostos ao crime ou ao cometimento de delitos. E, mesmo na esfera cível quando negros fazem partes do processo, com uma ideia pré-formada de que provavelmente a parte branca terá mais razão em seus argumentos.

No sistema judiciário criminal, onde aqui já conhecido, o contingente de população negra excede um muito sua representação na sociedade, o racismo individual, cultural e institucional se apresenta, no Poder Judiciário com sua melhor versão, porque atua diretamente na vida dos negros e negras .

Tal realidade não acontece por acaso, ou porque alguns indivíduos ou algumas Instituições estão propostas a escolher quem matar ou quem prender ou quem não terá acesso aos benefícios sociais. A formação da ideia de negro com a valoração do pertencimento racial dos indivíduos está incrustrada em nossa sociedade de forma que podemos dizer que a ideologia racista é fundante de nossos valores raciais.

Neste ensaio vou privilegiar trazer reflexões sobre essa ideia de negro na formação do conjunto social brasileiro, tergiversando com o racismo nas diversas formas e nuances que esse fenômeno se apresenta, alternando seus modelos e mudando sua apresentação, para manter seus nefastos efeitos.

Os valores raciais na sociedade brasileira foram formados e permanecem no inconsciente coletivo do país, a partir das ações do Direito e do Estado, desde os primórdios da formação nacional. Esses valores, com base fundada na escravização da população africana acorrentada no tráfico negreiro transatlântico, que perdurou por quase quatrocentos anos no Brasil, deve ser visto e revisto por estudos, reflexões, debates e publicização em larga escala pela nossa sociedade.

O século XIX, é referência para os estudos sobre a formação do Estado brasileiro que, desde 1822 deixa de ser colônia portuguesa e passa à categoria de Estado Nacional Imperial. Busco esse marco para nossa reflexão sobre a formação da ideia de negro, concomitante com a formação da sociedade brasileira, para tratarmos de proposições de políticas humanistas de Segurança Pública para a população negra.

A Constituição de 1824 primeira carta de direitos do Estado brasileiro sedimenta o sistema escravista, como ocorre em toda a América, sem desconsiderar os diversos movimentos dos estados europeus, principalmente da Inglaterra, para a impropriedade do tráfico negreiro. E, diga-se, não porque a África continuava a ser descapitalizada com os milhões de indivíduos sendo sequestrados e embarcados em navios, como carga preciosa para as Américas, mas porque os movimentos de mudanças de sistema econômico no continente europeu via no tráfico e nas mercadorias comercializadas (homens e mulheres negras), um entrave para seus interesses mercantilistas, já no caminho do capitalismo.

Como amálgama privilegiado desse ideário no período, o sistema jurídico ainda do Império, fez seu papel com presteza. Formulou políticas, leis e consolidou valores jurídico-políticos necessários para a consolidação da ideia de negro em nossa sociedade.

Aquele ideário transpassa as diversas fases de nossa história política e a totalidade das relações sociais no país, consolidando-se na naturalização de nossa cultura quanto a apreensão dos negros, seu papel, espaço e merecimento na sociedade brasileira. Várias foram as formulações legislativas dirigidas para a população branca e elite nacional quanto ao tratamento, espaço e mobilidade permitida aos negros africanos e seus descendentes, escravos ou livres .

E, ao pensarmos uma política ou programa de segurança pública para a garantia dos direitos fundamentais da população negra, e, diga-se, o que certamente trará segurança para o todo da população, é necessário que nos embrenhemos na história da formação do Estado e do Direito brasileiro, para buscarmos as raízes da apreensão do sistema de segurança pública para a população negra, com o olhar para a formação da população brasileira.

