Após as eleições de 2020, os municípios podem e devem ser polos de implementação e irradiação de políticas públicas antirracistas, até mesmo para enfrentar o racismo difundido a partir do governo federal. Entre os diversos desafios, para além daqueles mais frequentemente abordados, o debate Eleições, Antirracismo e Políticas Públicas Locais, promovido pelo Observa BR na noite de sexta, 21 de novembro, destacou três:

- construir uma política educacional nas cidades que alinhave todas as demais políticas públicas a ser implementadas, de forma que estas sejam elaboradas a partir de conhecimento da maioria e com participação coletiva;

- preservar e valorizar o patrimônio histórico e cultural que nos municípios tenham relação com a luta negra por liberdade e emancipação social;

- enfrentar a questão da posse e regularização das terras onde vivem as populações negras, que são disputadas pela especulação imobiliária e, em muitas cidades, por prefeitos e elites locais grileiras.

Com mediação de Jéssica Italoema, diretora da Fundação Perseu Abramo, o debate contou com a participação de Joana Passos, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de Givania Maria da Silva, doutoranda em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e pelo geógrafo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Renato Emerson dos Santos.

Joana, que defendeu a política educacional como elemento que dará suporte à elaboração de políticas públicas antirracistas, concorreu à vereança em Florianópolis como cabeça de chapa da candidatura coletiva Mulheres Pela Educação, do PT. Conquistaram a primeira suplência e devem exercer o mandato em sistema de rodízio, como acordado pelo partido na cidade.

“Fizemos uma proposição para Florianópolis que quero apresentar também aqui”, disse Joana. “Construir Florianópolis como cidade educadora dos direitos. Como ter a educação como aquela que alinhava as políticas públicas? Para que todas as políticas a serem implementadas sejam de decisão coletiva: orçamento participativo, participação na elaboração do plano diretor; estes são pontos que defendemos nessa candidatura coletiva de mulheres pela educação”.

Para o professor Renato, “o desafio é construir cidades que sejam antirracistas. Em que aqueles e aquelas que a vivem experimentem um conjunto de interlocuções que formem uma mentalidade antirracista. Uma cidade que educa para o antirracismo, o que dialoga com a proposta da professora Joana”, afirmou, ao iniciar sua intervenção no debate.

Entre as ações que em sua opinião devem compor uma agenda antirracista municipal, o geógrafo destacou a defesa da memória. “Uma experiência urbana antirracista depende necessariamente da valorização do patrimônio histórico que tenha a ver com a história da luta negra, luta por liberdade e emancipação social no passado e no presente”, disse.

Givania, fazendo eco com um comentário anterior de Renato, criticou o conceito “binário” de separar os municípios por território urbano e rural. “Sob o argumento de proteção ambiental, pratica-se de fato uma segregação”, afirmou, apontando que este raciocínio deixa populações inteiras sem infraestrutura de saneamento, habitação e transporte. A liderança da Conaq lembrou que há quase seis mil quilombos em todo o Brasil, distribuídos por todos os biomas, em aproximadamente 1. 700 municípios.

“A luta pelo direito ao território muitas vezes se dá em municípios onde o prefeito é grileiro, o juiz é dono de terras, o deputado local é dono de terras”. Portanto, a questão fundiária precisa ser recolocada com ênfase nos municípios em que haverá prefeituras progressistas a partir do próximo ano.

Avanços

As eleições municipais de 2020 são as primeiras que acontecem após mudança nas regras que destinou parcela específica do fundo eleitoral para candidaturas negras. Ocorreram também no momento em que se intensifica e ganha maior visibilidade o debate antirracista, em consequência de episódios recentes no Brasil e no mundo, acompanhados de maior engajamento por parte dos atingidos por ações racistas.

Mas essas não são as únicas razões, embora importantes, lembrou a professora Joana. A presença ativa dos negros e negras na política é algo bastante anterior, e para ilustrar isso, Joana cita a eleição da negra Antonieta de Barros deputada estadual por Santa Catarina, naquela que foi a primeira campanha em que se permitiram voto e candidaturas a mulheres.

“Em 2020, 50% das pessoas que concorreram se autodeclararam negras. É um avanço nítido, e não pode ser creditado apenas a mudanças de regras, como o fundo eleitoral. Estivemos sempre ali”, disse Joana. E, para reafirmar a importância de uma política educacional antirracista nos municípios, a professora também destacou: “Nem todos os eleitos que se autodeclararam negros têm a pauta negra em sua agenda”.

Renato disse que a conjuntura é própria para a retomada de uma ação política que se desenvolveu fortemente a partir dos anos 1980, quando a experiência do PT em gestões municipais lançou as bases do que se tornariam políticas públicas implementadas no governo federal. Para tanto, na opinião dele, o intercâmbio de experiências será fundamental. Novamente, a memória e a história como elementos chave. “Em Santo André, na última década do século passado, tivemos uma experiência de urbanização de favelas que levou muito em consideração questões raciais”, citou como exemplo. “Temos de retomar essa construção de políticas na escala local”.

Na eleição deste ano – ainda não inteiramente concluída, pois alguns municípios terão segundo turno – registraram-se avanços na agenda antirracista. 1.730 candidaturas autodeclaradas negras foram eleitas para o poder executivo em municípios brasileiros. Um deles, Vilmar Kalunga, quilombola do território Kalunga, o maior do Brasil, foi eleito prefeito de Cavalcante (GO) pelo PSB.

Nunca será fácil. O episódio envolvendo a primeira vereadora negra eleita em Joinville (SC), a professora Ana Lúcia Martins, ameaçada de morte, é mais uma evidência. Ainda mais em um país que tem entre suas mais poderosas figuras institucionais defensores e propagadores do racismo, como comprovado por pesquisa recente realizada pela Conaq, destacada durante o debate por Givania (conheça a pesquisa aqui).

O programa pode ser assistido aqui.