Atrasos nas vacinas revelam um elo inesperado nas cadeias de suprimento: carência de trabalhadores

Anna Nagurney[1]

Tradução de Artur Araújo para artigo publicado em The Conversation

Depois da emoção inicial após a autorização das primeiras vacinas contra Covid-19, uma dura realidade se manifestou. Pessoas que querem uma vacina não podem obtê-la, alguns condados têm mais do que outros e os idosos estão acampando para obtê-la como antigamente podem ter feito por ingressos para um concerto de Bruce Springsteen.

Tudo isso parece ser uma indicação de problemas na cadeia de suprimentos ou de falhas de sistemas. Na verdade, é mais uma falta de funcionários para apoiar as cadeias de abastecimento e distribuição. Alguns estados estão até considerando convocar a Guarda Nacional.

Eu sou uma especialista em cadeias de suprimentos e construo modelos e algoritmos para identificar como melhorar suas operações, bem como identificar suas vulnerabilidades. Os problemas trabalhistas – e não os levar em conta – contribuíram com destaque para esses atrasos. Em artigo recente estudei o efeito das restrições de trabalho nas cadeias de abastecimento e possíveis interrupções. Nele quantifico os efeitos das mudanças na disponibilidade e produtividade da mão de obra sobre os fluxos de produtos, nos custos das empresas e nos preços ao consumidor.

Do fabricante ao mercado

À medida que os países evoluíram de sociedades agrárias, onde alimentos e outros bens eram consumidos perto de onde eram produzidos, os negócios se tornaram mais complicados e se espalharam. As cadeias de suprimentos surgiram como redes que unem fornecedores de matéria-prima a outros fornecedores, fabricantes e parceiros, tais como gerenciadores de armazenagem e fornecedores de serviços de frete.

Cadeias de suprimentos são redes com links correspondentes a importantes atividades de produção, transporte, armazenamento e distribuição. Os canais nas cadeias de abastecimento conduzem o fluxo de produtos dos nós de origem aos destinos.

Antes da década de 1990, as cadeias de suprimentos focavam em custo, eficiência e velocidade, mas não eram suficientemente ágeis para se adaptar às mudanças nas demandas, bem como às possíveis interrupções. Just-in-time tornou-se a estratégia dominante para os fabricantes de uma vasta gama de produtos, desde eletrônicos até confecções para varejo de massas [fast fashion].

Com a Covid-19, os fabricantes perceberam rapidamente que a entrega just-in-time não funcionava mais. Cadeias de suprimentos, de alimentos a EPIs, medicamentos e vacinas, foram revolucionadas pela alta tecnologia na última década. Os exemplos incluem o uso de sensores para medir a temperatura em cadeias de frio e GPS para rastrear produtos valiosos à medida que se movem ao redor do globo.

Programas de otimização sofisticados garantem que os veículos de entrega sejam encaminhados da maneira mais eficiente, com os pacotes que você encomenda online chegando à sua porta em poucos dias. Os algoritmos antecipam suas necessidades e pedidos de produtos.

O que a pandemia de Covid-19 revelou dramaticamente é que, sem o elemento humano, os frigoríficos não podem funcionar; produtos frescos não podem ser colhidos; mercearias não podem ter suas prateleiras supridas; os EPIs não podem ser produzidos e distribuídos, e a produção da vacina contra Covid-19 pode carecer de mão de obra para garantir a qualidade e eficácia do produto, bem como sua distribuição.

Finalmente, sem profissionais de saúde para administrar as vacinas, a batalha contra o coronavírus não pode ser vencida. E muitos hospitais já estão sem pessoal devido à pandemia.

Incluindo o trabalho humano na análise de vulnerabilidade da cadeia de suprimento

Em meu trabalho, investigo como otimizar as cadeias de abastecimento de produtos perecíveis, do sangue e dos alimentos aos produtos farmacêuticos e vacinas, para que os produtos necessários sejam entregues em tempo hábil, com boa qualidade, sem deterioração.

Para fazer isso com eficácia, calculo os recursos necessários e os custos associados. Também investigo o que pode acontecer se não houver recursos suficientes, seja se os armazéns não têm capacidade suficiente, ou se os suprimentos necessários para a produção são limitados ou se não há caminhões suficientes para as entregas.

