Editorial de The Nature, tradução de Wilson Jr.

Original em https://www.nature.com/articles/d41586-021-00183-z

O terceiro relatório de progresso da Nature, lançado no final do primeiro ano da pandemia, destaca as principais descobertas da epidemiologia - desde soar o alarme precoce até acompanhar o impacto de novas variantes

A epidemiologia é essencial para o combate a qualquer doença. O estudo de como as doenças se propagam, e por quê, tem se destacado na luta para compreender, conter e responder à Covid-19. Análises de dados sobre infecções e mortes e projeções de estudos que modelam a disseminação do vírus têm conduzido decisões políticas em todo o mundo. Muitos deles, como o lockdown de países, a imposição de quarentenas e o distanciamento social obrigatório e o uso de máscaras, são agora comuns.

Este editorial - a terceira parte da série de relatórios de progresso da pandemia da Nature - explora alguns dos principais desenvolvimentos de pesquisa que ajudaram a iluminar a natureza da infecção e a escala da pandemia.

Também destacamos como a epidemiologia será importante à medida que a pandemia progride - por exemplo, na compreensão do impacto potencial das novas variantes que estão causando estragos em todo o mundo. A epidemiologia está mudando o curso da pandemia, mas o coronavírus também tem aplicado um teste de estresse sobre a epidemiologia, e este relatório explora brevemente como o campo está mudando como resultado.

O papel inicial da epidemiologia

Já faz mais de um ano desde que começaram a surgir relatórios de um coronavírus até então desconhecido causando sintomas semelhantes aos da pneumonia. Em 5 de janeiro de 2020, foi relatado que o vírus infectara 59 pessoas na cidade de Wuhan, na província chinesa de Hubei; 7 estavam em estado crítico. Em 20 de janeiro, as autoridades chinesas haviam relatado mais de 200 infecções e 3 mortes.

Inicialmente, pouco se sabia sobre a transmissibilidade do vírus, mas isso mudou rapidamente. Em meados de janeiro, os epidemiologistas começaram a relatar os resultados dos estudos de modelagem, que indicavam que o número de casos provavelmente seria muito maior do que o inicialmente documentado.

Esses estudos descobriram, por exemplo, que a taxa de '0' - que descreve o número de pessoas para as quais uma pessoa infectada passará o vírus, em média, se o vírus puder se espalhar sem controle - está entre 2 e 4. Estudos também estimaram parâmetros cruciais para a compreensão do potencial epidêmico do vírus. Isso incluiu seu período médio de incubação - o tempo entre uma pessoa ser infectada e o início dos sintomas - e a proporção de pessoas para as quais a infecção será fatal. Mesmo no início, ficou evidente que o risco para pessoas com mais de 60 anos era substancialmente maior do que para grupos de idades mais jovens. Algumas estimativas sugerem que mais de 1 em cada 10 pessoas com mais de 80 anos que foram infectadas não sobreviveriam.

Nessas primeiras semanas, os pesquisadores trabalharam com dados limitados dos pacientes. No entanto, à medida que mais dados foram disponibilizados, os epidemiologistas conseguiram confirmar que o vírus poderia ser transmitido por pessoas sem sintomas e que tinha alto potencial pandêmico.

Tomados em conjunto, esses estudos ajudaram a alertar muitos governos para o fato de que a situação podia ser muito mais grave do que eles haviam previsto. Os resultados sugeriam que os hospitais em todo o mundo precisavam se preparar para um alto número de internações em terapia intensiva.

No final de janeiro, a Organização Mundial da Saúde declarou uma Emergência de Saúde Pública de Atenção Internacional, que incluía aconselhamento aos países sobre a implementação de medidas de saúde pública, incluindo teste e isolamento de pessoas infectadas e rastreamento e quarentena de seus contatos. Esses movimentos foram baseados, em parte, em pesquisas feitas por epidemiologistas após surtos anteriores de doenças infecciosas. Mas poucos países seguiram esse conselho.

Ao mesmo tempo, a comunidade epidemiológica também passou a se preocupar com a avaliação de medidas que ajudassem a conter o vírus.

Confinamentos e máscaras

À medida que o número de casos começou a disparar, as opções dos países para reduzir infecções e mortes eram muito limitadas. Era difícil saber quais regimes de medicamentos poderiam ajudar a combater a doença e não havia vacinas. Na ausência de tais ferramentas, os pesquisadores começaram a modelar a eficácia das chamadas intervenções não farmacêuticas.

Seus modelos sugeriram que infecções e mortes poderiam ser reduzidas se as pessoas usassem máscaras e mantivessem um certo grau de distância umas das outras e se mais pessoas ficassem em casa.

Wuhan entrou em confinamento em 23 de janeiro e, em meados de fevereiro, o movimento estava sendo restringido em cerca de 80 outras cidades da China. Alguns meses depois, os pesquisadores confirmaram que uma série de medidas de saúde pública, incluindo o fechamento de escolas, a restrição de viagens e a redução da reunião entre as famílias, reduziram as taxas de transmissão em Wuhan.

Estudos de fora da China também afirmaram posteriormente que a transmissão caiu consideravelmente após o fechamento de instituições de ensino, encontros limitados e fechamento de negócios [não] essenciais. Além disso, os pesquisadores previram que as cidades que atrasaram a promulgação de restrições teriam que manter as restrições em vigor por períodos mais longos antes que o vírus pudesse ser controlado.

