Por Richard Haass para o Project Syndicate. Tradução de Artur Araújo.

A pandemia mostrou que as cadeias de abastecimento precisarão ser repensadas, com mais ênfase na diversificação de fornecedores, produção doméstica e estocagem. O desafio será encontrar um equilíbrio garantindo que uma política industrial direcionada e limitada não se torne uma cobertura para o protecionismo

Dois provérbios vêm à mente enquanto escrevo isto: “Não coloque todos os ovos na mesma cesta” e “Uma corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco”. Juntas, as duas máximas resumem as preocupações atuais sobre cadeias de suprimentos.

Quase tudo que é produzido no mundo hoje em dia pode ser o resultado de uma cadeia de suprimentos: uma série de etapas em que as matérias-primas e os componentes são produzidos, montados e, em seguida, comercializados em um único país ou no mundo. Alguns produtos podem exigir milhares de etapas que incluem centenas de empresas em dezenas de estados ou países.

As cadeias de suprimentos foram generalizadamente montadas e mantidas com pouca atenção à sua resiliência. Manter os custos baixos era fundamental. Isso geralmente significava depender de um único fornecedor ou produtor de baixo custo e limitar o tamanho do estoque. “Just in time” era o conceito que refletia o desejo de minimizar o intervalo entre o momento em que um item era produzido ou comprado e o momento em que era vendido.

Mas isso foi antes da Covid-19. No início da crise, houve uma escassez aguda de equipamentos de proteção individual (EPI) e insumos farmacêuticos. Agora, as cadeias de suprimentos estão funcionando, mas geralmente com grandes atrasos associados ao frete. O desafio de como melhor aumentar a resiliência da cadeia de suprimentos está agora em primeiro plano.
Futuros surtos de doenças infecciosas podem se revelar muito mais prejudiciais. Além disso, qualquer um dos efeitos cada vez mais frequentes e severos das mudanças climáticas - incluindo incêndios florestais, furacões e inundações - podem fechar um local de produção por semanas ou meses. Da mesma forma, guerras entre países não podem ser descartadas e guerras dentro deles são relativamente comuns. Depois, há o potencial de greves de trabalhadores, acidentes nucleares, terremotos, falhas mecânicas e terrorismo.

Um segundo motivo para a crescente preocupação com as cadeias de suprimentos é o quão dependente o mundo se tornou da China, o maior fabricante mundial, para bens essenciais. A pandemia revelou que muitos países dependem da China para a maior parte de seus EPIs, e a decisão da China de bloquear as exportações desses produtos levou a uma escassez generalizada. Há também a preocupação de que uma China cada vez mais assertiva possa tentar explorar a dependência do mundo dela para fins políticos.

Existem várias maneiras de gerenciar esses riscos. Uma é reduzir a dependência de um único fornecedor nacional ou estrangeiro de um produto ou componente crítico. Isso poderia se traduzir em contratos com, digamos, meia dúzia de fornecedores, de modo que, se algo acontecesse a um ou mesmo a vários deles, os países dependentes não ficassem paralisados.

O problema é que garantir uma redundância adequada pode ser difícil. Pode não haver alternativas com a qualidade e capacidade necessárias - e desenvolvê-las pode ser caro e levar meses ou anos. Mas pode valer a pena fazer isso em certas áreas, especialmente entre parceiros e aliados próximos.

Uma segunda abordagem é exigir que parte ou a totalidade de um componente crítico, medicamento ou tecnologia seja fabricada internamente. Isso não é garantia contra interrupções, porque uma planta doméstica também pode ser desligada por uma série de razões, mas cria empregos e reduz parte da incerteza de depender de fontes estrangeiras distantes e fora do controle.

Mas a internalização [reshoring] levará tempo e aumentará os custos de produção, que teriam de ser repassados ​​aos consumidores ou compensados ​​por subsídios governamentais. E um papel maior do governo na economia costuma ser uma receita para o desperdício e a corrupção.

O comércio internacional é sustentado pelo conceito de vantagem comparativa, que sustenta que um país deve produzir aquilo em que é relativamente bom e importar os itens que são relativamente mais caros para produzir internamente. Assegurar resiliência da cadeia de abastecimento, entretanto, significará necessariamente tomar algumas decisões economicamente ineficientes, pois os países desejarão fortalecer sua segurança nacional produzindo itens para os quais não desfrutam de vantagem comparativa.

Mas há outra consideração. Quem decide quando um governo pode considerar que parte ou a totalidade de um determinado item deve ser produzida em casa? A obrigatoriedade da produção doméstica se assemelha a nada mais do que a substituição de importações, uma forma de protecionismo em que os produtores domésticos têm prioridade sobre os rivais internacionais.

Pense nisso: se todos os países determinassem a produção doméstica de itens “estratégicos”, o comércio global, um poderoso motor de crescimento econômico, encolheria drasticamente quando mais crescimento é necessário para tirar o mundo da recessão induzida pela pandemia. No mínimo, qualquer movimento no sentido de aumentar a produção nacional de itens específicos precisaria ser implementado de forma coordenada na Organização Mundial do Comércio, algo provavelmente mais fácil de falar do que fazer.

Há mais um caminho a ser considerado: estocagem. Os governos poderiam construir e encher instalações para estoques de componentes críticos necessários para que sua economia e sociedade possam fornecer a proteção necessária contra interrupções inevitáveis ​​da cadeia de abastecimento. Alguns já fazem isso com petróleo e com minérios e commodities selecionados Os estoques poderiam ser formados naturalmente, seja por importações ou pela produção doméstica induzida pelo mercado, para evitar as armadilhas do protecionismo. Acordos de pooling ou compartilhamento de estoque também podem ser estabelecidos com outros países para reduzir ainda mais as vulnerabilidades.

Qualquer ênfase maior nos estoques envolve custos mais altos, pois eles devem ser formados, e parte do que é comprado pode ficar sem uso ou se tornar-se inutilizável. E é impossível sempre saber com antecedência o que será necessário. Ainda assim, os estoques fazem muito sentido.

A crise da Covid-19 revelou que a interconexão traz benefícios e riscos para todos nós. Para lidar com alguns desses riscos, as cadeias de suprimentos precisarão ser repensadas, com mais ênfase na diversificação de fornecedores, produção nacional e estocagem. O desafio será encontrar o equilíbrio necessário, garantindo que uma política industrial direcionada e limitada não se torne uma cobertura para políticas caras que ameaçam o comércio e o crescimento econômico.

Richard Haass é presidente do Conselho de Relações Exteriores, atuou anteriormente como Diretor de Planejamento de Políticas do Departamento de Estado dos EUA (2001-2003) e foi enviado especial do presidente George W. Bush à Irlanda do Norte e Coordenador para o Futuro do Afeganistão. É autor de The World: A Brief Introduction.