Muito do meu trabalho também envolve mitigação de desastres. Estamos no meio de um desastre de saúde que afetou negativamente milhões de trabalhadores nos Estados Unidos e em todo o mundo.

Muitas pesquisas foram feitas para identificar os elos críticos nas cadeias de suprimentos, inspiradas, em parte, por vários desastres naturais que afetaram essas atividades de abastecimento. Mas, até recentemente, poucos pesquisadores quantificaram os impactos das interrupções de trabalho nas cadeias de suprimento de produtos, juntamente com os custos associados.

Isso pode ser devido, em parte, ao fato de que interrupções anteriores da cadeia de suprimentos foram localizadas em termos de geografia e período de tempo. Os procedimentos de mitigação e recuperação reduziram os impactos.

Na verdade, até que a pandemia nos atingisse, poucas pessoas prestaram muita atenção ao papel da mão de obra nas cadeias de abastecimento. E a escassez de produtos era pequena e espaçada no tempo em relação a itens que iam de papel higiênico a materiais de limpeza.

Pandemia generalizada

Nesta pandemia, a disponibilidade de mão de obra para as diferentes atividades da rede da cadeia de suprimentos sofreu disrupção devida à doença, ao medo de contágio, à morbidade e à necessidade de distanciamento físico e social. Os supermercados ficaram com prateleiras vazias. Os produtos apodreciam nos campos porque não havia mão de obra suficiente para colhê-los e embalá-los. Agora as vacinas ficam em repouso, enquanto o tempo se esgota, pois não há um número suficiente de profissionais de saúde para administrá-las.

Além disso, com o estresse e as incertezas adicionais impactando o trabalho humano, a produtividade dos trabalhadores reduziu-se, como observaram alguns dirigentes de empresas. Estima-se que as interrupções no trabalho apenas na produção de frutas e vegetais causarão milhões de dólares em perda de produção, com as perdas mais pesadas concentradas nos estados grandes produtores.

Em meados de setembro, mais de 42,5 mil trabalhadores em processamento de carnes haviam contraído o coronavírus e 203 morreram. Casos de Covid-19 foram identificados em pelo menos 494 frigoríficos.

Devido à escassez de mão de obra, a competição entre empresas e organizações também se tornou um problema, com alguns enfermeiros viajando milhares de quilômetros para ajudar pacientes com Covid-19. Isso também resultou em aumentos nos preços da força de trabalho com, por exemplo, certas enfermeiras itinerantes recebendo até US$ 10 mil por semana.

Como os trabalhadores são cruciais para as cadeias de suprimento

Eu queria examinar isso com mais profundidade, quantificando a inclusão explícita de trabalho, sua produtividade e possíveis realocações na pandemia. Para isso, construí modelos computadorizados para cadeias de suprimentos de produtos perecíveis, como alimentos, fármacos e vacinas. Também investiguei os impactos da competição por força de trabalho entre organizações.

Os estudos, atualmente no prelo, revelam os benefícios do compartilhamento de trabalhadores, bem como da realocação de mão de obra entre diferentes atividades da rede de abastecimento, conforme as necessidades surgem. O treinamento adequado dos trabalhadores pode permitir uma maior mobilidade da mão de obra em diferentes cadeias de abastecimento. Isso tem acontecido na Europa, onde alguns trabalhadores de companhias aéreas estão sendo retreinados para trabalhar na área de saúde.

Relaxar restrições, de modo que os trabalhadores possam se envolver em outras atividades da cadeia de suprimentos conforme necessário, pode ter efeitos positivos imensos nos fluxos de produtos e até nos lucros das empresas. Por outro lado, a escassez de mão de obra em um único elo, seja em frete, armazenamento, fabricação ou processamento, pode resultar em uma grande diminuição na disponibilidade do produto.

Até os dias em que as cadeias de suprimentos sejam totalmente informatizadas e automatizadas, a mão de obra continuará a ser um recurso essencial que deve ser cuidado e apoiado. Superar esta pandemia dependerá dos trabalhadores como recurso crítico nas cadeias de abastecimento.

[1]Professora da cadeira John F. Smith Memorial de Gerenciamento de Operações, Universidade de Massachusetts Amherst