Entrevista a Isaías Dalle
A primeira tarefa é vacinar os trabalhadores e trabalhadoras da educação, inserindo-os na lista de prioridades de imunização. Concluída essa etapa, o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil propõe, entre as medidas emergenciais para a área da Educação, que a volta às aulas aconteça em sistema híbrido, alternando os modos presencial e remoto, em esquema de rodízio de alunos. E que a retomada seja feita na lógica do sistema de ciclos: ninguém será reprovado agora, e o período 2020/2021 será encerrado apenas no final deste ano, após um planejamento pedagógico para preencher parte das lacunas que restaram do ano que passou.
Nesta entrevista, a pedagoga Teresa Leitão, uma das integrantes do NAPP Educação (Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas), detalha essas e outras propostas do Plano, que ajudou a redigir. Deputada estadual em Pernambuco pelo PT, Teresa relata que essa luta contra a volta pura e simples das aulas se dá, neste momento, nos grupos que reúnem secretários e secretárias de Educação municipais e estaduais e na pressão de entidades sindicais e movimentos sociais. “O MEC não dá apoio nenhum, nenhum, nenhum”, diz ela.
Acompanhe:
Vamos começar falando sobre volta às aulas em meio à pandemia, inclusive em estágio mais grave do que em outros momentos anteriores. Parece haver um consenso entre educadores de que não é hora de voltar porque isso vai colocar a vida de crianças, professores e familiares em risco. O que deveria ser feito no lugar de uma simples volta às aulas? E aí incluo algumas perguntas. Primeira: o que pode ser feito de diferente? E nos governos democrático-populares, alguma experiência está ocorrendo?
Então, nós estamos com as aulas desde março, abril do ano passado, quando começou a se evidenciar todo o processo da Covid. As escolas foram pegas de surpresa, sem sombra de dúvidas, e o Brasil como um todo, e ao lado dessa surpresa, o desgoverno total, a falta de gerenciamento de como cuidar das pessoas, a briga política que se estabeleceu entre o governo federal e os governos estaduais e municipais, e isso deixou as escolas um durante um mês, praticamente, em busca de uma alternativa. A alternativa que surgiu foi a implantação das chamadas aulas remotas de várias e várias formas, ou por televisões quando havia um canal disponível das casas legislativas ou do próprio governo do estado, através do sistema Zoom e foi muito aplicado também o Google. Todos precisando de um equipamento e de uma rede de internet. E de um professor formado, capacitado para usar esses instrumentos. E aí se verificou um grande desafio. A maioria, diria que quase a totalidade, abraçou esse desafio por uma responsabilidade pedagógica, que é muito própria da nossa categoria, muito própria do magistério. E com o objetivo de manter o vínculo afetivo com os estudantes. Este foi o principal objetivo. É porque é difícil se substituir uma aula presencial por uma aula remota sem a devida preparação. A educação a distância ela é regulamentada, ela existe, mas não é para todo mundo, não é para todos os níveis de ensino, não é para todos os componentes curriculares. É mais para nível superior e ela tem uma forma prevista em lei de acontecer. Não foi isto que foi vivenciado e nem podia ser isso a ser vivenciado. Então foi uma substituição das aulas presenciais pelas aulas remotas com essas duas dificuldades principais: a falta de equipagem e de acesso à internet e a dificuldade de os professores estarem prontos, preparados. Para isso fizeram das tripas coração, como se diz, e deram conta, muito movidos por este sentimento de responsabilidade. Se não, nós teríamos perdido mais estudantes do que nós perdemos. Esse também é um saldo negativo da pandemia, porque o abandono escolar é imenso no mundo inteiro, e no Brasil também.
Voltar agora é o grande problema. A pressão é grande para que se volte. A pressão da rede privada é maior ainda e muitas escolas particulares estão voltando, com o argumento que elas têm condições físicas adequadas, salas maiores, arejadas, podem fornecer álcool gel, equipamento de proteção... Isso é mais ou menos realidade, porque tem escolas públicas também muito bem equipadas, muito bem estruturadas, esse não é o único problema.
