Gavin Francis

Tradução de Wilson Jr.

Original em https://www.theguardian.com/society/2021/feb/11/pure-liquid-hope-what-coronavirus-covid-vaccine-means-to-a-gp-doctor

Por quase um ano, nossa pequena clínica tem lutado com os horrores da pandemia do coronavírus. Poder dar à nossa equipe e aos pacientes mais vulneráveis ​​suas primeiras doses da vacina foi um verdadeiro ponto de virada

Durante a semana, trabalho em um pequena unidade de clínica geral na área central de Edimburgo, com 14 funcionários, cuidando de quase 4 mil

pacientes. Antes da pandemia, costumava ver 25-30 pessoas em consultas presenciais todos os dias. Um ano após o início da pandemia, a necessidade lá fora é a mesma, mas meus colegas clínicos gerais e eu fazemos diariamente umas cinco ou seis consultas cara a cara (ou máscara a máscara), uma visita domiciliar ou duas, e o restante é no telefone ou através de chamadas de vídeo. Não é a melhor forma de praticar a medicina, mas no momento é a melhor que temos.

A primeira vez que ouvi falar do lançamento da vacina foi em outubro, quando nossa gestora da unidade recebeu um e-mail do conselho de saúde perguntando se teríamos capacidade para vacinar os maiores de 80 anos entre nossos pacientes. Dissemos que sim, é claro: no ano passado, quatro pacientes morreram de Covid-19, três deles com mais de 80 anos.

Seria a vacina Oxford / AstraZeneca  a que receberíamos, que não precisa de temperaturas ultrabaixas para armazenamento, mas teríamos que ter um refrigerador de vacinas grande e confiável o suficiente para conter todos os frascos de que precisaríamos. (Isso não é uma obviedade : os clínicos gerais são obrigados a comprar e manter seu próprio equipamento - geladeiras de vacinas não são fornecidas pelo NHS [equivalente ao SUS no Reino Unido])

Sabíamos que seria um desafio conciliar nosso trabalho normal com todos os requisitos do programa de vacinas. Se dedicarmos muito do nosso tempo à vacinação, perderemos o acesso a pacientes com outros problemas médicos. Por trás do coronavírus, há pelo menos duas pandemias ocultadas em andamento. Em primeiro lugar, a de todas as outras condições graves de saúde que não são reconhecidas, porque a atenção do NHS teve, por necessidade, que se concentrar muito no vírus. Em segundo lugar, estamos combatendo uma explosão de dificuldades de saúde mental - ansiedade, vícios, insônia, depressão, automutilação, psicose - desencadeada não apenas pelo vírus, mas pelas medidas que tivemos que tomar contra ele.

Todos os dias ouço novas histórias sobre a tensão que o isolamento impõe aos filhos, aos casamentos, aos que já estão isolados, e estou testemunhando uma epidemia de solidão. Em apenas uma manhã desta semana, tive três consultas separadas com pacientes para quem a solidão era, no fundo, o principal problema.

Um deles era uma estudante desesperadamente infeliz, de apenas 18 anos, confinada em residências universitárias, sem a oportunidade de assistir a palestras ou de voltar para casa. Ela pediu ajuda porque o velho hábito de se coçar - um hábito que ela pensava ter vencido – havia reaparecido. "Simplesmente não consigo ver uma saída disso", disse ela, "não consigo ver como vou conseguir minha vida de volta."

Outra dessas conversas foi com uma avó de quase 60 anos que não via a neta há quase um ano. Recentemente, ela tomou uma overdose de remédios porque não aguentava mais a solidão. Essa overdose, e a consequente internação hospitalar, foi o que me alertou para a maneira como ela estava se sentindo - ela mesma não havia me contatado. “Eu sou um incômodo”, ela ficava me dizendo ao telefone, apesar de minhas garantias de que ela não era tal coisa. "Lamento ser um incômodo."

Antes da pandemia, cerca de um terço das minhas consultas eram sobre saúde mental; agora está entre metade e dois terços, e a lista de pacientes com os quais checo semanal ou quinzenalmente seu humor está aumentando. As pessoas são incapazes, por enquanto, de compartilhar aqueles aspectos de nossa humanidade que nos ajudam, e vêm mais naturalmente - tocar, falar, compartilhar espaço. Espero que o programa de vacinas se mostre um antídoto eficaz para a sensação de desesperança que, nos últimos meses, tem se espalhado e se aprofundado entre muitos de meus pacientes.