Assim um passeio pela legislação escravista e os movimentos do Império para “acomodar” os negros libertados e preparar para seguir os ditames da Inglaterra para o fim do tráfico e, ao final da escravidão. Bem assim, os passos da Primeira República para minimizar e desqualificar a presença da população negra na nova nação, que se prepara para apresentar-se no cenário internacional, nos permite identificar o comportamento das Instituições de Segurança Pública como guardiões do Estado brasileiro pretensamente branco, progressista e pronto para o desenvolvimento interna e externamente. Livrar-se da escória negra torna-se o projeto nacional e um dos braços desse objetivo é a Polícia e as políticas de segurança pública.

Nesse marco, cumpre explorar as leis e o trato jurídico da proibição do tráfico negreiro, e, após, as chamadas leis abolicionistas no que se refere à ação das polícias e do Sistema de Segurança do Império.

A primeira delas, Lei de 7 de novembro de 1831, que, muito embora determinasse a liberdade dos indivíduos aprisionados na costa da África, as pessoas desembarcadas, – mercadorias contrabandeadas – iam diretamente para posse do Governo, para servi-lo. Os traficantes perdiam o investimento financeiro (às vezes, conforme suas relações com o poder ainda poderiam sair impunes). Os indivíduos trazidos de sua terra natal, perdiam a liberdade . Porém, no ideário da sociedade, esses resultados eram justos: o merecimento correspondia com os sujeitos do mérito, ou seja, correspondia à estrutura meritocrática da desigualdade. Ressalte-se que já nesse momento a Lei proibia a entrada de negros no Brasil, ainda que livres:

“Art. 7º Não será permitido a qualquer homem liberto, que não for brasileiro, desembarcar nos portos do Brasil debaixo de qualquer motivo que seja. O que desembarcar será imediatamente reexportado. ” (Lei de 7 de novembro de 1831) -grifei.

Os organismos do Estado e regulamentos expedidos pelo Império trazia, já nessa norma, as polícias imperiais para buscar e recuperar os desembarcados, para o Governo. Veja-se que, o trato não difere daquele das mercadorias com entrada ilegal no país, que já se fazia à época. E, intencionalmente ou não, o Estado colocava seus homens da Segurança para monitorar e prender homens e mulheres negras, exclusivamente por serem negros. Importante lembrar que os primeiros imigrantes brancos europeus, chegavam aos nossos portos livres e, proibido o tráfico de escravos, o correto se a Constituição fosse cumprida, os desembarcados dos navios negreiros também eram livres e assim deveriam ser inseridos na sociedade da época.

E, como é da cultura histórico-jurídica brasileira, em 1850 a segunda Lei foi editada para a mesma finalidade, qual seja, proibir o tráfico negreiro em costas brasileiras. Lei n.º 581 de 4 de setembro de 1850, também chamada Euzébio de Queiroz, que “estabelece medidas contra o tráfico de africanos neste Império”.

A regulamentação da Lei de 1850 manda perseguir os delinquentes (traficantes) e os “escravos” desembarcados. Novamente temos as polícias imperiais atrás dos indivíduos negros, que, sendo tais, deveriam ser monitorados e aprisionados para o Governo.

Agora oficialmente, o produto do tráfico ilegal era entregue ao Governo para trabalhos forçados, vez que não podiam ser escravos se assim não aportaram em nossos portos. Julio J. CHIAVENATTO relata que os locais onde os africanos livres eram conduzidos após a apreensão do navio negreiro, constituíam prisões e os então chegados passavam a exercer trabalhos forçados para o Governo, ou seja, escravizados ilegalmente. É como a Lei 581de 1850 citada, em no seu artigo 6º, explicitava o procedimento de apreensão dos navios clandestinos:

“Art. 6º Todos os escravos que forem apprehendidos serão reexportados por conta do Estado para os portos d’onde tiverem vindo, ou para qualquer ouro ponto fora do Império, que mais conveniente parecer ao Governo; e emquanto essa reexportação não se verificar, serão empregados em trabalho debaixo da tutela do Governo, não sendo em caso algum concedidos os seus serviços a particulares. ” (grifei)

Ocorre que os novos historiadores demonstram que esse procedimento dos Governos não inibiu o sistema que como sabemos, perdurou até maio de 1888, de forma que por mais dezenove anos a escravização de africanos foi mantida legalmente no país. E, a chegada de navios negreiros por toda a costa brasileira se manteve, parafraseando o Professor Luiz Felipe de Alencastro, por duas décadas o Brasil escravizou ilegalmente africanos, sob o manto do sistema jurídico, vale dizer do Estado e do Direito.

