O futuro das cidades, sejam grandes, médias ou pequenas, só será melhor do que a situação atual se a gestão de ao menos três setores for alterada de maneira consistente: habitação, transporte e atividade produtiva. Para apresentar propostas para essa mudança, o Observa BR realizou debate na noite de sexta-feira, 23 de outubro, transmitido ao vivo e que pode ser revisto aqui.
Para enfrentar os desafios da habitação, o que inclui a crescente população que mora nas ruas, uma das primeiras medidas é acabar com a financeirização da moradia popular, ou seja, voltar a dar subsídio estatal para as famílias de baixa renda para a aquisição do imóvel. E não subordinar essa compra ao financiamento bancário privado, como vem fazendo o atual governo federal.
“Quero tratar especificamente da MP 996, de 25 de agosto, da Casa Verde e Amarela, que vem para acabar com os programas anteriores”, pontuou a arquiteta e urbanista Eleonora Maschia. “Essa MP acabou com o subsídio para os mais pobres, e inclui este contingente dentro dos grupos de financiamento. Com redução dos juros, mas isso que não garante o acesso para grande parte da população. Sem subsídio, sem acesso à casa”, destacou Eleonora, presidenta da Federação Nacional dos Arquitetos (FNA), coordenadora na área de Habitação (Gihab) da Caixa Econômica Federal e ex-gerente nacional da Caixa do Programa Minha Casa Minha Vida, Modalidade Entidades e Rural.
Como consequência do que a arquiteta chama de “privatização do acesso”, a medida provisória do governo Bolsonaro também traz a possibilidade de despejo forçado para quem estiver inadimplente. “Há a financeirização da moradia, torna a moradia um ativo financeiro, o que endivida as famílias. Isso traz o grave risco de as famílias perderem o local onde moram”.
Também arquiteto e urbanista, Fernando Mello Franco relembrou a necessidade de recolocar a desconcentração urbana como prioridade. “Temos pensar modelos policentrados, aproximando emprego, moradia, provendo de serviços e oportunidades a todas as unidades locais. Isso implica pensar em novas formas de governança, compartilhadas, a partir dos territórios. Fazer dos pequenos territórios unidades de vida”, afirmou Franco, que é professor da Universidade Mackenzie, consultor do Banco Mundial e ex-secretário de Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo durante a Gestão Haddad (2013-2016). Para ele, uma das principais políticas que devem ser revistas é a relação da rede de cidades, que implica uma desconcentração dos recursos hoje direcionados aos grandes centros.
Para Nazareno Stanislau Affonso, que formou o trio de debatedores, a questão da mobilidade urbana deveria ser enfrentada por um conceito radical, segundo ele formulado já em 1989 pela Associação Nacional de Transporte Público, da qual ele fazia parte: o não transporte. “Das teses que elaboramos para o nosso congresso daquele ano, uma ficou muito famosa: Não Transporte: a reconquista do espaço-tempo social. Há 30 anos a gente já defendia a necessidade de reduzir os deslocamentos motorizados. Defendíamos que tínhamos de ter polos descentralizados, distância curtas. Não sabíamos à época que chegaríamos ao limite dos congestionamentos como chegamos hoje. É o que se está falando agora. Pensando bem, hoje, o não transporte é uma bela chamada”, comentou Nazareno, ex-secretário de transportes em Santo André e Porto Alegre em gestões petistas.
Artur Henrique, diretor da Fundação Perseu Abramo, mediador do debate, lembrou que a mudança na gestão e no planejamento das cidades faz parte da defesa dos direitos sociais. “Num momento que vemos tantos direitos serem atacados, constatamos que o direito à cidade também vem sendo deixado de lado”, disse. “Quando a gente fala em poder local, em emprego perto do local de moradia, falamos em desenvolvimento local, em economia solidária, estamos tentando construir um novo modelo em que as pessoas vivam melhor”
Mello Franco lembrou que a transição ecológica necessária implica a mudança dos padrões de consumo – o que exige mudança cultural, segundo ele – e nos padrões de produção. “Isso vai rebater no desenvolvimento econômico. Inclusive temos de repensar a importância – assunto muito bem tematizado no Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil elaborado pela Fundação Perseu Abramo – de trazer de volta o protagonista da indústria. Não aquela indústria de inspiração fordista, poluente.”
Tal indústria deve ser guiada, entre outros princípios, pela vocação de cada cidade e pelo respeito e valorização dos territórios que, encravados nas cidades, mantêm características rurais. A produção da agricultura familiar nesses territórios, voltada ao abastecimento das cidades onde estão localizados, é uma proposta interessante, afirma o urbanista. Ele lembra que isso foi feito durante a gestão Haddad em São Paulo, numa parceria entre a secretaria que ele dirigiu e a de Emprego e Desenvolvimento. Um dos destinos da produção de alimentos orgânicos era a merenda escolar, em ação articulada entre diferentes órgãos da prefeitura.
Eleonora também destacou a necessidade de retomar a participação social na definição das políticas das cidades, incluindo a habitação. E que para tanto é necessário o fortalecimento dos municípios na definição dos programas.
Nazareno lembrou que o transporte público é um direito social, portanto deveria ser tratado assim. Porém, não há nenhuma estrutura oficial nem política para tanto. Daí, segundo ele, a proposta do Sistema Único da Mobilidade Urbana, para a definição de um projeto consequente que diminua o espaço do transporte individual e que democratize o uso das vias públicas.