Em 9 de novembro, foi anunciado que a vacina Pfizer / BioNTech era eficaz na prevenção da infecção por coronavírus; a aprovação para uso no Reino Unido veio três semanas depois. Também sabíamos que a vacina Oxford / AstraZeneca estava prestes a ser aprovada e, em 3 de dezembro, fomos informados de que a vacinação de todos os funcionários do NHS na região de Lothian começaria em breve.

Após nove meses nos sentindo intensamente expostos cada vez que avaliávamos os pacientes de Covid-19, o alívio foi extraordinário: nosso grupo de WhatsApp da unidade foi tomado por memes e emojis comemorativos. Como a Pfizer foi a primeira vacina a ser aprovada, seria a que a equipe receberia. O primeiro carregamento de frascos chegou a Lothian um ou dois dias depois.

Foi fornecido um número de telefone para a equipe marcar a vacinação. Nos dias seguintes, todos nós passamos longas horas tentando estabelecer contato. Eu falhei em todas as tentativas, e foi uma das minhas colegas que finalmente conseguiu. Quando a ligação foi completada, ela gritou do outro lado do corredor. "Venha rápido! Esta senhora simpática disse que vai incluir mais três nomes! " Ambos nos inscrevemos, juntamente com nossa enfermeira de plantão e a gestora da clínica. Nossa vacinação seria daí a alguns dias. Os demais colegas continuaram com suas tentativas de agendamento, embora alguns desistissem, decidindo esperar até que um sistema mais eficaz fosse implementado.

Para meu compromisso, às 9h em ponto de um dia no início de dezembro, dirigi até o hospital St John's em West Lothian atravessando faixas de névoa congelante; em seguida, saí da névoa congelada do estacionamento, seguindo uma trilha de avisos amarelos laminados, até o último andar do hospital. Embora meu trabalho principal seja clínica geral diurna, faço turnos algumas vezes por mês em St. John's, para o serviço de clínica geral noturno e nos finais de semana.

A vista do último andar, acima da neblina, era clara e luminosa. O sol estava nascendo, mas sua luz laranja estava muito fraca ou o ar muito frio para limpar o ar. Ao sul, quase consegui distinguir a fábrica farmacêutica em Livingston, onde uma empresa francesa, Valneva, tem outra vacina contra Covid-19 em desenvolvimento.

Embora os corredores estivessem silenciosos, eu sabia que as enfermarias próximas estavam se enchendo de pacientes de Covid. Na época, West Lothian tinha uma prevalência maior de coronavírus do que Edimburgo, apenas alguns quilômetros a leste, e estava em um nível mais alto. Ao longo da pandemia, internei vários pacientes nessas mesmas enfermarias - cada um deles sem fôlego e febril, muitos deles em pânico.

Um deles se destaca em minha memória: um homem de 60 anos normalmente saudável, que chamarei de Sr. Denison. Ele morava sozinho e estava com tosse e febre há uma semana, mas - nove meses depois do início da pandemia - não pensou em marcar um teste de Covid. Ele continuou saindo, vendo sua família, conversando com amigos. Geralmente, são de sete a dez dias desde o início da febre que, se os pulmões forem ser gravemente afetados, isto ocorrerá. Bem na hora, o Sr. Denison pediu uma visita domiciliar do clínico geral no dia nove. Sua falta de ar tornou-se tão grave que ele lutava para ir ao banheiro.

Lembrei-me de telefonar para ele do carro para pedir-lhe que se sentasse na porta da frente; depois eu fiquei na soleira da porta para colocar um avental, luvas duplas e viseira. Empurrei sua porta para vê-lo sentado na escada, vestindo um roupão sujo. Ele parecia assustado. Eu me aproximei, coloquei um sensor de oxigênio em seu dedo e uma mão com luvas em seu ombro. Sua respiração estava acelerada, quase 30 por minuto. Os níveis de oxigênio nesses monitores deveriam mostrar 97 ou 98%, mas o do Sr. Denison estava na casa dos 80. Quando ele se levantou para abrir o roupão para o meu estetoscópio, caiu ainda mais. Ele precisava de oxigênio e internação no hospital, então providenciei uma ambulância e esperei com ele até que chegasse.