Logo, negros livres pela lei, permanecem sob o regime de escravidão e não mereceram das Instituições, à época, tratamento igualitário aos brancos, aqui já nascidos ou imigrantes, pois os valores de igualdade conformavam-se aos critérios racistas, mais e mais disseminados no continente europeu e perfeitamente utilizado nos Estados Unidos da América. Na verdade importante lembrar que a própria Constituição Imperial que dividia classificava os negros aqui nascidos como “cidadãos libertos” o que os identificava não somente como o regime escravista como também com sua classificação racial - negros.

Em movimento simultâneo o Estado Imperial se prepara, a partir da década de 50, para apresentar propostas e agir no sentido do fim do regime escravista. A lei 2040 de 1871, chamada devido ao seu objeto, de Lei do Ventre Livre, ensinada (até hoje) nas escolas como a primeira lei libertária – 1ª Lei abolicionista, é exemplo paradigmático da apreensão do mérito na nossa formação político/jurídica para as pessoas, segundo seu pertencimento racial. Veja-se que o significado que era veiculado na época (e é na nossa história oficial) tem sido a liberdade de todos os bebês que nascessem de ventre escravo a partir da edição da Lei. Todavia, foram cuidadosamente ocultados os requisitos e formas de liberdade para os então chamados ingênuos: até a idade de 8 anos as crianças permaneciam sob a tutela do senhor de escravo e, após essa idade, este, o senhor de escravo decidia sobre seu destino. Dizia a Lei que o senhor poderia ficar com o filho de sua escrava (perceba-se que o tratamento já induzia o pertencimento da criança) até a idade de 21 anos ou se assim o desejasse, receberia uma indenização do Estado para entregá-lo ao Governo, o qual se serviria do ingênuo, sem que a lei se referisse até que idade o cativeiro no Estado permaneceria. Outros mecanismos impeditivos do exercício da liberdade estão presentes no texto da Lei que, paradoxalmente instruía os proprietários e os escravos a manter seu plantel ou conseguir um pecúlio que pudesse comprar sua liberdade, respectivamente.

Curiosamente, a Lei do Ventre Livre também trazia em seu texto regulação da vida dos indivíduos ex escravizados, que ficavam à disposição do Governo:

“Liberdade aos escravos abandonados, os de herança vaga e os da Nação – para o Governo lhes dar ocupação.

Os libertados ficam por cinco anos sob a inspeção do governo. Devem contratar seus serviços e se forem encontrados vadios, volta a ser constrangidos a trabalhar em estabelecimentos públicos. Somente podem sair dessa condição se exibirem contrato de trabalho.

Lei dos Sexagenários – talvez um arremedo das políticas atuais para idosos - Igualmente é um engodo jurídico. Sua ementa é:

“Lei 3270 de 28 de setembro de 1885 - Regula a extincção gradual do elemento servil.
[...]
Art. 3º [...] § 10. “São libertos os escravos de 60 annos de idade, completos antes o depois da data em que entrar em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a tíitulo de indemnização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de tres annos. (grifei) Lei 3270/1885.

Valores sociais de liberdade para negros (diferente de liberdade para brancos) o texto na realidade priorizava os direitos dos senhores de escravos frente a determinações do Estado, em razão da necessidade política interna e externa de dar fim ao regime econômico escravista. O fim da escravidão como regime nefasto à natureza humana ficava para os delírios piegas de poetas, eventualmente para alimentar os ideários revolucionários ou progressistas de indivíduos cujos princípios não se ajustavam aquelas políticas de genocídio e opressão e, certamente, para a população negra a esperança pela liberdade e igualdade real.

