Artigo de Karina Calife e Arthur Chioro

Segunda-feira (16/11), após as eleições em São Paulo, acordamos com a notícia de que o governo do estado admitia o que nós, médicos e profissionais de saúde, vínhamos falando há três semanas: está ocorrendo um aumento das internações por Covid-19 no estado de São Paulo.

Na última semana epidemiológica (de 8 a 14 de novembro), as internações por casos suspeitos da doença cresceram mais de 18% em relação à semana anterior: a média de novas internações diárias subiu de 859 para 1009 casos. Foram computados 685 óbitos nas últimas 24 horas (1,2).

O que chama atenção nesse caso é o caminho da doença, que parece repetir o perfil que foi apresentado em março: uma doença de ricos, que se espalhará entre a população mais pobre e vulnerável, trazendo adoecimento àqueles que dispõem de menos recursos, tem mais dificuldades para os cuidados com a saúde e de acesso aos leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Por que essa hipótese? Hospitais privados e de elite na cidade declaram um aumento expressivo da procura por atendimento e internação, tanto nos quartos e enfermarias, como nas UTIs. Entre os pacientes internados nas UTIs desses serviços, a maioria está acometida pela Covid-19.

Em artigos na imprensa, gestores de hospitais privados apontam para o aumento dos casos, entre eles no Hospital Israelita Albert Einstein e no Hospital Sírio-Libanês. O maior centro de infectologia do país, o Hospital Emílio Ribas, público, do SUS e produtor de muito conhecimento durante a pandemia, também apontou a tendência. Outros hospitais públicos de referência para o SUS na cidade, como o Hospital São Paulo e o Hospital Santa Marcelina, apontam para o aumento de internações em UTI, enfermarias e Unidades de Infecção Respiratória (UIR).

O aumento da busca por exames para detectar o Sars-CoV-2 também é percebido por laboratórios de análises clínicas. Uma faculdade de medicina privada na cidade, com um perfil de alunos de classe média alta, precisou suspender as atividades presenciais após um surto da doença, na última semana, entre os alunos. Isso também aconteceu na Escola Americana de São Paulo e em outras unidades de ensino médio e fundamental.

A classe A, após ter se isolado por um período importante, garantido por sua condição de classe, capitulou. Cansou e resolveu sair de vez e com intensidade para as ruas, com sua legião de pessoas suscetíveis à doença. Foram com tudo a shoppings, bares, restaurantes, parques, escolas e universidades.

Isso foi possível após a condução oficial de um plano de abertura com uma proposta de flexibilização equivocada, sem justificativa técnica ou condição epidemiológica para tal.

Sim, essa foi a ordem de liberação dos espaços de circulação pública, em um país que não fez a lição de casa, não contou com uma política de testagem em massa nem de rastreamento dos contatos (contacttracing), como fizeram os países com os melhores resultados no enfrentamento à pandemia. E teve assim, a curva com platô mais alto e constante de médias móveis diárias de mortes do mundo: passamos 4 meses em um platô de média móvel de 1000 mortes por dia e no período de queda, que durou aproximadamente 2 meses, manteve-se uma média móvel de mortes diárias entre 300 e 400.

É muito! São muitas vidas.

Temos algo em torno de 3% da população mundial e contamos hoje com 14% das mortes no planeta. O Brasil é, até aqui, o segundo país em número absoluto de óbitos no planeta. Alguns relacionaram o aumento repentino dos números aos problemas com os bancos de dados do SUS na última semana, resolvido nos últimos dias. Mas é sabido que no caso de São Paulo, o governo do estado tem um censo diário de dados da Covid-19 com muitas informações: quase 100% dos hospitais públicos e privados o alimentam diariamente.

Em estudo do Ibope/Fleury no município de São Paulo, o SoroEpi MSP(8), que aponta para uma soroprevalência da infecção pelo Sars-CoV-2 de 26,2% no município, vemos uma diferença muito importante entre os distritos de renda média mais alta e os de renda média mais baixa. A situação se repete em outros inquéritos de soroprevalência realizados no estado de São Paulo, como no estudo realizado na Região Metropolitana da Baixada Santista, Epicobs(9).

