Stephanie DeGooyer e Srinivas Murthy[1]
Tradução de Artur Araújo, original em https://www.dissentmagazine.org/online_articles/dont-heroize-pfizer-and-moderna
Em 9 de novembro, a empresa farmacêutica norte-americana Pfizer e sua parceira alemã BioNTech anunciaram que sua vacina candidata contra Covid-19 provou ser 90% eficaz com base em resultados preliminares. (Ainda nesta manhã [18/11], a Pfizer afirmou que, em testes em estágio final, sua vacina se mostrou 95% eficaz.) Uma semana depois, a Moderna, outra gigante farmacêutica dos Estados Unidos, divulgou publicamente que sua vacina é 94,5% eficaz contra o coronavírus.
As notícias geraram impacto instantâneo. Chegando na sequência da confirmação de Joe Biden como presidente eleito dos Estados Unidos, as redes sociais estavam inundadas de otimismo. Muitos celebraram o “casal poderoso” turco-alemão que centraliza a equipe de vacinas da Pfizer. Outros teceram loas à empresa por fornecer uma vacina que seria distribuída gratuitamente. Outros ainda elogiaram a Pfizer, por não aceitar dinheiro da administração Trump para pesquisa e desenvolvimento, e Dolly Parton por financiar parcialmente a vacina da Moderna.
Mas devemos ter cuidado para não heroicizarmos a Pfizer, a Moderna ou qualquer outra empresa farmacêutica trabalhando em uma vacina contra o coronavírus. São entidades privadas que se envolveram deliberadamente em pesquisas competitivas, ao invés de coletivas, em uma disputa por mercados. Seu objetivo final inclui enormes lucros gerados por uma pandemia global na qual milhões de pessoas morrerão.
Elas não estão oferecendo uma vacina “grátis” - a menos que por grátis entendamos grátis para cidadãos de nações ricas com as quais fecharam acordos preferenciais no valor de bilhões de dólares. Mais de 50% das doses de todas as principais vacinas candidatas já foi adquirido por meio desses acordos bilaterais. As nações mais pobres se viram praticamente excluídas, com alguns especulando que não serão capazes de vacinar suas populações antes de 2022.
A Pfizer declarou explicitamente que planeja lucrar com sua vacina contra o coronavírus. A BioNTech, a parceira muito menor da Pfizer, chegou a valer US$ 25,8 bilhões - mais do que o Deutsche Bank - depois que sua avaliação de mercado aumentou após o anúncio da vacina. Os analistas do Morgan Stanley estimam que a Pfizer e a BioNTech lucrarão quase US$ 13 bilhões com a vacina somente no ano que vem.
Esse lucro, quando vier, terá sido resultado de um jogo astuto. A Pfizer, ao contrário de outras empresas, recusou fundos iniciais da Operação Warp Speed da administração Trump - não por oposição à resposta mal administrada da Casa Branca ao coronavírus, mas porque, como explicou seu CEO, Albert Bourla, a empresa queria "libertar" seus cientistas da “burocracia”.
Uma explicação mais provável é que, ao pagar por suas próprias pesquisas, a Pfizer evita o risco de exercício dos direitos de intervenção[2] do governo dos Estados Unidos. De acordo com a Lei Bayh-Dole de 1980, o governo dos Estados Unidos pode ignorar os direitos de patente e licenciar um medicamento, a um custo consideravelmente mais baixo, se tiver financiado essa pesquisa.
Ao recusar fundos públicos, a Pfizer retém os direitos de todos os lucros e contorna o potencial de protestos contra lucrar usando o capital do contribuinte, independentemente do fato de que a tecnologia de mRNA, central para sua vacina, foi principalmente descoberta e desenvolvida em laboratórios de universidades ao redor do mundo, com financiamento público por décadas.
Até agora, a Pfizer e a Moderna têm evitado fazer parceria com nações mais pobres, que não têm fundos para pagar por sua vacina. Ao contrário de várias outras empresas farmacêuticas envolvidas em testes de vacinas contra o coronavírus, elas ainda não assinaram contrato com a Covax, uma aliança de vacinas coordenada pela Organização Mundial da Saúde, Unicef, Banco Mundial e Fundação Bill & Melinda Gates. A Covax organiza um pool de vacinas, que dá aos países participantes acesso a uma gama mais ampla de vacinas candidatas, ao mesmo tempo em que ajuda as nações mais pobres a garantir cotas.
A Pfizer diz que está atualmente em negociações com a aliança Covax, mas, entretanto, fez acordos preferenciais para as primeiras doses de sua vacina com o Canadá, os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Europeia. A Moderna também diz que está em negociações com a Covax (ela recebeu financiamento muito antecipado da Coalition for Epidemic Preparedness Innovations); porque ela aceitou US$ 1 bilhão de recursos para P&D da Operação Warp Speed, centenas de milhões das primeiras doses de sua vacina empresa já estão vinculadas a um contrato de fornecimento com os Estados Unidos.