Mas não é só. No compasso para a finalização do regime, o Governo e a elite da época quedavam-se mais e mais preocupados com o contingente de população negra livre e destinavam às polícias o controle dessa população:

“Os libertados não podem sair da circunscrição original pelo prazo de cinco anos. Quem se ausentar do seu domicílio será considerado vagabundo e apreendido pela Polícia para ser empregado em trabalhos públicos ou colônias agrícolas.

No mesmo passo, a Lei dos Sexagenários consolidava o privilégio racial para a população branca no país e para quaisquer outros povos brancos, assegurando sua hegemonia racial diante do poder político e econômico. Portanto, a elite ofertava à sociedade e, especialmente, à população negra, um presente que ela mesma usufruiria.

Estudos de Ademir GEBARA, sobre o trabalho livre na transição do escravismo em fins do século XIX, apresentam considerações sobre as regras de organização municipal do período entre 1870 e 1888, as chamadas Posturas Municipais. Suas considerações nos fazem refletir sobre a formação da ideia de negro, naturalizada em nosso inconsciente coletivo. Tais regulamentos indicavam a forma e controle do Estado sobre a sociedade, entre outras regras o lugar de negros e brancos. Estas Posturas vigem até hoje. As Câmaras Municipais é que traçam seus regulamentos, ainda que de forma menos explícita que as do período escravista, organizam os espaços públicos de município, utilizando-se dos mecanismos e pressupostos racistas de distribuição de espaços públicos de lazer, da economia, enfim, de qualidade de vida para os munícipes.

No período, voltando à década de 80 do século XIX, o tratamento que deveria ser dispensado aos indivíduos negros, independentemente de sua condição civil, se liberto ou escravo, eram explícitos naquelas regras de comportamento e controle social, tudo sob pena do poder de Polícia em que as Delegacias de Polícia e os policiais estavam à postos para o controle dos movimentos dos negros e negras.

Vimos que a Constituição de 1824 identificava os cidadãos nascidos no Império “ainda que libertos ou ingênuos” como brasileiros. Essa categoria criada – liberto já de pronto identificava negros e brancos vez que somente a população negra tenha sido escravizada. Assim os poderes públicos da época identificavam os ex escravos não como cidadãos livres, mas como liberto. Sua condição livre tem um reconhecimento social não de cidadão livre posto que o adjetivo lhe rotulava agora não a sua condição civil, mas a raça a que pertencia. Essa realidade (de liberto) também permitia a vigilância institucional sobre todos os pertencentes aquele grupo racial. Os brancos, ao contrário, eram referenciados por nomes, títulos ou posição social adquirida.

Em segundo lugar, os escritos oficiais utilizavam-se da nomenclatura que lhes conviesse no momento, tanto para se referir a escravos brasileiros, como escravos africanos, como cativos, ou elemento servil, ou libertos, ou ingênuos, ou pretos ou pardos.

As Posturas Municipais então, que regravam os espaços, o lazer e o trabalho para toda a sociedade, por exemplo, utilizavam-se de qualquer das nomenclaturas ditas acima, para restringir a ocupação de espaços, de trabalho ou de lazer, o que estabelecia o reconhecimento social do pertencimento à raça negra e não a este ou aquele sujeito social (cidadão ou escravo). Ao mesmo tempo, até para que o processo fosse completo, as mesmas normas determinavam ao branco qual o limite de permissão ou concessão poderia este permitir aos negros. Transcrevo alguns exemplos.

