Por Antonio Prado  

Essa é uma crise sanitária de dimensões globais. Cada país deve dar sua contribuição para que o vírus não continue se espalhando, adoecendo e matando centenas de milhares de pessoas. Só no Brasil, foram mortas pelo vírus, até agora, mais de 225 mil pessoas[2].

Como é uma doença nova, que não tinha uma vacina até poucas semanas atrás, tampouco um protocolo de tratamento preventivo e da própria doença, as formas principais de contenção vem sendo o isolamento físico, a higiene das mãos com sabonete e álcool, uso de máscaras, evitar contato físico com outras pessoas e aglomerações. Isto não está ao alcance de todas as pessoas, por restrições de renda, necessidade de trabalhar, falta de informação e de capacidade de avaliação do risco. A grande maioria não pode trabalhar em casa, à distância, no chamado home-office. Ou pela natureza do trabalho ou por falta de computador, rede de wifi e habitação adequada. Ou por exigências de comparecimento físico por empresas ou empregadores.

Obviamente que a transmissão e contaminação têm relação direta com boas condições de habitação e infraestrutura adequada nas cidades – inexistentes nas periferias e bairros pobres. E a oferta dos sistemas de transporte urbano, criticamente superlotados, foi diminuída na crise para conter o movimento das pessoas! Ou seja, a capacidade de defender-se da pandemia com eficácia ficou restrita aos bairros limpos e às casas melhores, dos que não necessitam sair de casa para trabalhar ou que podem fazê-lo remotamente, onde compram com entregas à domicílio que serão feitas por jovens trabalhadores com seus veículos próprios, em dupla situação de risco. Este fato se demonstra cabalmente pela distribuição geográfica da contaminação e morte pela epidemia nas cidades: as zonas mais pobres e periferias têm graus de incidência da doença maiores que as zonas mais ricas e centrais.

Como a pandemia afetou as atividades econômicas, os empregos e a demanda da economia em geral, para estimular o isolamento físico e compensar a perda de renda foi criado um Auxílio Emergencial (AE) de R$600,00 por pessoa vulnerável, para sobreviver à crise. O Congresso aumentou o valor inicial de R$200,00 proposto pelo governo e autorizou gastos além do teto constitucional para que milhões de famílias fossem atendidas.

A máquina dos privilégios criminosos foi acionada, como sempre. O AE, que deveria ir somente para famílias vulneráveis, foi pago a centenas de milhares de militares, familiares de políticos e a um amplo segmento de oportunistas da classe média. Centenas de milhões de reais foram pagos a quem não precisa. A fraude foi denunciada, mas somente uma parcela pequena desses recursos foi devolvida. Punições, não temos notícia. A impunidade parece ter prevalecido.

O auxílio emergencial foi pago durante a vigência da calamidade pública decretada pelo governo e não foi renovado a partir de dezembro de 2020. O resultado é um aumento brutal da pobreza e da fome, somadas agora à segunda onda da pandemia do Covid-19.

Mas, o esforço científico por todo o mundo nos trouxe a grande notícia da criação de várias vacinas seguras e eficazes contra o vírus. Como o mundo todo tem que ser vacinado, há uma evidente escassez de doses para as campanhas de vacinação. O governo Bolsonaro negligenciou a importância da doença e sabotou as medidas preventivas aprovadas pela comunidade médica mundial. Essa negligência criminosa foi vocalizada pelo próprio presidente em inúmeras ocasiões. Foi contra a vacina, promoveu recorrentes aglomerações públicas, zombou das precauções recomendadas, fez recomendações de remédios comprovadamente ineficazes como tratamento profilático ou curativo.