A principal exigência para voltar às aulas é a vacina para os trabalhadores em educação, porque a escola é um ambiente de alto risco de contaminação, já provado e comprovado por pesquisas. O estudante que chega, seja que idade ele tenha, ele vem de um espaço coletivo. Sua casa muitas vezes tem um cômodo ou dois onde vivem várias pessoas de todas as idades. Às vezes ele veio a pé, mas às vezes ele vem de transporte público, que é um dos vetores de mais risco da contaminação. Via de regra os ônibus e metrôs são lotados. Esse estudante chega na escola, mesmo que lave a mão com álcool gel, mesmo que seja obrigado a usar máscara, mesmo que haja um distanciamento entre os bancos, as carteiras escolares, há um professor que também vem com sua carga, de casa ou do ônibus, ou a pé ou de carro, que tem sua família. Por mais que se diga que não é para se tocar é muito difícil controlar. Porque é natural do adolescente, é natural da criança, há seis meses, oito meses, nove meses sem se ver, eles vão se tocar.
Então, o que o movimento da educação está exigindo – há um apelo muito grande dos sindicatos, dos secretários de educação, dos governos – é que os educadores entrem na lista de prioridades de vacinação. A educação lida com milhões de vidas. São estudantes, professores, servidores da Educação, de merendeiras, auxiliar de serviços gerais e porteiros. É um contato muito direto, por isso que a gente acha que não é hora ainda de voltar. Mas há exercícios para a volta. O que está se preparando para essas alternativas? Primeiro, a gente deu esse prazo todinho de nove meses para que os governos montassem seus sistemas de aula remotas, que dotassem todos os professores de material e de acesso à internet. Isso não foi 100% ainda atendido porque, se todos os estudantes, se hoje todo mundo hoje tem um celular, para passar um zap, para fazer uma ligação, não é a mesma coisa para estudar.
O tamanho da tela não é adequado para isso...
Houve uma verdadeira invasão de privacidade, Isaías. Os professores também têm seus limites financeiros, limites estruturais, pelos próprios salários que ganham. Não são todos os professores que têm condição de ter um escritório na sua casa para dar suas aulas no reservado. A gente via muitos professores adaptando um cantinho na sua sala de jantar, adaptando o cantinho na sua cozinha, botando uma cadeira em cima de uma mesa para botar o computador em cima da cadeira para a tela ficar no espaço. A maioria de nós dá aula em pé. São coisas pequenas, mas que na prática pedagógica têm uma relevância. Então todo esse ano passado foi um período de
muita adaptação. Como também instalar banda larga nas escolas. O professor podia até ir para escola sozinho, mas às vezes a própria escola não tem essa condição. Por que estou dizendo isso? A transmissão digital é uma realidade, a gente vai precisar dela com pandemia e fora da pandemia. A educação tem que olhar estrategicamente na perspectiva da inclusão, de promover mais inclusão digital para o período pós-pandemia. O que está sendo feito nesse aspecto é tentar um modelo híbrido, em que a gente pode ter dois dias na semana, um dia na semana, de
aula presencial, limitando os alunos por sala de aula, portanto vai ter que haver um rodízio. A escola não pode estar ocupada ao mesmo tempo por todos os estudantes, vai ter que ter um rodízio e nos outros dias se permanecer com a aula remota. Isso porque a pandemia foi responsável por um grande abandono escolar, além do processo de aprendizagem ter sido mais lento. Foi mais lento e muitos conteúdos deixaram de ser acessados. As escolas vão precisar também, dentro do que pode ser feito, de uma nova organização curricular nessas aulas híbridas.
A gente defende que o tenha como primeiro passo o processo de acolhimento, que considere que os estudantes e os professores vão voltar para a escola enlutados e com perdas. É muito difícil você ter uma família hoje sem alguém que se contaminou, que ficou com sequela ou alguém que morreu. Como a educação e o processo de ensino-aprendizagem têm muita subjetividade envolvida, muitos afetos e desafetos, muitas inquietudes, têm muitas certezas, muitas incertezas, é uma carga de subjetividade tão grande, e se as gestões não tratarem desse acolhimento, vão espantar, vai haver desistências. Professores estão inclusive adoecidos. O nível de estresse e comprometimento da saúde mental também é um fato dado. Então é preciso que esse acolhimento trate essa experiência para a gente tentar dar a ela uma conotação de novas aprendizagens à vida e para a escola. O que é o “novo normal”? É a gente continuar do mesmo jeito que a gente era antes? Porque aquele normal também não era bem legal, não é? A educação para mim é quem tem que problematizar. Os conteúdos vão ter que ser revistos no sentido de priorizar, há como você fazer, por exemplo, uma excelente abordagem interdisciplinar tendo como foco a pandemia da Covid. Então se pode trabalhar geopolítica, economia,
a língua portuguesa, geografia, sociologia, matemática, física, química, biologia, tudo... com esse foco. A partir dessa realidade tão pesada, até para os negacionistas.
