Por Tereza Campello e Sandra Brandão, NAPP de Desenvolvimento Social

Início de ano é momento de balanço e de definição de metas para o futuro. Neste 2021, que se inicia sob radical incerteza, é fundamental avaliar o estado da arte das políticas sociais no país para, sobre estas bases, ou melhor dizendo, sobre estes escombros, erigir a resistência e a luta contra a completa aniquilação do que sobrou do estado de bem estar social estruturado a partir da Constituição de 1988.

Um resumo das principais desconstruções de direitos e de políticas públicas na área social em dois anos de (des)governo Bolsonaro, incluindo os nove meses sob a pandemia, pode ser feito em cinco pontos.

O Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) foi a primeira vítima do desmonte. Recriado por Lula em 2003, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi extinto por meio da primeira medida de governo Bolsonaro, em 01/01/2019. A medida nos transporta para 1994, quando o Consea havia sido extinto por FHC. A extinção do Consea sob Bolsonaro foi o ponto de partida para desorganizar políticas que, nos governos Lula e Dilma, se tornaram referência no mundo. São exemplos dessa desorganização a completa desidratação do PAA e do Programa de Cisternas, as ameaças de acabar com o Guia Alimentar da População Brasileira e o esfacelamento das políticas voltadas à agricultura familiar e campesina.

A Política Nacional de Assistência Social vem sendo dinamitada. Os repasses do governo federal aos municípios caíram de pouco mais de três bilhões de reais no final do governo Dilma para 1,3 bi de reais em 2020 e, ao que tudo indica, serão ainda menores em 2021. Com isso, as bases do Sistema Único da Assistência Social, como parte estratégica da seguridade social, estão irremediavelmente comprometidas. O SUAS é a porta de entrada da população vulnerável, em especial a mais pobre, no sistema de proteção, para acesso a direitos e ao Estado. O SUAS organiza a rede de proteção de renda e de acesso a serviços socioassistenciais, garantindo ainda a inclusão em um conjunto mais amplo de proteções e de referenciamento em serviços como saúde e educação. A redução nos serviços, que já passa de 67%, está levando à demissão em massa de assistentes sociais e outros servidores do SUAS e fechamento ou diminuição do horário de atendimento de centenas de CRAS e CREAS. Retrocedemos assim, rapidamente, para a crescente desresponsabilização do governo federal com o co-financiamento do sistema, além da volta do assistencialismo, de políticas pontuais e paralelas ao SUAS e do “primeiro damismo”.

Na esteira do desmonte da rede de proteção dos serviços do SUAS inúmeras iniciativas vêm sendo adotadas para solapar o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Desde o governo Temer houve várias tentativas de acabar com o BPC, com propostas de mudanças constitucionais e outras iniciativas jurídicas. Não conseguindo incluir a redução do BPC na Reforma da Previdência, o governo Bolsonaro passou a desorganizar o atendimento e dificultar o acesso da população. Desinformação, restrições de acesso por medidas operacionais – como é o acesso online, praticamente impossível para um idoso pobre, ou a criação e recriação de normas –, ou mudanças no sistema de perícia são alguns dos obstáculos criados. O resultado fica claro quando se analisa a concessão de novos benefícios – entre 2014 e 2109, a média caiu de 83 mil novos benefícios por ano para um resultado líquido negativo de catorze mil benefícios. Isso sem falar na fila de espera de concessão, cujo tamanho ainda é desconhecido.

Desmonte similar vinha sofrendo o Programa Bolsa Família, com valores congelados desde 2016 e uma crescente fila de acesso ao programa de famílias pobres, que só não era maior pelo represamento dos cadastros e incapacidade da rede SUAS de dar vazão aos pleitos. Desde o início do governo Bolsonaro, o Bolsa Família vem sendo atacado e ameaçado de extinção.

Pari passu com a crescente desorganização da rede de proteção social, o Brasil já vinha enfrentando, desde 2015, o aumento da pobreza, da fome e da precarização do trabalho devido às reformas trabalhistas. A extrema pobreza que havia caído de 14% para 2,3% da população durante o ciclo Lula-Dilma, em 2019 já havia retornado aos patamares de 2006. Dados da POF/IBGE revelam que, em 2018, o Brasil já havia voltado ao Mapa da Fome da ONU, em decorrência do enfraquecimento das políticas de combate à pobreza e a fome que, por seu sucesso, tanto reconhecimento internacional haviam conquistado.