Não é surpreendente que a Pfizer e a Moderna queiram capitalizar suas vacinas. As empresas farmacêuticas há muito usam monopólios estabelecidos por rígidos regimes de patentes para restringir o fornecimento de medicamentos que salvam vidas e inflar seus preços. Mas a pandemia de Covid-19 é precisamente o tipo de evento catastrófico que deve levar os líderes globais a repensar esse modelo de desenvolvimento de medicamentos essenciais.
Por que deveriam os planos de negócios das corporações farmacêuticas determinar os resultados econômicos e de saúde para todo o planeta durante uma pandemia global?
Ao permitir que os direitos de patentes e preços de empresas como a Pfizer sejam incontestáveis, nações ricas como os Estados Unidos estão efetivamente permitindo que as corporações ditem os meios de distribuição de vacinas. Outras crises sanitárias recentes mostraram como esse status quo é letal e desigual.
Em 2009, por exemplo, milhões de indivíduos de baixo risco nos Estados Unidos foram vacinados contra o H1N1 muito antes dos trabalhadores da linha de frente na África Subsaariana devido à falta de abastecimento. Na década de 1990, os medicamentos antirretrovirais que reduziram substancialmente as mortes por Aids no Norte global eram muito caros para os países onde viviam 80% das pessoas com HIV/Aids, levando a milhões de mortes evitáveis.
Quão mais rápido essa pandemia poderia acabar, e quantas vidas mais poderíamos salvar, se os cientistas fossem incentivados pelos governos a maximizar o compartilhamento? A abordagem atual, com dezenas de empresas competindo como rivais para desenvolver e testar um produto com especificações apenas reveladas perto do final do processo, leva a grandes ineficiências nos testes, na fabricação e no acesso. Embora a Moderna afirme que não aplicará suas patentes relacionadas à Covid-19, o CEO Stéphane Bancel disse que não ver como a empresa produzir mais de 1 bilhão de doses em 2021 sem estressar os engenheiros que supervisionam a fabricação nos Estados Unidos e Europa.
As empresas que produzem vacinas devem ser compensadas por seu desenvolvimento e inovação, mas suas margens de lucro não devem determinar a distribuição global. A longo prazo, a criação e suporte de uma infraestrutura como a rede global proposta pela Covax é de extrema importância.
Esta não será nossa última pandemia. Pensando no futuro, precisamos passar do sistema atual, que prioriza o maior lance, para um que atenda às realidades e necessidades da saúde pública global. Dados de modelagem para distribuição efetiva da vacina gerados em março mostraram que 28% mais vidas seriam salvas distribuindo-se a vacina globalmente pela população de forma equitativa, ao invés da estratégia atual de países ricos primeiro, países pobres depois.
Os países sem acordos preferenciais devem ter acesso antecipado a uma vacina, seja por meio de fornecimento redistribuído, como a Covax, seja pela produção em escala. Os Estados Unidos provavelmente vacinarão a totalidade dos voluntários em sua própria população voluntária antes de atender os trabalhadores da linha de frente e pessoas imunocomprometidas em outros países. Se favorecer o tratamento nacionalista em vez da saúde global, ainda assim poderá compartilhar abertamente informações sobre a produção de vacinas, exercendo direitos de intervenção se necessário, para que outras nações possam iniciar imediatamente a produção de vacinas sem a dificuldade de pagar por patentes ou passar por complexas batalhas legais.
A pandemia de coronavírus já dura quase um ano. É compreensível que as pessoas nas nações ricas queiram restaurar algum tipo de normalidade em suas vidas. Mas agora é a hora de exigir dos líderes mundiais das nações ricas, especialmente do próximo governo Biden, a liberação da vacina do controle das grandes empresas farmacêuticas.
Biden disse em uma entrevista com o ativista Ady Barkan que estaria disposto a compartilhar uma vacina não patenteada com o resto do mundo. Ele precisa ser continuamente lembrado dessa promessa e fornecer detalhes sobre como isso seria implementado.
Em 1955, Jonas Salk anunciou o desenvolvimento da primeira vacina mundial contra a poliomielite. Ele se recusou a patenteá-la porque queria maximizar sua distribuição global. Quando questionado sobre quem era o dono da vacina contra a poliomielite, ele deu a famosa resposta: “Bem, as pessoas, eu diria. Não há patente. Você poderia patentear o sol?”.
Pfizer e Moderna não são Jonas Salk. São corporações com fins lucrativos que praticaram uma ciência extraordinária com a ajuda de dólares públicos. Se elas não estiverem dispostas a abrir mão do controle de uma vacina que salva vidas, permitindo a produção e distribuição global, os governos em todo o mundo devem ser pressionados a tomar a vacina delas.
[1] Stephanie DeGooyer é co-autora de The Right to Have Rights (Verso Books) e está concluindo Acts of Naturalization para a Johns Hopkins University Press. É professora assistente de inglês na Universidade de Harvard.
Srinivas Murthy é Professor Associado de Doenças Infecciosas e Cuidados Críticos da Universidade de British Columbia
[2] No original march-in rights, a provisão legalda Lei Bayh-Dole