Esse sistema híbrido pode começar antes mesmo da vacina ou não? Até para o sistema híbrido é necessário primeiro a vacinação?
Primeiro a vacina. Não sei se a gente vai ter força política suficiente para evitar que as redes privadas comecem. Governos estaduais estão jogando isso para meados de fevereiro, para tentar fazer antes o processo de reunião pedagógica com os professores. A gente está orientando os professores, através inclusive das entidades sindicais, que problematizem a questão da vacina. O PT está lançando uma campanha vacina já. Politicamente Bolsonaro não quer vacinar o povo, ele está ganhando com a vacina porque ele está problematizando a disputa entre os negacionistas e os defensores da ciência.
Então, pode funcionar o sistema híbrido melhor do que o sistema regular, com todo mundo na sala. Claro, mas ele precisa ter esses dois focos: a segurança sanitária e a redução de alunos em sala. Mas segurança 100% é a vacina.
E uma nova organização curricular envolve essa questão que eu te falei: que conteúdos são significativos neste momento? Essa nova organização curricular é o sistema de ciclos. O ano passado foi um ano perdido entre aspas, a gente já sabe que houve lacunas curriculares grandes. Uma criança que estava em alfabetização, ela vai ter que recomeçar. Algumas são muito inteligentes, em casa a mãe e o pai ajudam, ela deu um estalo, mas não são tantos os casos assim em que a criança consegue se alfabetizar sem um estímulo pedagógico. As perdas do ano passado, se estima que pedagogicamente serão anos para uma recuperação total. Então a maioria dos estados não considera o próximo ano como um ano para ser reprovado. Não é que tenha havido aprovação automática, é que vai haver uma avaliação diagnóstica. 2021 não pode ter avaliação censitária, ninguém pode ser reprovado porque não alcançou a nota de sete, oito ou nove, dependendo do sistema. Vai ser uma avaliação diagnóstica para se verificar o que foi e ficou apreendido de todo esse processo. Eu apelo muito para que se considere a subjetividade e os processos de aprendizagem: do que é viver uma pandemia, o que é viver em isolamento, o que é ficar em isolamento sanitário em um cubículo, um por cima do outro, faltando água, o medo, a insegurança. Então isso é para ser feito até meados de 2021, lá para junho, quando então se conclui o ciclo 20/21. E então 2021 inicia o seu próprio ciclo de aprendizagem, 21/22.
E de acordo com esse andamento, com a recuperação de tempos e espaços dos currículos, com o retorno, a gente vai ter que buscar aluno em casa. Têm situações que a gente vai ter que buscar os alunos, fazer um processo de retomada. Aí depois disso se conclui o ciclo 2021. Eu espero que isso tudo sirva de um grande aprendizado para esse novo normal. Isso é o que a gente defende como emergencial, que está inclusive no nosso texto do plano e que está em exercício em algumas gestões do PT e em algumas gestões que não são do PT. Existe um grande dificultador, que se chama MEC. Não há nenhum estímulo do MEC para as redes e para os sistemas, nenhum, nenhum, nenhum. O ministro é ausente – também é até bom, que ele quando fala, só sai besteira. E aí a articulação dos secretários estaduais de educação que se dá através do Consed, que é o Conselho Nacional de Secretários de Educação, e da Undime, que é a União dos Dirigentes Municipais de Educação, é que estão fazendo essas trocas aí.
Como é que está a correlação de forças entre os secretários estaduais? Existe um consenso em torno do sistema de ciclos?
Eu diria não é não é muito favorável a nós. Nós só temos quatro governos, mas tem uma certa unidade nesta leitura de que algo precisa ser feito. Na leitura de que houve perdas curriculares, na leitura de que a escola é um espaço de muita contaminação, na leitura de que faltam equipamentos e dessa desigualdade entre escola pública e escola particular. A desigualdade que a gente viu agora na pandemia foi muito de condição de acesso para os alunos da escola privada. Muitas implantaram o sistema remoto e não houve problema, todos tinham seu laptop, seu computador, seu notebook. Não foi de abordagem pedagógica propriamente. Foi de condições materiais mesmo.