Apesar dos casos de infecção pelo Sars-CoV-2 terem se iniciado em fevereiro por bairros de classe alta no retorno das férias na Europa e Estados Unidos, esses se espalharam rapidamente e geraram, entre os mais vulneráveis, o maior número de casos e óbitos pela doença.

Nos bairros mais pobres, existe uma variação impressionante dos índices de pessoas contaminadas com quase dez pontos percentuais de diferença entre os grupos de distritos. Enquanto nos bairros com renda média mais alta (como Alto de Pinheiros e Perdizes, por exemplo) a soroprevalência é de 21,6%, nos de renda média mais baixa (como Cidade Tiradentes e Sapopemba), a soroprevalência chega a 30,4%(8,9,10).

Importante ainda observar, à semelhança do que aconteceu nos EUA, o impacto em relação ao momento das eleições no país e o descuido com que as autoridades trataram o tema do afluxo de pessoas e aglomerações, negligenciando medidas de prevenção adequadas ao momento de pandemia. Acrescente-se a isso uma deficiência de políticas públicas, como apoio econômico adequado, garantia de emprego, espaços para isolamento dos doentes e seus contatos organizados pelos governos estadual e municipal, entre outras ações.

Poderia ter sido diferente. E ainda pode ser diferente, se levarmos em conta o que vem acontecendo na Europa, por exemplo. Que dessa vez, possamos nos preparar adequadamente e em tempo efetivo, para proteger o que de mais importante existe: a vida das pessoas. Será que aprendemos a lição?

Karina Calife é médica sanitarista, mestre e doutora pela Faculdade de Medicina da USP e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo

Arthur Chioro é médico sanitarista, doutor em Saúde Coletiva, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ex-ministro da Saúde

Fontes/ Referências

1Dados divulgados nesta terça-feira (17/11) pelo Imperial College, de Londres, indicam aceleração da pandemia de Covid-19 no Brasil (no dia 10 de novembro, o índice que mede o ritmo de transmissão (Rt) estava em 0,68. Agora, está em 1,10. Pela margem da universidade britânica, o Rt brasileiro pode variar de 1,05 até 1,24).

2Atualização do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), divulgada na noite da terça-feira, 17 de novembro de 2020, mostra que o Brasil tem mais de 166 mil mortes e mais de 5,9 milhões de casos de Covid-19 desde o início da pandemia. Deste total, 35.294 casos da doença e 685 óbitos foram registrados nas últimas 24 horas.

3O estado com o maior número de vítimas fatais segue sendo São Paulo (40.749), seguido por Rio de Janeiro (21.474), Minas Gerais (9.531) e Ceará (9.448).

4O Brasil continua como o segundo do mundo com maior número de mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 248 mil mortes pela Covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

5Os pedidos de internações no Hospital Emílio Ribas aumentaram, assim como a busca por atendimentos a suspeitas de infecções pelo coronavírus, segundo relato na imprensa do médico supervisor do setor de terapia intensiva, Jaques Sztajnbok. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54926384

6Os números de atendimentos a pacientes com a Covid-19 cresceram em hospitais particulares de São Paulo. O Hospital Sírio-Libanês, por exemplo, informou a imprensa que atingiu 120 internações nos últimos dias, número ao qual havia chegado durante o ápice da pandemia.

7Nos últimos dias, São Paulo, assim como todo o país, registrou um "apagão" de dados relacionados à Covid-19, em decorrência de um problema no sistema do Ministério da Saúde. A situação, que durou seis dias e foi contornada na quarta-feira (11/11), dificultou a inserção de informação de óbitos no sistema pelos municípios brasileiros.https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54926384

8Inquérito domiciliar para monitorar a soroprevalência da infecção pelo Sars-CoV-2 em adultos: estudo transversal com amostragem probabilística, realizado no município de São Paulo entre os dias 1 e 10 de outubro de 2020. https://www.monitoramentocovid19.org/resultados

9Covid-19 em uma Região Metropolitana: vulnerabilidade social e políticas públicas em contextos de desigualdades.https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.1270