Isso tinha sido quinze dias antes. Ao consultar o sistema do hospital, fui capaz de acompanhar o curso da sua internação: ele havia começado a tomar o esteroide dexametasona e um novo medicamento antiviral e estava se recuperando bem. A última anotação que vi expressava a esperança de que ele estivesse bem o suficiente para receber alta na semana seguinte. Unidades de tratamento intensivo lotadas chegam às manchetes, mas com a mesma frequência as recuperações lentas e confinadas à cama estão colocando uma pressão imensa no NHS.

Do último andar do St John's, olhando para a luz da manhã cada vez maior, fiquei feliz ao pensar no Sr. Denison convalescendo na porta ao lado, desfrutando da mesma vista. Se ele não estivesse em uma ala restrita “vermelha” da Covid, eu teria ido lhe dar um alô.

Na clínica de vacinas, a enfermeira de plantão, Kirsty, verificou meu nome e data de nascimento, se eu não tinha alergia e se havia lido as informações do conselho de saúde enviadas por e-mail. Enquanto ela tirava a vacina de um frasco, eu vi de relance de algo em escrita cursiva e sinuosa em seu antebraço. "O que você tem aí?", perguntei. Ela ergueu o braço para eu ver melhor sua tatuagem: “Sempre olhe para o lado bom da vida”.

“Parece uma boa filosofia”, eu disse.

Ela riu. “É a única filosofia.”

A vacina Pfizer / BioNTech vem em frascos de 2,5ml, adequados para fornecer seis doses de 0,3ml, com margem de erro. Uma amiga minha que trabalha como curadora para o Museu Nacional da Escócia me perguntou se eu poderia garantir a ela um frasco vazio para a coleção de ciências e saúde do museu. Ela até me deu uma carta oficial em papel timbrado para confirmar que eu não era nem um excêntrico nem um vigarista. – “De jeito nenhum”, - Kirsty me disse. “Até mesmo os números de lote neles precisam ser suprimidos - você não tem permissão nem para tirar a foto de um.”

Acontece que os contrabandistas e falsificadores do mercado negro estão tão dispostos a lucrar com a pandemia que a vacina é mantida sob vigilância por vídeo 24 horas por dia. Era surpreendente imaginar o tipo de mente que buscaria lucro vendendo vacinas falsas. Kirsty me mostrou o frasco: um pequeno frasco de vidro simples, rotulado em preto e branco, com o carimbo “Pfizer BioNTech” e o importante número do lote. Ela puxou 0,3 ml para uma seringa com uma agulha de calibre fino e se virou para mim. “Braço esquerdo ou direito?” ela perguntou.

"Vá no esquerdo", eu disse, "caso seja dolorido." Em seguida, houve um pico familiar, um retinir elétrico de líquido frio infiltrando-se nos músculos, e pronto. “Sente-se na porta ao lado por cerca de 10 minutos”, disse ela. "Não queremos que você tenha uma anafilaxia no meio do corredor." Na bandeja da seringa, vi que ela tinha dois frascos de adrenalina preparados e prontos para uso, por precaução.

Antes de chegar em casa, tive ondas de enjoo e, naquela noite, uma dor de cabeça apareceu, com náusea e membros pesados para piorar. Por cerca de 24 horas, enquanto meu sistema imunológico enfrentava fragmentos minúsculos e inofensivos de Sars-CoV-2 gerados pela vacina, eu mal conseguia sair da cama. Mas era um pequeno preço pela proteção contra o vírus, e no dia seguinte eu estava de volta ao trabalho.

Trabalhei no Natal este ano no St John's - um dos natais mais calmos em que já trabalhei - mas tive o Ano Novo de folga para celebrar (igualmente calmamente) o fim do que tem sido um ano atroz para quase todos. Alguns dias depois, voltei para St. John's para receber um reforço - desta vez sem efeitos colaterais, como se meu corpo tivesse aprendido a despachar o vírus sem problemas. Pouco depois, foi tomada uma decisão nacional de que todos os reforços seriam adiados em dois meses para expandir o acesso à primeira dose. Por um acaso do tempo, fui um dos poucos a ter recebido um ciclo completo e senti uma pontada de culpa por todos os amigos e colegas que não o fizeram.