Teresa, quando se fala dessa desigualdade, que é evidente, entre os alunos das escolas privadas – lembrando que nem toda a escola privada é um primor – e das públicas, existe a ideia de que isso seria mais uma evidência da inferioridade do ensino público. O que você acha?
Mas não é nem inferioridade, eu digo que é de limites materiais. As melhores experiências pedagógicas estão na escola pública. Eu fui coordenadora pedagógica durante sete anos de uma escola de formação de professores, o Instituto de Educação de Pernambuco, que era campo de estágio da Universidade Federal, do curso de Pedagogia. Era tanta gente que vinha lá para saber como é que a gente trabalhava, inclusive de outras universidades. Porque é nesse chão, da escola pública, que se constroem as melhores experiências. A escola privada, com raras exceções, ela tem que entregar um produto. E esse produto é a aprovação no vestibular. O Enem foi uma tentativa de alterar um pouco a meritocracia de abrir mais as vias de acesso. O que foi que as escolas privadas começaram a fazer? Pegavam o programa do Enem de um ano anterior e aplicavam como plano de estudo do ano seguinte. A escola pública não faz isso. Ela consegue aprovar no Enem, mas ela consegue mais que isso, com todas as limitações que têm. Porque o foco é outro. A escola privada tem que dar satisfação a quem paga.
Mas há escolas inovadoras, muito abertas. Eu tenho dois netos. Eles estudam na escola privada alternativa. Ficaram em aula remota. Uma reação totalmente diferente. Minha neta é adolescente, está com 13 anos. Ela fala assim: “Amei. Mas às vezes eu fecho quando eu estou chateada”. O menino, foi luta! Ele tem oito anos. Foi luta nas primeiras aulas. Aí num determinado momento ele disse “Estou adorando. A minha professora foi a revelação da pandemia. Eu nem gostava muito dela ela, agora ela foi a revelação”. O foi que eles fizeram? No final do ano eles abriram uma aula presencial para cada turma para fechar o ciclo. Com todos os cuidados. Eles dois relatando você morre de rir. Foi um acontecimento. E agora vão retornar no sistema híbrido. Mas é uma escola cooperativa, não visa o lucro.
A desigualdade não é de quadros, de qualidade de professor, até porque muitos dão aulas nas duas redes. Não é de proposta pedagógica. As experiências mais ousadas existem nas escolas públicas. O que há é o que a gente antigamente chamava de “currículo oculto”: são as oportunidades que o aluno de classe mais elevada tem das atividades extras-escolares. Inglês fora da escola, aula de computação fora da escola, aula de artes fora da escola, de esportes fora da escola... Então quando ele vem para escola ele já traz essa carga toda. E o aluno da rede pública não tem. Para muitos o único equipamento cultural é a escola, então ela tem que prover tudo. Existe desigualdade social, que impacta nas formas educacionais.
Qual a mensagem que você deixa para as mães e os pais de alunos da escola pública se caso prevalecer a ideia do sistema híbrido e do sistema de ciclos, esses temas que o PT e os partidos progressistas estão defendendo?
Que acreditem na escola como um instrumento e um espaço de promover educação e de enriquecimento cultural e de construção de aprendizagens. Esse é o papel da escola mediado por afetos e por relações sociais. E vou dizer igual a um aluno, num áudio que rodou logo no começo da pandemia. Para mim foi a maior declaração de amor feita a um professor. Chega mesmo a me emocionar. Ele diz pra professora: “Prô, eu não estou conseguindo estudar, não estou conseguindo fazer a minha tarefa. A minha mãe, ela não consegue ensinar, sabe por quê? Porque a minha mãe trabalha no restaurante, e ela tem mania de comida. E quem tem mania de ensinar é você prô. Volte logo”.
Ele reconhece, na sua inocência, que professor é uma profissão, a tarefa
de ensinar, a mania, como ele disse, não é qualquer um que sabe ensinar. Nem a mãe, que é a pessoa mais próxima. Então é uma profissão e precisa ser respeitada.
E além disso a presença física não tem tela de computador que substitua.
Espero que os governos tenham se tocado para isso.
Assista a íntegra: