Artigo de José Sérgio Gabrielli[1], Luciano Coutinho[2], Luiz Antonio Elias[3], Mauro Borges Lemos[4] e William Nozaki[5]
A economia internacional passa por um momento de reativação da centralidade da agenda de política industrial e de ciência e tecnologia.
A ascensão da Indústria 4.0 tem intensificado a convergência de tecnologias digitais, físicas e biológicas. Essa mudança estrutural tem se observado ao longo dos últimos anos, com o avanço da automação por sistemas ciber-físicos, da comunicação máquina a máquina, da inteligência artificial, da análise de big data, da computação em nuvem, da realidade virtual e aumentada, da internet das coisas e dos serviços, do desenvolvimento de novos materiais, das tecnologias de baixo carbono e dos avanços nos processos de edição genômica.
O papel do Estado reativando as políticas industrial e de ciência, tecnologia e inovação tem sido fundamental nessa trajetória: todos os países industriais desenvolvidos têm adotado estratégias de longo prazo, baseadas em incentivos à P&D, subvenções e uso do poder de compra governamental. Em 2020, a pandemia acelerou ainda mais esse processo, medidas emergenciais de enfrentamento à Covid-19 trouxeram à tona propostas de reindustrialização e reconversão industrial, além de medidas estruturais para a construção de uma nova indústria capaz de desbravar os horizontes disruptivos.
No Brasil, o atraso nesse percurso é flagrante. A industrialização brasileira não foi capaz de constituir por completo os vínculos intersetoriais com os ramos mais intensivos em tecnologia, nem tampouco formou os segmentos mais avançados da indústria de bens de capital, concentrando-se em bens intermediários e bens de consumo duráveis e não-duráveis. Os saltos inovadores, quando ocorreram, foram protagonizados e induzidos pelo financiamento de longo-prazo de bancos públicos e pelo investimento tecnológico de empresas estatais contando com o apoio dos instrumentos institucionais de governança de CT&I.
Entretanto, no mais das vezes, foram obstaculizados por políticas macroeconômicas restritivas do ponto de vista monetário, cambial e fiscal, aumentando os riscos e inviabilizando o funding necessário para a expansão industrial.
No período mais recente, a sobreposição disfuncional de regras fiscais rígidas, o desmonte do Estado e a desestatização das empresas estatais tem tornado esse cenário ainda mais dramático. A participação do Brasil na produção industrial mundial caiu para 1,19% em 2019, nesse mesmo ano o peso da indústria no PIB foi de apenas cerca de 10,4%. Em abril de 2020, mês em que teve início o isolamento social, a atividade industrial sofreu queda de 23,3% no faturamento das empresas, e mesmo com a recuperação recente ainda não se retornou aos patamares anteriores à crise.
É urgente vencermos o movimento obscurantista e subserviente que invade o país, através da valorização da produção de conhecimento nacional, é preciso investimento contínuo na formação de mão de obra qualificada em todas as regiões do território nacional. O Brasil precisa recompor seu parque industrial aumentando a densidade tecnológica e a complexidade da matriz já existente, e, simultaneamente, deve avançar em direção ao desenvolvimento de um novo paradigma tecnológico que faça face aos desafios nacionais e internacionais garantindo uma inserção autônoma e soberana do país.
Entre 2003 e 2016, implantamos um novo padrão de relação entre o Estado e sociedade, marcado pela orientação estratégica de inclusão social e desconcentração da renda, com vigoroso crescimento do produto e emprego. As frentes de expansão potencial acionadas permitiram fomentar mudanças na estrutura produtiva com competitividade e na estrutura social com distribuição, através de: (1) investimentos em recursos naturais (energia, hidrocarbonetos, agropecuária); (2) investimentos em infraestrutura econômica (logística, transporte, telecomunicações), (3) investimentos em infraestrutura social (saneamento, habitação, mobilidade urbana); (4) investimentos voltados ao mercado interno de consumo de massa de bens e serviços; (5) investimentos em reindustrialização na fronteira tecnológica (bens de capital, fármacos e microeletrônica, defesa e aeroespacial).