“É proibido ao negociante de molhados consentir em seus negócios pretos e cativos sem que estejam comprando. O negociante sofrerá multa ...” (grifei)

Art. 46. São proibidas na cidade os bailes de pretos (de qualquer natureza), salvo com licença da autoridade. ” (Grifei).
Postura Municipal da cidade de São Paulo, 1875, art. 155: “Todos os que tiverem casas de negócios não poderão ter nelas cativos como caixeiros ou administradores, sob pena de 10% de multa. ”
“Art. 39 da Resolução 429 de 28.03.1857 que aprova o Código de Posturas/ de Laguna, Santa Catarina na Assembleia Legislativa daquela Provícia e que proíbe batuques de escravos e multa os senhores que permitirem tais folguedos.
“Ninguém poderá conservar em suas casas por mais de três dias, LIBERTO algum sem que de parte à POLÍCIA para obriga-lo a tomar uma ocupação. Limeira, SP, 1888.

A República que ocorre em 1889, um ano depois da Abolição, não modifica o status quo da população negra que, completamente desamparada do Estado e fora das relações de trabalho formal que se organiza no novo cenário nacional, passa, em sua maioria, a formar o contingente de trabalhadores informais, reconhecidos em sua maioria como mendigos e desabrigados, à mercê das forças de segurança do Estado e alvo privilegiado da polícia.

A Constituição e o Código Penal da 1ª República irão trazer comandos específicos para essa população no sentido de resguardar os cidadãos da nefasta influência desse grupo . A literatura brasileira do período não se debruça sobre as condições de vida dos negros senão para descrevê-los como responsáveis pela degradação da sociedade, agentes de maus costumes e dados ao ócio e a festejos que deviam ser controlados pela polícia em razão do perigo à segurança pública que estas festas causavam .

Extinto o Império e o regime formal escravista, restou à sociedade política e civil rever os termos de controle da população negra, agora sob o manto de todos iguais perante a lei.

Antes mesmo de promulgada a primeira Constituição da República, temos a edição do Código Criminal em 1890, que cria o Crime de Mendicância e Vadiagem, Crime de Espiritismo, Magia e Sortilégio, Crime de Capoeira:

“Art. 391- Mendigar, tendo saúde e aptidão para o trabalho.
Art. 399 – Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite, prover a subsistência por meio de ocupação prohibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes.
Parágrafo 1º. Pela mesma sentença que condemnar o infrator como vadio ou vagabundo, será ele obrigado a assignar termo de tomar ocupação dentro de 15 dias, contados do cumprimento da pena.
Art. 402 – Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem, andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal”

Percebe-se que o Sistema de Segurança, as Polícias e o Poder Judiciário do Império e da República, vez que tal Código não foi revogado pela nova Constituição, são explícitos atos de racismo institucional, perpetrado pelo Estado, na forma que esse movimento racista – preso em ações institucionais, no caso do Estado, se naturaliza em nossa sociedade como os demais racismos. Veja o que Stockley Carmichael e Hamilton consolidaram esse comportamento na obra “Black Power” Para esses autores, tidos como os primeiros a sistematizar um dos modus operandi do racismo especialmente destrutivo, definiu o racismo institucional:

“Racismo institucional pode ser detectado de diversas formas e se verifica sempre que as políticas ou comportamentos do Estado ou de Instituições privadas, independentemente de ser intencional, privilegiam o atendimento às pessoas ou a coletividade branca ou predominantemente branca ou ao contrário, define ações e políticas que irão prejudicar predominantemente pessoas negras ou coletividade negra.”

Ainda nesse passeio histórico, chegamos na Consolidação das Leis Penais de 1932 que criminaliza o espiritismo, sortilégio, magia e curandeirismo, nesses termos:
Art.157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar curas de moléstias curáveis ou incuráveis, emfim, para fascinar e subjugar a credibilidade pública
Art. 158. Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado curandeiro. ”

Em 1940, o Código Penal, vigente, apresenta as contravenções penais, incluindo a contravenção de vadiagem e mendicância, entre outras. Esses dispositivos legais permitem às Polícias, com respaldo em todo o Sistema de Segurança Pública, a olhar para as pessoas negras, preferencialmente homens jovens e adultos, como potenciais suspeitos, e, essa “normalidade” igualmente permite que o respeito à vida desses ´suspeitos” tenha valor minimizado diante dos ditames de direitos fundamentais da Constituição.