No início de janeiro, quase todos os residentes de lares de idosos em Lothian receberam a primeira dose, assim como os profissionais de saúde, e começamos a planejar a primeira dose de vacinação para todos com mais de 80 anos. Para a minha pequena clínica, são cerca de 140 pessoas. Listas foram elaboradas e atividades reorganizadas - um grande esforço por parte das recepcionistas e da gestora da unidade, tudo coreografado para garantir que nunca haveria mais de quatro na sala de espera. Tudo o que precisávamos era de um suprimento da vacina. A prioridade foi dada às clínicas com grandes populações de mais de 80 anos, e a minha estava quase no fim da fila. Em meados de janeiro, a vacina ainda não havia chegado.

Todos os clínicos gerais da minha unidade se inscreveram para trabalhar nos centros de vacinação em massa de Edimburgo, que estão se abrindo para administrar vacinas para o resto da população. Os turnos lá são pagos de acordo com as taxas padrão do conselho de saúde - não somos voluntários não remunerados - mas foi impressionante da mesma forma ver multidões de enfermeiras, optometristas, dentistas e médicos oferecendo seus fins de semana e dias de folga para o esforço nacional. Os diretores do NHS também - a velocidade com que agiram, tanto nacional quanto regionalmente, tem sido formidável.

Havia oito ou nove mulheres para cada homem nas filas de registro socialmente distantes. Não pela primeira vez, refleti sobre porque a maioria das pessoas que trabalham em funções como a minha - meio período, assistência comunitária - são mulheres. Entre os 14 funcionários da minha unidade, sou o único homem. Eu também me perguntei se o desequilíbrio estava relacionado ao modo como essa pandemia afetou desproporcionalmente a carreira das mulheres. De volta para casa, perguntei à minha esposa o que ela pensava. “A pandemia acaba de deixar claro o que sempre foi assim”, disse ela. “Temos um sistema que subestima o trabalho de cuidar, mesmo que seja isso que une tudo.”

Como muitos pais, enquanto as escolas estão fechadas, tive que reduzir significativamente o trabalho que posso fazer - tive que desistir de conduzir entrevistas de admissão para o ingresso na faculdade de medicina para o ano que vem, e não fui capaz de fazer qualquer turno substituto para apoiar outras clínicas comunitárias.

Entre as famílias que conheço, o apoio a crianças com necessidades especiais tem sido terrível durante esta pandemia, e a maneira irregular e inconsistente com que as vagas escolares foram oferecidas foi extremamente frustrante para muitos. Escrevi a um diretor de uma escola do centro da cidade depois que um de meus pacientes, cujo filho está no grau severo do espectro autista, me disse que seu comportamento ficou tão perturbado que ela temeu por sua segurança.

Ele tem necessidade profunda de uma rotina previsível, e a incerteza quanto ao fechamento de escolas e restrições de viagens teve um efeito devastador em seu bem-estar. O diretor respondeu dizendo-me que as necessidades do meu paciente eram grandes demais para serem atendidas, pois havia recursos inadequados no sistema para que ele fosse considerado.

Longe de culpar os professores, culpo os critérios impossivelmente estreitos para quem se qualifica para vagas escolares restritas. Embora eu ocasionalmente ouça falar de algumas crianças que estão prosperando com o ensino em casa, é mais comum ouvir histórias que falam de uma miséria crônica, de baixo grau. O sacríficio das crianças é particularmente perturbador, dada a pouca autonomia que têm e o pouco que têm a temer do vírus.

No dia 17 de janeiro, parti de Edimburgo para as Ilhas Orkney, para passar uma semana substituindo uma das profissionais de enfermagem em uma ilha com uma população de apenas 300 pessoas e, felizmente, sem coronavírus. Era uma viagem de seis horas de carro da minha casa em Edimburgo até o terminal de balsas, ao longo de estradas vazias através das Highlands, passando por placas de rodovia que diziam “Fique em casa, proteja o NHS, salve vidas”. Eu fiz a mesma viagem em junho para cobrir a clínica Covid das ilhas, e era enlouquecedor pensar que o Reino Unido foi tão negligente no policiamento da quarentena e tão desorganizado em termos de testes e rastreamento, que este terceiro confinamento havia se tornado necessário.

