Artigo de Jorge Bittar

O mundo vive sob o impacto de uma revolução tecnológica que está transformando profundamente todo o sistema econômico – agricultura, indústria e serviços – com forte impacto no mundo do trabalho, na vida das pessoas e na democracia.

As novas tecnologias não representam apenas uma evolução incremental em relação às anteriores, não estamos apenas subindo um degrau na escada do conhecimento e de suas aplicações na vida dos cidadãos. O que está em curso é, sim, um grande salto tecnológico que, ao gerar profundas transformações, nos coloca na obrigação de procurar entendê-lo e dominá-lo sob a ótica de um projeto de desenvolvimento que, ao contrário do que está em curso, seja democrático, assegure a soberania nacional e promova o crescimento econômico com sustentabilidade ambiental e redução das graves desigualdades sociais e regionais do Brasil.

Historicamente, os momentos de ruptura tecnológica foram aproveitados por muitos países como uma janela de oportunidades para, através da política científica, tecnológica e industrial, promover um salto na direção de um desenvolvimento mais autônomo e independente. É o caso de experiências como as do Japão, da Coréia do Sul e, mais recentemente, da China.

O advento da tecnologia 5G vem acompanhado de outras, revolucionárias, como inteligência artificial, big data, bioengenharia, edge computing, dentre outras. Trata-se de uma oportunidade para o Brasil, um país em desenvolvimento, com um parque industrial incompleto, mas importante, com uma comunidade científica reconhecida internacionalmente, com grande dimensão populacional e territorial.

É momento para dar um salto.

O que é a tecnologia 5G e internet das coisas

O 5G não é apenas uma evolução incremental em relação à geração anterior, o 4G. Não é uma tecnologia que apenas opera com velocidades de transmissão superiores ao 4G, é muito mais.Trata-se de uma plataforma de comunicações absolutamente inovadora e com características que permitem a comunicação máquina a máquina (M2M) com grande eficiência, eficácia, confiabilidade e segurança. Nesse sentido, é desenvolvida para a internet das coisas (IoT). Ou seja, as redes 5G são destinadas às aplicações pessoais, mas também servem de plataforma de comunicações para o desenvolvimento de novas e revolucionárias aplicações para a indústria, para as cidades, para a agricultura e os serviços.

A IoT é um conceito de M2M e é composta de algumas camadas:

  • Na camada base estão sensores ou controles associados ao processo que se deseja monitorar e/ou controlar.
  • A rede 5G foi desenvolvida para conectar esses sensores e/ou controladores a uma plataforma em nuvem de armazenamento das informações.

 

  • Sobre essa plataforma são desenvolvidas aplicações relacionadas ao processo que se deseja monitorar e/ou controlar.

Algumas aplicações típicas de 5G e IoT

  • Cidades Inteligentes: controle de trânsito, iluminação pública, controle do sistema de transporte público, controle de enchentes e deslizamentos de encostas, dentre outros.
  • Indústria 4.0: processos industriais flexíveis e automatizados, com grande produtividade, qualidade, precisão e sustentabilidade ambiental
  • Tele Medicina Avançada: diagnósticos, cirurgias, próteses com grande precisão e qualidade.
  • Agricultura de Precisão: informações precisas sobre solo, meteorologia, plantio de precisão, identificação e prevenção/tratamento de doenças e pragas, colheita de precisão...
  • Veículos Autônomos: controle pleno de veículos e trânsito.

Características funcionais das aplicações 5G

  • Aplicações de missão crítica: são aplicações em que a latência, estabilidade, a segurança e a confiabilidade da rede são essenciais. Exemplos típicos são as tele cirurgias médicas e os veículos autônomos.
  • Volume massivo de informações: em controle de processos complexos, necessita-se de um grande volume de sensores e controladores emitindo/recebendo informações frequentes.
  • Alta velocidade: para determinadas aplicações há a necessidade de que a velocidade de transmissão seja muito alta, é o caso de “streaming” de vídeo 4K que pode ser utilizado, por exemplo, em telecirurgia para assegurar alta qualidade e imagem.
  • Baixa latência: a latência é o tempo decorrido entre a emissão de uma informação e a sua chegada no destino. Necessitam de muito baixa latência serviços como controle de veículos autônomos e tele cirurgia.

