Por Pedro Estevam Alves Pinto Serrano para o Observa BR
Recentemente elaboramos, em conjunto com diversos especialistas, um anteprojeto de lei de defesa do Estado Democrático de Direito para criminalizar excepcionalíssimas condutas a ele atentatórias. O estudo ensejou o Projeto de Lei n.º 3864/2020, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados.
Inspirado na legislação de países europeus e latino-americanos, propomos, essencialmente, criminalizar condutas violentas decorrentes do uso de arma de fogo, ou da ameaça da sua utilização, tendentes a alterar o Estado Democrático de Direito constitucionalmente estabelecido, bem como produzir instabilidade no funcionamento dos poderes do Estado. A proposição legislativa pretende criminalizar condutas especialmente reprováveis e, desde já, afasta qualquer pretensão criminalizatória em razão de crítica aos poderes constituídos e reivindicação de direitos, inclusive através de movimentos sociais.
Do mesmo modo, propomos a revogação da Lei de Segurança Nacional, entulho autoritário de 1983 que foi fundamentado na autoritária Carta de 1969 e é absolutamente incompatível com o regime democrático consubstanciado na Constituição de 1988.
Com efeito, referida lei baseia-se, essencialmente, no combate à figura de um inimigo fantasmático, aquele ser vivente que, no campo dos direitos, diferencia-se pelo fato de não lhe serem garantidos direitos mínimos da condição humana. Sua própria vida encontra-se à disposição do soberano. Em outras palavras, o cidadão é, arbitrária e voluntariamente, eleito como inimigo por supostamente ameaçar a sobrevivência do Estado. A invocação, pela Lei de Segurança Nacional, da figura do inimigo que clamaria pela criminalização afeta, inclusive, condutas desejáveis em qualquer Estado democrático de Direito, que se caracteriza, essencialmente, por liberdade, pluralismo e debate público.
Do mesmo modo, conceitos jurídicos indeterminados constantes da Lei de Segurança Nacional – tais como, exemplificativamente, propaganda para alteração da ordem social (art. 22, inciso I), tentativa de impedir o livre exercício dos poderes (art. 18) e revelação de segredo obtido em razão do cargo (art. 21) – conferem ao intérprete dotado de poder decisório o ilegítimo poder de conferir extensão e alcance casuístico, em detrimento, dentre outros, da segurança jurídica. A heterogeneidade de conteúdo de tais comandos permite que quase todas as condutas humanas que fogem do banal possam ser enquadrados na Lei de Segurança Nacional, desde que assim deseje o soberano.
O entulho autoritário vem sendo invocado para enquadrar diversas condutas inerentes à rotina democrática, tais como, exemplificativamente, charge do cartunista Renato Aroeira, artigo do jornalista Hélio Schwartsman e manifestação pública do Ministro Gilmar Mendes com críticas ao Presidente da República. Do mesmo modo, causou espanto a imposição, pelo Ministério da Saúde aos servidores ali lotados, de assinatura de termo de sigilo quanto às informações debatidas no âmbito do Gabinete do Ministro, sob pena de violação da Lei de Segurança Nacional.
A Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil já aprovou parecer, a ser brevemente apreciado pelo Plenário do Conselho Federal da OAB, que concluiu pelo cabimento de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para questionar a não recepção da Lei de Segurança Nacional pela Constituição de 1988 ou, subsidiariamente, restringir, por interpretação conforme, a incidência dos seus dispositivos.
Destaque-se, desde já, que no próprio Supremo Tribunal Federal existem decisões que constataram a incompatibilidade da Lei de Segurança Nacional com a Constituição de 1988, bem como com sua ordem democrática (Reclamação n.º 1.472). Também é importante consignar que a discussão relativa à recepção da Lei de Segurança Nacional tende a ser norteada, em parte, pela ADPF n.º 130, que declarou a incompatibilidade da Lei de Imprensa com a atual ordem constitucional uma vez que editada em período de exceção institucional, bem como, in verbis, “ideologicamente concebida e normativamente apetrechada para operar em bloco ou como um todo pro indiviso”.
Assim considerando, é premente a necessidade de revogação ou submissão da Lei de Segurança Nacional ao controle concentrado de constitucionalidade. O entulho autoritário é incompatível com a essência da nossa Constituição, ao passo que o tratamento, como inimigo, dado aos cidadãos que se colocariam contra a integridade da sociedade e à existência do Estado emerge, em parte, da superada doutrina da segurança nacional, patejada entre nós desde a Lei getulista de n.º 38/1935.
(Serrano, integrante do NAPP Estado, Democracia e Instituições, é bacharel, Mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris Nanterre; professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito e de Teoria Geral do Direito da Pós Graduação da PUC/SP)