Todas as viagens para as ilhas foram proibidas, exceto para trabalhadores essenciais. Apresentei a carta confirmando que iria trabalhar para o NHS Orkney e pude entrar em uma fila que consistia em apenas um outro carro.

tempestade Christoph estava chegando, e a travessia de 90 minutos foi difícil. As atividades se resumiam a consultas com apenas três ou quatro pacientes por dia. Embora eu não tivesse sintomas e tivesse sido vacinado, cada paciente foi avaliado por trás de máscaras e luvas, na hipótese de eu estar transmitindo o vírus. Toda hora do almoço havia visitas domiciliares em meu duplo papel como enfermeiro substituto do distrito. Em minhas rondas, ouvi história após história de como Orkney, e em particular suas ilhas menores, foram protegidas - como de fato qualquer ilha tem o potencial de se proteger da pandemia controlando e colocando as visitas em quarentena.

Durante as longas noites de plantão, participei das reuniões de Zoom sobre a logística das operações em Lothian e concluí uma série de módulos online para comprovar minha competência: suporte básico de vida, gerenciamento de anafilaxia, transporte de vacinas e legislação, todos avaliados por meio de uma série de testes online.

Por alguns dias, meu telefone zumbiu com as reações de colegas às camadas de burocracia que tivemos de ultrapassar para oferecer as vacinas contra Covid. Todos eram vacinadores experientes, e suas respostas variaram de furiosos a sarcásticos. Senti-me mais perplexo do que zangado: entender as diretrizes mais recentes sobre o tratamento de reações alérgicas parecia bastante justo. Mas confesso que fiquei um pouco frustrado depois de falhar em um teste, na minha primeira tentativa, porque eu não sabia o nome da lei do parlamento de 1968 que rege as prescrições de vacinas (Lei dos Medicamentos, se você quer saber).

Uma” lei” que é objeto de muitas gozações na medicina, pelo menos na Escócia, diz que qualquer pessoa que chega para a vacinação deve remover pelo menos três camadas de roupa antes de podermos pegar seu braço. (Aqueles que aparecem de colete debaixo de um sobretudo grosso - nós os saudamos.) Mas, na verdade, os atrasos causados ​​pela retirada da roupa abrem a possibilidade de conversa.

Uma das primeiras aplicações que realizei na minha unidade em Edimburgo foi para um homem orgulhoso e quieto, por volta de 80 anos. Não nos víamos desde abril passado, quando sua esposa morreu de Covid-19. Enquanto ele lentamente tirava o chapéu, o cachecol, a jaqueta e o pulôver, depois começava a arregaçar meticulosamente a manga da camisa, conversamos sobre a solidão deste ano, como ele tem estado triste por não ver seus bisnetos, e do funeral sombrio e restrito de sua esposa. Quando o vacinei contra a doença que a matou, ele expressou um agradecimento solene e sincero.

Dar uma vacina é o encontro médico mais simples possível, embora seja um dos mais transformadores. Algumas perguntas, uma investigação incisiva sobre alergias, então limpei seu braço com álcool e coloquei em uma seringa 0,5ml de líquido transparente do frasco de vidro. Eu empurrei a agulha em seu braço, deixando-a afundar no músculo cerca de um centímetro. Depois de um puxão momentâneo no êmbolo, para verificar se eu não tinha colocado a ponta da agulha em um vaso sanguíneo, empurrei o fluido vital para dentro. Agulha colocada no lixo, um esparadrapo, e pronto.

Um a um, os maiores de 80 anos começaram a chegar em nossa sala de espera, com alívio no rosto e gratidão, além de uma espécie de descrença questionadora: isso realmente vai nos libertar? Alguns pacientes que eu não via desde março. A mais velha tinha 95 anos e a mais nova, 79. Entre tantos encontros, lembro-me de uma mulher que me perguntou se esse era realmente o melhor uso das vacinas

"O que você quer dizer?", perguntei.