Considerações sobre as reflexões aqui feitas nos encaminham para afirmar que a realidade da Política de Segurança Pública que temos hoje no Brasil, está ciente e alinhada por valores e ideologias que, formadas historicamente e naturalizadas em nosso inconsciente coletivo, fazem de nós negros, pessoas a serem sempre vistas com cuidado, com suspeita de atos ou movimentos não condizentes com o desejo da sociedade e portanto, não adequados para compartilhar os benefícios sociais com a naturalidade que merecem as vidas brancas.

Conhecer e refletir sobre os fatos e atos do Estado brasileiro, conformado com o Direito nacional, visto este no todo do Sistema Jurídico e em sua história, produzindo e reproduzindo a apreensão negativa da população negra, muito bem sistematizada na ideologia racista, me parece fundamental para se entender o comportamento apático ou conformado da sociedade brasileira, diante dos atos das Polícias e das Políticas de Segurança Pública, sempre reativas e nunca propositivas.

Da mesma forma, essa histórica corrida das forças de segurança pública para proteger a “sociedade”- diga-se a população branca - de violência e maus comportamentos dos negros, também deve nos dar melhor atenção para os movimentos das Forças Policiais e do Sistema de Segurança dos Estados e do Governo Federal e, via de consequência, pensar em programas que possam intervir nesse modo de ação.

É como se já estivesse incrustrado nos princípios dessa Instituição, qual o inimigo para se combater o crime – e é esse o princípio das Polícias, combater o crime - e deixar para trás a segurança dos espaços públicos, o que deveria ser o alvo principal de suas atividades. E, o inimigo preferencial, sem medo de má percepção, é o grupo populacional negro, que diante dos processos racistas que estruturam os programas e políticas socioeconômicas do país, combinado com o valor jurídico desse grupo populacional no interior da sociedade os tornam mais frágeis e propostos para as ações de segurança como temos assistido. Todos esses fatores contribuem sobremaneira para que essa população tenha as menores chances de mobilidade social, de educação profissional (técnica ou superior) e viva em sua grande maioria, em espaços desprovidos de serviços públicos essenciais.

Essa composição de fatores, penso, deve ser trazida nos estudos de proposições para a Segurança Pública da população negra porque, é essa composição que opera como justificativa dos Governos para as “operações” - que melhor seria chamar de chacinas de jovens negros -, de limpeza e erradicação do crime naquelas áreas.

Tal política, a de Segurança Pública vigente no país, que preferencialmente se impõe na força, com prioridade para as áreas periféricas das cidades, cuja população com menor poder aquisitivo é predominantemente negra, ao ser revista, deve promover em seus objetivos, a educação política nas comunidades, a par de inter-relação com outros seguimentos de promoção do bem-estar social, de forma a permitir que os programas possam efetivamente cobrir o que queremos como SEGURANÇA PÚBLICA.

Considerações sobre os estudos

Por último, campanhas de conscientização dos direitos e garantias da população negra frente as ações do Estado, concomitante com processos educativos sobre relações raciais junto ao corpo dirigente das Policias e das Secretarias de Segurança Pública podem ser promovidos dentro das propostas de políticas de Segurança Pública para a população negra com provável sucesso.

De tudo, o que aqui buscamos como elementos de reflexão, atuar somente na mudança de estilo ou modo de operação das corporações policiais, em qualquer das esferas de governo, não parece ser suficiente, vez que é da natureza das corporações militares a disciplina e obediência hierárquica, e esta se sobrepondo completamente a quaisquer outros direcionamentos. As Chefias, o Comando e os profissionais civis ou militares da Área de Segurança Pública, devem igualmente ser municiados de debates, de estudos e reflexões que minimizem a naturalidade do seu olhar sobre as populações menos privilegiadas com preferência para a população negra, como o local de busca do crime.

