O Observa BR debateu no último dia 16 de dezembro, a ameaça de desmonte do atendimento em saúde mental do SUS. Para tanto foram convidados Roberto Tykanori, psiquiatra na Prefeitura de Santos, professor da Unifesp e ex-coordenador nacional de Saúde Mental; Laura Helena Andrade, médica psiquiatra, com doutorado pela USP, pós- doutorado na Johns Hopkins University, coordenadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do Instituto de Psiquiatra do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da USP; e Stellamaris Pinheiro, supervisora clínico-institucional em Saúde Mental, militante da luta antimanicomial. A mediação ficou a cargo de Elen Coutinho, diretora da Fundação Perseu Abramo.

A urgência deste debate se dá devido ao fato de o governo Bolsonaro, por meio do Ministério da Saúde, voltar à carga com a ideia de revogar 99 portarias que regulamentam e organizam a assistência mental e psiquiátrica no país.

O psiquiatra Roberto Tykanori recupera em sua exposição que a partir de 2002 o país passou a viver um novo modelo de oferta de cuidado de saúde mental, oposto ao anterior. “Até então, as pessoas que eram diagnosticadas com algum transtorno mental eram consideradas incapazes... destituídas de poder e direitos. E a estrutura era de controle e, quando a pessoa saía de controle, internação hospitalar, nos chamados grandes manicômios, onde ocorriam as torturas devido à situação de contingência”, explica. A partir de 2002, passa a ser garantida ao portador de transtorno mental a condição de cidadão. Além disso, segundo Tykanori, “foi criada uma rede de atendimento que respeite esse lugar de cidadão, que apóie e busque promover melhor qualidade de vida para essas pessoas no seu cotidiano”. Trata-se de um novo modelo não mais assentado na lógica dos grandes hospitais, mas em centros de atenção psicossocial, instalados no bairro e na comunidade, que além de atender as situações de crise, acompanha e sustenta a pessoa no pós-crise.

Até ocorrer essa mudança, mais de 90% dos recursos para a saúde mental do governo eram despendidos com hospitais psiquiátricos e após 2002, esse recurso passou a ser gasto com a implantação de uma rede em todas as cidades do Brasil, de modo a aumentar o acesso aos cuidados. “Isso teve como efeito que, em 2002, o SUS registrou 400 mil atendimentos psiquiátricos, em 2010, 20 milhões de atendimentos”, contabilizou o psiquiatra. Reitera que se revogadas uma centena de portarias, será o desmonte total do sistema, que foi construído ao longo de duas décadas.

Stellamaris Pinheiro resgata a construção da política de saúde mental do SUS e considera sua desconstrução com “uma canetada só uma afronta civilizatória”, caracterizando o atual momento do país como de profundo retrocesso histórico, político, econômico e sociocultural, que tem origem no golpe neoliberal de 2016, agravado pelo atual governo, cujo método de ação é a destruição do Estado de Direito, do meio ambiente, dos avanços tecnológicos, do pensamento crítico, das minorias. Para ela, “a política de saúde mental construída atravessando governos deveria ser entendida como uma política de Estado”

Segundo, a militante da luta antimanicomial trata-se de uma “política partilhada com outras políticas públicas, que inclusive participaram da 4ª Conferência de Saúde Mental, em todas as esferas, e pactuada com controle social, conselhos de saúde, educação, criança e adolescente, de álcool e outras drogas, de pessoa com deficiente, assistência social, e também dialogada com as universidades, porque a rede de atenção psicossocial é campo de estágio e pesquisa, originando diversas teses e estudos”. Lembra que também “tem diálogo com o Colegiado Nacional de Saúde Mental ao qual o governo deve se remeter para qualquer reflexão e problematização da política atual e é referência para organismos internacionais”. “O Brasil é referência central para a Organização Mundial de Saúde”, frisa.

A médica psiquiatra Laura Helena Andrade fala sobre o quanto a mudança na política de saúde mental ajudou inclusive o entendimento dos transtornos mentais. Conta que fez dois estudos epidemiológicos na Região Metropolitana de São Paulo, dos quais constata que “a prevalência é alta para transtornos de ansiedade e depressão, com quadros mais leves e moderados que podem e têm de ser tratados fora de hospitais e apenas 5% de casos que precisariam de uma internação ou acolhimento em crise, que pode ser no Centro de Atenção Psicossocial (Caps)”.

Fala sobre o trabalho que vem desenvolvendo para entender a “genealogia do sofrimento mental na população geral”. Atuando no bairro de Sapopemba, em São Paulo, “onde há uma comorbidade muito alta e o SUS não dá conta no modelo médico, é preciso outros profissionais envolvidos, que é justamente a rede de atenção psicossocial. E como essa rede é subfinanciada, essa rede acaba ficando congestionada”, conta. A médica cita proposta de um sociólogo para pensar uma nova psiquiatria, que diz que “todo mundo pode ter um problema de saúde mental na vida, não existe doente, todos podem ter algum dia uma crise de transtorno mental e precisar desse serviço”. Defende que “por mais organizado que o SUS seja não dará conta dessa comorbidade e a psiquiatria tem de se aproximar das Ciências Sociais”, argumenta que “há uma série de privações e pobreza na periferia que podem levar à situação de angústia e sofrimento mental”.

O debate prossegue bastante interessante e esclarecedor, abordando o aumento dos problemas de saúde mental ao longo das décadas, que não podem ser resolvidos apenas do ponto de vista médico-psiquiátrico; a origem dos problemas; o impacto da pobreza; o efeito da desigualdade; o uso da medicalização atuando nos efeitos mas não nas causas; e outros desdobramentos.

Assista o programa na íntegra abaixo.

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O programa é transmitido ao vivo nas noites de quarta e sexta-feira, às 21h, no canal da Fundação Perseu Abramo no YouTube, em sua página no Facebook e Twitter, além de ser retransmitido pelas redes sociais de Dilma Rousseff e Fernando Haddad, e dos portais parceiros: Revista Fórum, DCM e Brasil 247.