O Ministro da Saúde, por sua vez, se mostrou vergonhosamente submisso a esses desmandos e se revelou um péssimo planejador. O resultado é que não temos vacinas suficientes, seringas e outros insumos. O plano de vacinação é patético. Necessitamos de 420 milhões de doses e só temos disponíveis até o momento 8 milhões e a promessa de produção, em breve, de mais 8,5 milhões. Pior é que o ministério recusou ofertas de milhões de doses oferecidas por fabricantes e consórcios internacionais. Assim, começamos a vacinação sem as doses necessárias para um processo robusto. [3]

Surge a busca pelos novos privilégios, que irão se somar aos já existentes, que autorizam que essa corrida se dê. Esse é o comportamento habitual na sociedade brasileira, incentivado agora pela escassez de vacinas. Os primeiros a expressarem isso foram os procuradores públicos, que queriam ser vacinados logo de início, não por necessidades médicas, mas alegando sua essencialidade para o país. Como se os trabalhadores do asseio público não fossem também essenciais ao país como os bravos operadores da justiça. Não tardou e outro estamento pede também tratamento privilegiado, o STF, que oficiou a Fundação Osvaldo Cruz para reservar 7.000 doses para seus servidores. O escândalo foi tão grande, que o presidente do STF culpou o mordomo e demitiu o funcionário que oficiou a Fundação. Como o funcionário mesmo declarou, não agiu sem ordens superiores. Ficará o dito pelo não dito e suas excelências togadas seguirão soberbas com seu dever de defender a Constituição da República. Triste República.

Então, como esperado, vários sistemas de saúde se aproximaram do colapso e, no Amazonas, colapsou totalmente. Pacientes em Manaus começaram a morrer por causa do Covid-19 - sufocados, por falta de oxigênio enquanto estavam sendo tratados. Além dos que não encontravam vagas nos hospitais apinhados. O horror que dezenas de pessoas, com Covid-19 ou não, passaram a sofrer com a falta de oxigênio e até bebês prematuros foram atingidos pelo problema.

Nos dias anteriores ao colapso, ninguém mais que o próprio ministro da Saúde esteve em Manaus divulgando a hidroxicloroquina e alguns vermífugos como tratamento preventivo ao Covid-19. Nada fez sobre o tema do oxigênio, como também não o fizeram as autoridades locais que já tinham conhecimento do problema e haviam informado o Ministério, antes mesmo do general da saúde ir a Manaus.

O STF e procuradores, por sua visibilidade pública, foram contidos na sua ânsia de serem tratados antes do cidadão comum. Mas, uma vez iniciada a vacinação nacional e distribuídas as poucas doses disponíveis, a corrida dos privilegiados se pôs em andamento. Em Manaus, muitas pessoas furaram a fila da vacinação, tomando o lugar de idosos, indígenas e servidores da saúde, todos muito vulneráveis à contaminação e a desenvolver formas graves da doença e por isso mesmo, priorizados para receber a vacina. A imoralidade é flagrante, com o prefeito bolsonarista suspeito de promover o fura-fila para ricos e apaniguados. Não seria o único e tampouco o último. Outros prefeitos foram denunciados pelo mesmo motivo e até os próprios furaram a fila publicamente, com direito a fotos e tudo o mais.

As várias formas de privilégio - o privilégio político, o privilégio estamental e o privilégio social e econômico - se escancararam na crise do Covid-19. Vários meios de comunicação expressaram repúdio pela conduta pouco republicana dos responsáveis nacionais e locais pela vacinação. A imprensa também teve um papel relevante em denunciar o estranho desaparecimento de 50 mil doses das vacinas alocadas para o Amazonas. Espera-se que seja só um erro de controle de estoques.

Antonio Prado é doutor em ciências econômicas pela UNICAMP, foi professor de Macroeconomia na PUC-SP. Trabalhou na ONU como Secretário Executivo Adjunto da Cepal e Diretor a.i. da Divisão de Políticas Sociais e Instituições Rurais da FAO. Foi assessor econômico do senador Aloizio Mercadante na Liderança do Governo no Senado, chefe de departamento no BNDES. Por 23 anos foi técnico do Dieese e nos anos 1990, membro da sua Direção Técnica Geral. 

[2] Fonte: FHU CSSE Covid-19 Data em 31/01/21.

[3] Situação em 24 de janeiro de 2021. Após esta data, vem sendo feitas tratativas de aquisição das vacinas produzidas pelo Instituto Butantan e por outros laboratórios internacionais. No entanto, o cenário segue incerto e com evidente escassez de doses para a cobertura total da população.