Esse olhar de atenção que essas Instituições privilegiam e que está dirigida a essas comunidades/bairros, como se naturalmente ou porque o ambiente pobre assim determina que cometem ou cometerão crimes e que paradoxalmente intentam proteger violentando-as, retrata o racismo institucional combinado com a ideia de proteção à população que aparentemente merece a proteção do Estado, o grupo populacional branco e proprietário.
Infelizmente, independentemente de serem essas ações conscientes ou não, seus efeitos são igualmente nefastos e, por ironia do destino, afetam de forma trágica todo o grupo social, inclusive a população banca e proprietária. A fraternidade e a solidariedade são princípios que foram dispostos para reger as democracias. A liberdade somente se realiza cumpridos os demais princípios de dignidade humana.

Curitiba, Primavera de 2020
Texto para o Núcleo de Políticas Públicas de Igualdade Racial da
Fundação Perseu Abramo.]

(1) Procuradora Federal na Universidade Federal do Paraná - Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina - Visiting Scholar na Universidade de Harvard, Faculdade de Direito – Ativista na luta antirracista com especial direção para as Ações Afirmativas.

(2) 14º, Anuário Brasileiro de Segurança apresentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indica que nos últimos 15 (quinze) anos, a população carcerária negra aumentou 14% enquanto que a de brancos diminuiu 19%, dados de 2019.

(3) As Colônias Inglesas no Caribe, bem assim as francesas nesse período e um pouco após já aboliram o sistema de escravidão, razão, eu diria para pressionar o Brasil, como fez com os Estados Unidos, para finalizar tal sistema de trabalho.

(4) Sobre o assunto, ver BERTULIO, Dora L.L. Direito e Relações Raciais. Uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, /1989/2019; GERSON, Brasil. A Escravidão no Império. Rio de Janeiro, Palmas, 1975; GEBARA, Ademir. O mercado de Trabalho livre no Brasil (1871-1888). São Paulo: Papirus/UNICAMP. 1986, entre outros.

(5)  Sobre legislação imperial sobre tráfico negreiro, ver NEQUETE, Lenine Escravos & Magistrados no Segundo Reinado. Brasília : Ministério da Justiça/Fundação Petrônio Portella 1988. Ainda, RODRIGUES, Jaime, Campinas/SP, Ed. Unicamp/CECULT, 2000; e BERTULIO, Dora L.L. Direito e Relações Raciais, ob.cit.  

(6)  CHIAVENATTO, J.J., O Negro no Brasil - da Senzala à Guerra do Paraguai. 3. ed. São Paulo, Brasiliense, 1986. Ver também RODRIGUES, Jaime, ob. cit.

(7)  Art. 1º, §1º da Lei 2040/71: “Os ditos filhos menores ficarãoem poder e sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e trata-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá a opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos”

(8)  Todo o texto desta lei e das demais leis abolicionistas aqui citadas podem ser encontradas em SILVA, Jorge da. Direitos Civis e Relações Raciais no Brasil. Rio de Janeiro, LUAN Ed. 1994 pp 229 e segs.

(9) GEBARA, Ademir. Ob.cit. p. 109. As posturas citadas são, respectivamente: da Prefeitura Municipal de São João da Boa Vista, São Paulo, 1885. Código de Posturas, p. 212; Município de Itpetininga, São Paulo, 1883. Código de Posturas CLPSP, p. 210; do Município de Amparo, São Paulo, 1883. Código de Posturas CLPSP, p. 265.

(10) BERTULIO, Dora L.L. Direito e Relações Raciais. Introdução Crítica ao Racismo. Ob.cit.

(11) Sobre o tema veja-se em GERSON, Brasil. A Escravidão no Império. Rio de Janeiro, Palmas, 1975

(12)  Ture, Kwame (Stockley Carmichael) e Hamilton, Charles V. Black Power – The Politics of Liberation – New York, Vintage Books, 1967.