Por Ivone Gebara, filósofa e teóloga ecofeminista de tradição católica, doutora em Filosofia e Ciências Religiosas

Quando alguns de nós julgávamos que a democracia prescindiria da interferência das religiões na política, que estaríamos construindo um Estado de direito e liberdade para todos os cidadãos/ãs e nossas leis garantiriam a igualdade e a diversidade, encontramo-nos hoje com um velho fenômeno: as religiões justificando políticas.

Como entender esse fenômeno que nos faz pensar que nossa democracia agora tem cheiro de teocracia? Será que a religião ou as religiões tomaram conta da política de Estado? Será que a diversidade do povo e de suas crenças perdeu sua capacidade política de diálogo democrático? Será que a democracia capitalista é de fato democracia ou apenas apoderou-se deste nome para seguir iludindo as cidadãs e cidadãos?

Uma teocracia mais do que a expressão social aplicada a uma religião é a dominação da política e da sociedade por leis religiosas. Mas será que é isso mesmo que está acontecendo no meio de nós? Não haveria um pequeno equivoco de ver surgir esse conceito sobretudo dos ambientes da esquerda política como um conceito acusatório da religião e talvez até de sua intromissão na política. Nada como distinguir conceitos para compreendê-los melhor.

A complexidade da situação atual nos convida a repensar não apenas o papel das religiões, mas sobretudo o papel da política e dos seus fundamentos assim como o significado do que estamos vivendo quando em nome da democracia acusamos as religiões de intromissões teocráticas.

Gostaria de sublinhar a importância da expressão ‘estamos vivendo’ para tentar sair de ideias pré-concebidas, de conceitos autônomos, de universalismos baratos que nos levam mais a um ‘dever ser’ imaginário do que à realidade de nosso humano cotidiano. A dificuldade de analisar algumas manifestações do real como elas se apresentam é marcada pela imaginação sobre aquilo que não existe, é plasmada sobre um mundo de maravilhas que pode ser possível apenas como sonho. Queremos muitas vezes o impossível e nos fixamos nessas ideias sem nos aproximarmos da realidade que nos constitui que a vida provisória nua e crua que temos com sua dose constitutiva de esperança.

Na verdade, quanto mais levantamos as questões sobre o real mais sentimos dificuldade em coaduná-las às nossas teorias políticas e sociais passadas e, por isso somos de novo convidados/as a primeiro ousar descrever o real que nosso corpo vive e expressa nas minucias das entranhas sociais.

O que percebemos em primeiro lugar em nossos tempos é o empobrecimento total da Política, é a desintegração real do sentido da Democracia, é a perda do lugar social das Religiões na vida das comunidades humanas sobretudo citadinas. Tudo virou confuso, um palavreado mágico liberado sem clareza e sem  delimitações, sem responsabilidades a serem vividas e analisadas. Perdemos a noção dos limites e das responsabilidades específicas achando que a inclusão democrática significa a exclusão de limites. Manifestamos nossas raivas uns dos outros criando memes, charges, acusações, emitindo julgamentos sobre uns e outros como se nesses jogos adolescentes nos sentíssemos vencedores ou lutadores pela justiça e a liberdade. Todos querem vencer. Todos querem evitar a dor e a morte de seu jeito.

Nesse momento me vem à lembrança o filósofo Sócrates que como sabemos não escreveu nada. Sobre ele escreveram seus discípulos. Não escreveu talvez porque acreditava que buscar a verdade do vivido se fazia junto com seus discípulos, uma verdade vivida e afirmada de maneira plural a partir das experiências. Nós contemporâneos saímos dessa dinâmica e estabelecemos conceitos fixos nos quais temos que nos ajustar individualmente sem ceder à realidade conflitiva da convivência na diversidade.

Na mesma linha Jesus de Nazaré nada escreveu, mas dele e sobre ele escreveram e a partir desses escritos fixaram dogmas e verdades absolutas, infalibilidades e leis divinas. Para Jesus eram as situações, as pessoas concretas que anunciam sua própria verdade e a partir delas se lidava e se negociava passos e caminhos. Creio que por aí vai uma inspiração para enfrentarmos a falta de sentidos que nos acomete hoje.

O que fazer de nosso atual declínio em todas as áreas da vida humana quando anunciávamos para nós mesmos um aperfeiçoamento cada vez maior do ser humano que lhe permitiria suprir às suas necessidades e viver uma vida feliz?