 Características técnicas do sistema 5G

  • Velocidades mais altas: de até 100 Mbps no 4Ge até 10 Gbps no 5G –(“massive MIMO”: uso de múltiplos sistemas paralelos de transmissão e recepção). Essas velocidades mais altas, em sistemas de comunicação sem fio, permitem o uso da tecnologia 5G também para realizar conexões fixas de qualidade a usuários (FWA) com custos bem menores do que as conexões com fibras óticas. Trata-se de uma excelente alternativa de acesso à internet para prover esse serviço sobretudo às camadas de menor renda da população.
  • Latência: 10 ms no 4Ge 1 ms no 5G
  • Estabilidade/segurança/confiabilidade: as redes 5G têm especificações que asseguram grande estabilidade, segurança e confiabilidade pois são desenvolvidas para aplicações de missão crítica
  • Network Slicing: esta funcionalidade permite que uma rede 5G, numa determinada localidade, possa ser fatiada em várias redes distintas com diferentes velocidades e latências, por exemplo. Isso permite o uso mais eficiente da rede para cada aplicação.
  • Baixo consumo de energia: as redes 5G foram especificadas e projetadas para ter baixo consumo de energia, em sintonia com o conceito da economia de baixo carbono.

 Infraestrutura de transmissão 5G

As redes 5G são projetadas para trabalhar em frequências altas (>3,5 GHz) ou muito altas (>20GHz). Nessas frequências, a área de cobertura de cada estação transmissora (ERB) é bem menor do que as coberturas em baixas frequências (4G). Como toda ERB deve estar ligada a um acesso em fibra ótica para escoar o grande volume de tráfego, decorre que, para a implantação das redes 5G, precisaremos de um número muito superior de ERBs e de redes de fibras óticas com muito maior capilaridade. Implica reconhecer também que os investimentos em redes 5G serão muito superiores em relação aos realizados para as redes 4G.

O mercado mundial de equipamentos para redes de telecomunicações encontra-se extremamente concentrado e há três principais fornecedores da tecnologia 5G: Huawei, Ericsson e Nokia. As redes desses fornecedores são desenvolvidas com arquitetura e protocolos proprietários, fato que impede que as redes sejam implantadas com equipamentos de mais de um fornecedor. Recentemente foi iniciado um movimento internacional, através de alianças de diversas empresas, para a definição de redes de acesso com protocolos abertos, a denominada “Open RAN”. Já existem no mercado soluções Open RAN para redes 4G e há desenvolvimentos para o 5G. Soluções dessa natureza, se viabilizadas em qualidade técnica e preço, poderão, no futuro, provocar uma maior competição no mercado com a consequente redução dos custos.

Licitação da ANATEL de frequências para o 5G

Até o final do primeiro semestre de 2021, a ANATEL deverá realizar o leilão para frequências a serem usadas pelas operadoras na implantação e operação das redes 5G. No leilão serão oferecidos blocos de frequências em 3,5 GHz e 26 GHz. Outras sobras de frequências serão também oferecidas, mas não se referem diretamente à tecnologia 5G.

Alguns blocos serão oferecidos com direito a uso em todo o território nacional. Deverão ser adquiridos pelas três operadoras nacionais do Serviço Móvel Pessoal (SMP) - Vivo, Claro e TIM. A Oi está vendendo todo seu serviço móvel para a outras três.

Haverá blocos em 3,5 GHz para uso exclusivamente regional, a serem oferecidos aos prestadores de pequeno porte -PPP. Essa foi uma luta vitoriosa para que o 5G não ficasse exclusivamente nas mãos dos grandes operadores. Os PPPs têm dado provas de sua capacidade ao se tornarem, em bloco, os maiores ofertantes do serviço de banda larga fixa (SCM) do país.

Em princípio, o leilão não deve ter caráter arrecadatório, sendo os valores da aquisição das licenças de frequências, convertidos pela ANATEL em obrigações de investimentos a serem realizados pelas empresas adquirentes das licenças.Esses investimentos serão em transporte de internet por fibras óticas a cidades hoje não conectadas por esse meio, e em cobertura das redes 4G e 5G em localidades e estradas não atendidas por esses serviços.O planejamento desses investimentos deverá ser realizado pela ANATEL, com base no Plano Estrutural de Telecomunicações – PERT e é de fundamental importância que seja acompanhado de perto pela sociedade.