Embora o uso de máscara seja conhecido por ajudar a combater a disseminação de muitas doenças respiratórias infecciosas, a falta de testes controlados e dados diretos significava que mais tempo seria necessário antes que os pesquisadores pudessem estabelecer a eficácia da medida contra o coronavírus. Mas, no verão [no hemisfério norte] de 2020, uma série de estudos descobriram que as máscaras contribuem para desacelerar a disseminação do coronavírus.

Novos desconhecidos

Como o vírus continua a se replicar em grande parte do mundo, novas variantes surgiram e estão gerando novos questionamentos para os epidemiologistas. Os pesquisadores dizem que essas variantes mais recentes, como B.1.1.7 (também conhecido como VOC 202012/01), identificado pela primeira vez no Reino Unido, são mais transmissíveis e potencialmente mais graves do que as linhagens anteriores do vírus ( go.nature.com / 3a9i9p4 ).

Essas descobertas têm implicações nas intervenções políticas baseadas em dados anteriores sobre transmissão. Os epidemiologistas precisarão reavaliar, com base em dados mais recentes, se as diretrizes sobre intervenções como o distanciamento social precisam ser revisadas e tornadas mais rigorosas para levar em conta as diferentes maneiras como as novas variantes se comportam.

Outro novo desafio para os epidemiologistas é medir como as vacinas que estão sendo aplicadas em todo o mundo afetam a disseminação do vírus. Os países onde as inoculações já começaram poderão em breve tentar relaxar as restrições, especialmente se os casos e mortes caírem para os níveis observados antes do início da segunda onda. Mas não devem fazê-lo antes de os epidemiologistas estabelecerem até que ponto as vacinas estão contribuindo para o aumento da imunidade e até que ponto a queda nos casos é resultado dos efeitos das restrições.

A Epidemiologia está mudando

A pandemia mudou a epidemiologia. Tal como acontece com muitos campos que estão diretamente envolvidos no estudo da Covid-19, os epidemiologistas estão colaborando além das fronteiras e fusos horários. Eles estão compartilhando seus dados usando plataformas online - os servidores de pré-publicação estão dando aos cientistas acesso antecipado aos resultados - e os periódicos estão publicando em um ritmo mais rápido.

A própria epidemiologia está se expandindo, com o envolvimento de pesquisadores de outras áreas, como física, matemática, informática e ciências de redes, que vêm contribuindo com suas ideias e conhecimentos. O governo dos EUA anunciou que estabelecerá um Centro Nacional para Previsão de Epidemias e Análise de Surtos. Esperamos que este seja o equivalente epidemiológico de um escritório meteorológico central, um órgão independente que fornece previsões usando poder computacional avançado e os melhores dados disponíveis. Outros países devem considerar fazer o mesmo.

Com muito mais pesquisadores ingressando no campo de diferentes disciplinas - e mais pessoas usando dados epidemiológicos, incluindo o público, legisladores e os meios de comunicação - os pesquisadores devem encontrar maneiras de garantir que seus dados e descobertas sejam comunicados de forma transparente e para garantir os mais altos padrões de pesquisa e ética de dados.

Desafio de comunicação

A pandemia empurrou epidemiologistas e modelos epidemiológicos para os holofotes das políticas e dos meios de comunicação como nunca antes, e eles enfrentaram muitos desafios. A epidemiologia - em particular, a modelagem e previsão de epidemias - depende de métodos estatísticos para fazer previsões probabilísticas a partir de dados em tempo real.

Essas previsões iniciais geralmente não são precisas, em parte porque os dados subjacentes podem ser incompletos e categorizados de forma inconsistente. Com o tempo, à medida que os dados melhoram e mais grupos de pesquisa são envolvidos, os resultados começam a parecer mais certos. Mas, frequentemente, decisões como impor restrições ao movimento precisam ser tomadas antes que haja certeza. Os epidemiologistas precisam comunicar tanto a certeza quanto a incerteza de suas descobertas para que as melhores decisões possam ser tomadas.

Isso significa que os pesquisadores tiveram que aprender como comunicar a incerteza inerente em seus modelos e previsões de tal forma que as pessoas possam entender que uma previsão imprecisa não invalida o modelo e que uma conclusão geral ainda pode ser mantida. Significou também que as pessoas e os formuladores de políticas foram expostos a uma nova terminologia - palavras e frases que ajudam a explicar e visualizar a incerteza - e a modelos que fornecem uma gama de previsões probabilísticas do melhor ao pior cenário.

Esses desafios também representam uma oportunidade. Eles fornecem uma possibilidade de mostrar a prática da ciência enquanto ela está acontecendo, em tempo real - algo que apenas os pesquisadores normalmente veem. A pandemia ajudou as pessoas a entender que a ciência, por sua própria natureza, precisa ser continuamente corrigida e refinada, suas conclusões mudando conforme o equilíbrio das evidências muda. Isso contrasta com a forma como muitos podem ter visto a ciência - como um corpo de conhecimento que é fixo e imutável. A mudança em como a ciência é percebida pode dar a impressão de que os cientistas estão mudando de ideia, mas fazer isso quando os fatos mudam só pode ser uma coisa boa.

Se o ano passado nos ensinou alguma coisa, é que o conhecimento das ferramentas de saúde pública e o acesso aos dados não são suficientes para controlar uma pandemia. As pessoas têm um desejo natural de certeza diante de algo tão alarmante quanto uma pandemia, mas a ciência que informa a resposta à pandemia, por sua natureza, opera por meio de probabilidades. Isso não diminui o impacto da epidemiologia, mas, ao contrário, destaca a importância de manter uma conversa contínua e transparente entre pesquisadores, legisladores e o público.