“Todos nós, velhos, nos tratando primeiro. Você não deveria estar tratando os professores?”

Eu sorri com sua generosidade de espírito. “Não depende de mim,” eu disse. “Agora arregace a manga!”

Apenas um paciente se recusou até agora, apesar de minhas garantias. Se ela contrair Covid-19 como consequência dessa recusa, sei que meus colegas farão tudo o que puderem para ajudá-la. Seus argumentos contra a imunização foram salpicados de teorias de conspiração infundadas recolhidas no Facebook e me fizeram pensar em algo que o grande médico canadense, William Osler, disse sobre os antivacinas um século atrás:

“Eu irei para a próxima epidemia severa com 10 pessoas vacinadas selecionadas e 10 pessoas não vacinadas selecionadas. Eu gostaria de este últimos grupo - três membros do parlamento, três médicos antivacinação (se eles puderem ser encontrados) e quatro propagandistas antivacinação. E farei esta promessa - sem zombarias nem críticas quando eles pegarem a doença, mas cuidar deles como irmãos, e para os quatro ou cinco que certamente morrerão, tentarei organizar os funerais com toda a pompa e cerimônia de uma manifestação antivacinação.”

Agora que estamos há mais de um mês vacinando, a esperança é que continuemos a ver as hospitalizações caírem, caírem e caírem. As primeiras evidências estão confirmando o padrão e, curiosamente, uma amiga de 95 anos da minha família - uma mulher que cuidou de mim quando eu era menino - pegou Covid três semanas após sua primeira dose e desenvolveu uma tosse e febre baixa, mas isso é tudo. Muitas histórias semelhantes estão surgindo, da Covid-19 tornando-se mais amena pela vacinação, com menos necessidade de hospitalização.

Esta é a grande esperança: mesmo que seja impossível eliminar o Sars-CoV-2 da população, e mesmo que a vacina não impeça totalmente você de se infectar com novas variantes do vírus, a vacinação ainda irá mitigar seus efeitos, resultados fatais serão evitados e a sociedade pode lentamente começar a se abrir novamente. Ao fazermos isso, a transmissão aumentará, mas os hospitais não ficarão sobrecarregados.

Os médicos em todos os lugares estão nervosos sobre o que acontecerá se o relaxamento das restrições ocorrer muito rapidamente. Embora a morte por Covid entre os menores de 50 anos seja relativamente rara, ela ainda pode ser uma doença terrível e aterrorizante, capaz de deixar suas vítimas sem fôlego e exaustas por semanas (e em alguns casos, meses) depois que suas febres terminarem.

Um dos meus próprios pacientes, um enfermeiro na casa dos 20 anos, costumava correr 10 km três ou quatro vezes por semana. O programa de vacinação da equipe chegou tarde demais para ele: ele pegou Covid nas enfermarias pouco antes do Natal. Embora agora ele esteja de volta ao trabalho, ele ainda não se recuperou o suficiente para poder voltar a correr.

Pelos próximos seis meses, todos os meus colegas e eu estaremos vacinando conforme a necessidade, quantas horas pudermos. Esta semana, tenho caminhado alegremente pelas ruas na neve, vacinando nossos pacientes que ficam em casa, e não há muitos ainda por vacinar. Na Escócia, o programa está previsto para durar pelo menos até 31 de julho, e a esperança é que todos com mais de 50 anos tenham recebido a primeira dose até maio.

Os números são assustadores, mas há um espírito de expectativa e celebração no ar. Muitos estão começando a ousar fazer planos para um mundo pós-Covid, e estou tentado compartilhar esse otimismo.

Abrindo minha primeira caixa de frascos, pensei em um amigo em Orkney, um clínico geral que já havia vacinado todos as pessoas com mais de 80 anos da sua clínica e que começou a telefonar aos com mais de 70 anos. Nos conhecemos brevemente em Kirkwall, ao ar livre, em minha jornada de Orkney de volta a Edimburgo. “Como foi começar?”, eu perguntei a ele.

“Quase chorei ao abrir aquela caixa de frascos”, disse ele, sorrindo com a lembrança. “Cada um era esperança - esperança pura e líquida.”