Nesse sentido, vale ressaltar, dois vetores de demanda induzida são especialmente relevantes: o primeiro, orientado por “missões”, com a demanda de bens industriais e serviços das cadeias produtivas sendo orientada por investimentos em infraestrutura econômica, social e urbana, estimulando o desenvolvimento regional; o segundo, orientado pelas potencialidades das grandes empresas públicas e das compras governamentais, propiciando a superação de gargalos tecnológicos e promovendo inovações em setores portadores de futuro.
No caso do primeiro vetor, os gargalos tecnológicos relevantes para o país deveriam ser priorizados pelos instrumentos institucionais de governança de CT&I já estabelecidos e maturados. Os candidatos naturais são aqueles relacionados ao sistema de saúde (como vacinas contra Covid-19, dengue e produção de equipamentos hospitalares), o sistema urbano-industrial (como veículos híbridos, com etanol e elétrico e sua rede urbana de serviços digitais), o sistema de exploração sustentável (como sequenciamento de genomas para a bioindústria e sistemas integrados de manejo lavoura-pecuária-floresta para a utilização sustentável do “arco desmatado” do Cerrado e da Amazônia Legal), além de cadeias de distribuição (baseadas em IA e 5G) e governo digital (com a digitalização do setor público brasileiro). Os polos industriais e tecnológicos emergentes merecem fomento e reforço competitivo, por meio da valorização da P&D e infraestrutura mais eficientes, inclusive as novas infraestruturas digitais.
No caso do segundo vetor, são fundamentais as potencialidades de programas âncoras de compras públicas e investimentos estatais com elevado empuxe para as cadeias produtivas locais, mediante a revitalização dos investimentos da Petrobras acompanhado do desenvolvimento de sua cadeia de fornecedores, com mudanças regulatórias e a identificação de subsetores estratégicos que possam ser estimulados de modo a favorecer a apropriação da renda petroleira por interesses nacionais. É também fundamental a reativação da Política de Desenvolvimento Produtivo do Complexo Industrial da Saúde, dada a capacidade do poder de compra do SUS, bem como a reorganização da Base Industrial de Defesa, especialmente através das compras de alta complexidade tecnológica (como cibersistemas, caças e submarinos de propulsão nuclear).
A incorporação de novas tecnologias digitais da indústria 4.0 (IoT, IA, Big Data, robótica etc.) é especialmente relevante para a transformação do atual parque industrial, em grande parte baseado no padrão tecnológico do século XX.
Tais frentes convergem para a construção de um grande processo de transformação econômica e industrial orientados pela transição digital, pela transição energética e pela transição ecológica, articulando desenvolvimento produtivo, social e ambiental.
Os desafios de uma nova indústria não podem ser enfrentados por uma proposta de política industrial baseada na oferta tradicional de incentivos fiscais e creditícios. Com exceção dos incentivos à P&D, que têm sido preservados nos países desenvolvidos, o caminho alternativo passa pela concentração de esforços em demandas reais da sociedade e do governo e pela coordenação estatal orientada para a desobstrução de gargalos, o que no caso do Brasil pode ser viabilizado com a recomposição e rearticulação das capacidades estatais a partir de instituições como BNDES, Finep, Petrobras, Embrapa, Embrapii e do reforço a formação de recursos humanos através da Capes e CNPq, entre outros.
Para a construção dessa nova indústria são fundamentais instrumentos como conteúdo local, compras governamentais, crédito direcionado, investimentos públicos, financiamento de clusters e start-ups, além de outras políticas industriais, comerciais, de CT&I e de desenvolvimento regional, compondo um complexo que impõe a necessidade de atuação do Estado e coordenação do governo central.
A política do atual governo ao bloquear esse conjunto de políticas e instrumentos nos afoga no passado distante e impede o país de voar em direção ao futuro. Quando se implementam políticas corretas, a economia brasileira responde com forte expansão do investimento e do consumo, e pode ser reorientada a um novo estilo de desenvolvimento, com saltos tecnológicas na estrutura produtiva e avanços distributivos na estrutura social.
[1] Professor da Faculdade de Economia da UFBA. Foi presidente da Petrobras (2005-2012).
[2] Professor do Instituto de Economia da Unicamp. Foi presidente do BNDES (2007-2016).
[3] Pesquisador do Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Foi secretário-executivo do MCTI (2007-2014).
[4] Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Foi ministro do MDIC (2014-2015).
[5] Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Diretor-técnico do INEEP.