A partir de portaria do Ministério de Comunicações, a minuta do edital do leilão incorporou três novas obrigações, que estão gerando debates:

  • Obrigação das empresas implantarem as redes 5G tomando como referência a especificação do Release 16 do 3GPP (organização internacional responsável pela padronização das redes “wireless”). Isto significa que as novas redes deverão ser totalmente “standalone”, ou seja, redes que sejam implantadas de forma totalmente independente em relação à infraestrutura das redes 3G e 4G. As redes 5G têm sido implantadas em todo o mundo a partir do Release 15 do 3GPP que estabelece especificações que combinam a implantação dessa nova rede a partir da rede 4G pré-existente.Os planos preveem que a rede “standalone” seja implantada em momento posterior, quando a tecnologia e suas aplicações estiverem mais avançadas.

A manutenção dessa obrigação poderá retardar a implantação das redes 5G e provocará um aumento no investimento inicial das operadoras.

  • A segunda obrigação adicional apresentada foi a implantação das redes de fibras óticas subfluviais ao longo dos rios da bacia amazônica. Essa inclusão causou estranheza porque os recursos para esse projeto já se encontravam equacionados através das sobras resultantes do projeto de limpeza da faixa de frequências – 700 MHz - da antiga TV analógica, a qual foi destinada ao 4G.
  • A terceira obrigação adicional apresentada foi a implantação pelas operadoras de uma rede celular privativa de governo no Distrito Federal. Para essa rede não há ainda projeto e custos.

A derrota de Bolsonaro quanto à participação da Huawei no fornecimento dos equipamentos das redes 5G

O presidente Jair Bolsonaro anunciou e insistiu no propósito de proibir a Huawei de fornecer equipamentos para a futura rede 5G no Brasil porque, segundo ele, a China seria uma suposta ameaça global à privacidade dos dados e à soberania dos países.
A acusação, que seguiu fielmente a orientação do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, não se baseou em dados concretos que pudessem se constituir em provas materiais de que os equipamentos de 5G da empresa chinesa contivessem dispositivos, conhecidos como “back doors”, capazes de viabilizar a obtenção clandestina de dados que circulam na rede.

Aliás, os “back doors” ficaram conhecidos no Brasil quando, em 2013, o jornalista Glenn Greenwald, baseado em documentos vazados pelo ex-agente da NSA Edward Snowden, denunciou que a agência de segurança dos EUA – NSA – violou as redes de comunicações do próprio Palácio do Planalto e da Petrobras, no governo da presidenta Dilma, e teve acesso a informações estratégicas. Na ocasião, ficou evidente que as empresas americanas fornecedoras de equipamentos de redes de internet, incorporavam nesses equipamentos os “back doors” para viabilizar a espionagem americana.

Portanto, Trump sabia muito bem do que estava falando quando faz acusações de suposto plano para espionagem. Essa tem sido a prática do governo americano. Já em relação à China não há provas de que isso esteja acontecendo.

Na verdade, o que esteve por trás da ofensiva de Trump foi o reconhecimento de que a China se adiantou no desenvolvimento de uma tecnologia que é disruptiva e que contribui para colocá-la à frente dos EUA na corrida pelo desenvolvimento econômico e social. Trata-se, portanto de uma disputa geopolítica. Com efeito, essa tecnologia não é apenas uma evolução incremental em relação ao 4G. Como já dito anteriormente, ela é uma infraestrutura que, ao lado de outras tecnologias como IoT, IA, BIG DATA e EDGE Computing, deverão revolucionar os sistemas produtivos industriais, a produção agrícola, os serviços de toda natureza, enfim o conjunto das atividades econômicas e sociais.

Bolsonaro, ao declarar que poderia vetar a tecnologia 5G da Huawei, apenas deu continuidade à sua política externa de alinhamento acrítico e de absoluta subserviência aos EUA. Uma decisão de enorme impacto como essa, num país com dimensões territorial, econômica e populacional como o Brasil, teria necessariamente que estar fundada numa visão de nação soberana e socialmente justa. Não é, portanto, facultado ao seu governante tomar decisões de caráter estratégico a partir apenas de suas preferências ideológicas, pois as consequências certamente serão trágicas.