Dissimulamos a falta de compreensão da Política e da Democracia escondendo-nos em Deus, atribuindo-lhe um ser específico e uma vontade própria que imaginamos poder responder às nossas irresponsabilidades. Quando não há respostas políticas e sociais o apelo a Deus ‘acima de tudo’ se torna uma resposta enigmática sem dúvida, mas uma resposta poderosa. Quando não há vontade política a vontade desconhecida de Deus se torna um álibi que responde à ineficácia do poder. Quando não sabemos mais o que são os direitos democráticos apelamos para o amor divino que milagrosamente nos sustentará através das vozes de pastores, milagreiros, políticos religiosos e adivinhos. Na realidade embora possa parecer, tal realidade não é uma teocracia. É uma banalização da religião. É uma apropriação grosseira da religião como instituição cultural. É um artificio político de sustentação  de um poder sem alicerces reais, é um cosmético que se usa quando não se tem coragem de afirmar publicamente a incompetência política diante da necessidade de soluções urgentes. É ceder ao poder das autoridades religiosas em troca de benefícios sociais de suplência quando o Estado deveria assumir suas responsabilidades. Esse mesmo artifício é muitas vezes usado pelos religiosos que usam das forças imaginárias chamadas impropriamente de ‘espirituais’ e acabam fortalecendo a irresponsabilidade social diante das dores reais do povo.

Nessa mesma lógica, outros dirão que a última palavra deve ser da ciência, uma nova religião. Mas qual ciência vai me consolar de ter meu filho nos braços morto de fome? Qual ciência vai me consolar da morte de meu amado sem oxigênio delirando de febre no corredor do hospital? Qual ciência vai sanar o analfabetismo crescente em nosso meio?

Da mesma forma de que me adianta proclamar a laicidade do Estado quando na sua decadência total os políticos apelam para deus esperando que dele venha a solução política?

A palavra teocracia esconde a realidade que não queremos enfrentar. Com ela, podemos criar outros deuses ou deusas como a ciência e a tecnologia. Essas divindades científicas e tecnológicas embora nos beneficiem nos invadem, nos ordenam, nos condicionam, nos apaixonam, nos pedem sempre mais e mais. Elas estão conosco todo o tempo. Dormimos e nos levantamos com elas. Sua potência universal comunicante cabe num pequeno aparelho dentro de nosso bolso, debaixo do travesseiro, na cozinha, no banheiro, nas igrejas, nas ruas. É este o novo sistema religioso ‘teocrático’ concreto mais temível do que as imposições imaginárias das tradicionais instituições da religião. Ao menos, apesar de sua cumplicidade com os poderes estabelecidos, as religiões tradicionais inventaram formas de consolo, abrigaram dores à espera de cicatrização. Mas hoje elas também se corromperam, negaram suas razões de ser, seus objetivos maiores de sustentação da precariedade humana, tornaram-se poderes imperiais, servas do capitalismo. Tornaram-se ‘divertissement’, divertimento televisivo de massa. Tornaram-se mercadoria cara e barata ao mesmo tempo. Tornaram-se ‘espetáculo’ de conversas com deus, conversas que pretendem atender aos desejos do Altíssimo como fazem  grupos que desejam construir uma nova basílica ou templo para que deus tenha uma casa nova. Não se pensa prioritariamente  em dar mais casa para os banidos do direito à moradia e nem trabalho para os que perambulam cada dia à sua procura.  Teocracia na economia! Ou melhor economia fundada no produto deus! Compra-se e vende-se deus conforme as necessidades e mente-se sobre seus efeitos para que o comércio continue funcionando. Essa ‘teocracia’ mascarada tem que guardar as aparência de uma coerência inexistente. Por isso apropriam-se dos corpos dos pobres e especialmente das mulheres, querem legislar sobre eles e mostrar sobre eles a vontade de seu deus. Mas, hoje os corpos femininos na sua diversidade não querem mais se submeter a ordem patriarcal exploradora. Rebelam-se. Estão em guerra contra seus santos algozes, estão abrindo novos caminhos para a religião da solidariedade e da ternura para além das fronteiras e dos poderes de outrora.

Estamos todas e todos numa barca comum que está naufragando e não há como evitar o naufrágio. Talvez seja necessário de fato naufragar e ao mesmo tempo construir novos botes capazes de sustentar a renovação da vida. Ajudar o fim dessa decadência que nos assola e conversar sobre novas possibilidades de vida que se abrem para além das muitas ‘cracias’ ainda presentes.