Este é o ambiente no qual o Brasil se encontrava quando foi atingido pela pandemia da Covid-19. A crise só não foi mais intensa porque parte da rede de proteção, em especial o SUS e o CadÚnico, ainda resistiam, e porque a sociedade e partidos de oposição conseguiram aprovar a proposta do Auxílio Emergencial de seiscentos reais, pago entre abril a setembro, e posteriormente reduzido pelo governo Bolsonaro para trezentos reais até dezembro.

Em 31 de dezembro de 2020, o governo “decretou” o fim da pandemia e extinguiu, para perplexidade da Nação, o Auxílio Emergencial. O ambiente de incerteza é a marca deste início de ano. O fim do Auxílio Emergencial deixou mais de trinta milhões de famílias em completa vulnerabilidade de renda e em insegurança alimentar. Estimativas iniciais apontam que a pobreza e extrema pobreza alcançarão no mínimo quarenta milhões de brasileiros inscritos no Cadastro Único, além de milhões de famílias que recebiam o Auxílio mas não estavam naquele Cadastro. Este quadro de vulnerabilidade e insegurança alimentar foi acirrado pelo aumento dos preços de alimentos, que acumulou 14,09% no ano (com a maior variação desde 2002) , como consequência da omissão do governo Bolsonaro em tomar medidas para proteger o mercado interno frente às mudanças no mercado internacional de alimentos resultantes da Covid-19. O aumento dos preços de arroz e feijão, por exemplo, poderia ter sido evitado se o governo não tivesse destruído a política de estoques reguladores e o PAA.

Ademais, os dados da PNAD Covid mostram que, em novembro de 2020, catorze milhões de brasileiros estavam desempregados e outros 24 milhões de brasileiros estavam disponíveis para trabalhar, embora não tivessem buscado trabalho por medo de ficar doentes ou contaminar a família, por saber que não há emprego nas cidades onde moram ou porque estavam recebendo o AE. Trata-se de uma crise no mercado de trabalho sem precedentes.

A calamidade do fim do Auxílio Emergencial atinge em cheio essas famílias e também condicionará a economia brasileira em 2021. Economistas de vários matizes concordam sobre os efeitos benéficos do Auxílio, que teria reduzido pela metade a queda do PIB em 2020. O impacto da brusca descontinuidade da renda sobre a demanda interna no país será um dos obstáculos à retomada do crescimento, mesmo que os efeitos da vacina e de medidas de contenção da pandemia sejam bem sucedidos.

Um grande consenso se forma atualmente em todo o mundo em torno da importância do Estado como garantidor da saúde coletiva, fornecendo vacina para todos e medidas sanitárias para conter a pandemia, e como o responsável por promover, através dos gastos públicos e do investimento, a retomada da economia. Seria hora de aproveitar esta revisão da lógica fiscalista, tirando as aprendizagens do que aconteceu com o Auxílio Emergencial. A situação exige a prorrogação do Auxílio Emergencial e um programa de investimentos e geração de emprego já. Hora também de avançar no fortalecimento do SUAS e do Bolsa Família, como medidas estruturais de garantia de direitos. Bolsonaro faz o oposto. Tira proveito da pandemia para avançar na sua necropolítica.

É inegável que Bolsonaro vem atingindo seu objetivo de desconstruir e desfazer políticas públicas no Brasil, como orgulhosamente prometeu em março de 2019. Se continuar a cumprir suas promessas, mantendo a agenda de desmonte (que chama de agenda de reformas), o teto de gastos e demais amarras fiscais, e utilizá-las como desculpa para a insuficiente proteção das famílias e o inadequado enfrentamento da crise sanitária, teremos como resultado um acelerado processo de geração de miséria e fome que nos levará, muito rapidamente, de volta aos anos 1990. O futuro será um triste passado que havíamos acreditado ter superado.