A frontal oposição à China no caso da Huawei não é algo isolado. Também no caso da vacina chinesa, a decisão inicial de Bolsonaro de não financiar a produção e a distribuição à população se deu ostensivamente por razão estritamente ideológica e se alinhou com toda a irresponsabilidade que tem marcado sua atuação em relação à grave crise pandêmica. Afinal, o que está em jogo é a vida de milhares de brasileiros.

Mas Bolsonaro acabou sofrendo uma grande derrota. Para obter os insumos básicos para a produção das vacinas a serem fabricadas pelo Instituto Butantan (Coronavac) e pela Fiocruz (AstraZeneca/Oxford), ambos produzidos em fábricas na China,foi obrigado a se ajoelhar diante dos dirigentes chineses e a abandonar o seu veto à Huawei.

A possível exclusão da Huawei traria com certeza enormes prejuízos ao Brasil:

  • Em primeiro lugar, porque, não havendo provas das acusações, nos colocaria numa posição de confronto com a China, a qual é responsável por 40% das exportações brasileiras. Impossível imaginar uma decisão dessas sem que ocorressem retaliações por parte dos chineses.
  • Ao impedir a comercialização desse produto da Huawei, o governo estaria criando uma séria obstrução à competição de mercado, favorecendo empresas como Ericsson, Nokia e Cisco e desenvolvendo uma prática inconstitucional.
  • O possível bloqueio da do 5G da Huawei, estaria também atrasando a implantação dessa infra no Brasil por ações no Judiciário que gerariam insegurança jurídica aos investidores. Uma situação dessas, nos colocaria em posição de inferioridade competitiva em relação aos países que vierem a implantar com agilidade a rede 5G.
  • Os custos de implantação da rede 5G também cresceriam não somente porque os preços da Huawei costumam ser menores do que o dos seus concorrentes, mas também porque haveria a necessidade de substituir parte dos equipamentos pré-existentes em virtude de incompatibilidades entre estes e os equipamentos de novos fornecedores. Quem pagaria essa conta seriam os usuários da rede 5G.

Redes 5G: segurança, privacidade e oportunidade para o desenvolvimento nacional

O advento da tecnologia 5G representa uma grande oportunidade para o Brasil reverter o processo contínuo de desindustrialização, iniciado nos anos 80 e, mais do que isso, para inovar nos serviços prestados aos diversos segmentos da atividade produtiva e da sociedade. Para tal, deverá elaborar planejamento estratégico e desenvolver grande capacidade de coordenar atores públicos e privados. O governo atual, de orientação neoliberal, está na contramão do que os países desenvolvidos estão praticando. Há entre esses países um abandono das teses da globalização radical da economia, e uma reorientação de políticas na direção de medidas mais protecionistas e de busca de maior participação nas cadeias de valor globais.

Precisamos voltar a investir em educação, ciência, tecnologia e inovação para que haja crescimento econômico, redução das desigualdades e uma integração soberana do Brasil no cenário internacional.

Algumas propostas sobre o desenvolvimento da tecnologia 5G e suas aplicações:

  • Que se desenvolva um ambiente atrativo e não discriminatório a todas as empresas que vierem a oferecer tecnologia 5G no Brasil.
  • Que se implante no país um sistema de auditoria técnica para se avaliar todos os equipamentos de todos os fornecedores que potencialmente possam incluir dispositivos que permitam a violação da privacidade. Para tal, nosso país conta com universidades e institutos de pesquisa que estão plenamente capacitados para realizar esse trabalho.
  • Que haja um grande e consistente plano nacional que de desenvolvimento tecnológico e de inovação para as redes 5G e suas inúmeras aplicações, envolvendo as universidades e centros de pesquisa, os governos e as empresas.
  • Que se estabeleçam exigências, às empresas fornecedoras da tecnologia 5G,de contrapartidas de transferência de tecnologia a empresas brasileiras e de conteúdo tecnológico e produtivo local.
  • Que se desenvolva um grande plano nacional de formação técnica para preparar os nossos trabalhadores para os novos desafios tecnológicos da indústria, dos serviços e da agricultura.