Por Cesar Alvarez, integrante do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas de Tecnologias de Informação e Comunicação (NAPP TIC) da Fundação Perseu Abramo.
Garantir uma Transformação Digital Inclusiva e Soberana no Brasil deve ser a perspectiva central de um projeto político de esquerda para a área das Tecnologias de Informação e de Comunicação. Nosso NAPP TIC defende que o desenvolvimento do País só virá com a redução das desigualdades de acesso, de uso e de desenvolvimento das tecnologias, protegendo as pessoas no ambiente digital e preservando a soberania nacional.
Portanto, são dois os elementos centrais: 1) a universalização do acesso aos serviços de telecomunicações, às aplicações e aos dispositivos, em todo o território nacional e para todas as classes sociais; e 2) a regulação da nova economia digital, que passa pela proteção dos dados pessoais e da privacidade individual, mas também pela garantia da soberania nacional e dos direitos do trabalhador em momentos de profundas transformações nas formas de acumulação capitalista.
O governo Bolsonaro parece ignorar ambos os aspectos. Não estabeleceu uma política consistente para a universalização de acesso e não alocou recursos para levar a banda larga a quem mais precisa. Tal descaso ficou evidente durante isolamento social decorrente da pandemia de Covid-19, que exigiu interromper as atividades presenciais, inclusive as escolares. Segundo dados da pesquisa TIC Kids Online 2019, coordenada pelo Conselho Gestor da Internet do Brasil, ao menos 17% das crianças e adolescentes do País não têm qualquer acesso à rede mundial de computadores. Em regiões como a Nordeste, o número chega a 21%. Tais números não refletem a qualidade de conexão, reconhecidamente insatisfatória nas periferias e nas regiões rurais. Com a pandemia, a desigualdade entre estudantes se tornou gritante, ampliando o abismo entre os alunos com e os alunos sem acesso.
Uma forma para enfrentar a exclusão digital na pandemia seria com a utilização de recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), oferecendo emergencialmente verbas a estudantes de famílias de baixa renda, inscritas no CadÚnico, destinados à contratação de planos de conexão à internet. Com as secretarias de Educação de estados e municípios, o governo federal poderia aumentar (e não reduzir, como fez) os recursos para o programa “Educação Conectada”.
Implantar o Plano Estrutura de Redes de Telecomunicações – PERT, aprovado pela Anatel, impõem uma política de incentivos aos pequenos provedores para ampliação e melhoria das redes para as escolas públicas urbanas e mesmo rurais. Ir além da infraestrutura, qualificando tecnologicamente a escola na gestão e manutenção dos sistemas, mas principalmente na produção de novos conteúdos pedagogicamente adaptados às novas tecnologias
Uma segunda estratégia para uma Transformação Digital Inclusiva seria via radiodifusão pública. Até 2016, o governo federal implementou planos nacionais de outorgas (PNOs) voltados à expansão do rádio e da TV educativas, com forte ênfase em emissoras mantidas por instituições de ensino. Temer e Bolsonaro não deram continuidade às outorgas e várias emissoras não foram instaladas. Em março de 2020, o MCTI até instituiu um comitê de crise, o “Rede Conectada”, para acompanhar os efeitos da pandemia (Portaria 1.153/2020), mas, na verdade, nada de concreto aconteceu.
Em relação à Economia de Dados, o cenário é ainda pior. O governo brasileiro não tem nenhuma estratégia para beneficiar o País. Adota medidas erráticas, contraditórias e busca agradar servilmente os interesses dos Estados Unidos da América. Mesmo com a tardia aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) - conquistada graças à atuação da sociedade civil e de setores progressistas do Parlamento -, a visão neoliberal radical do governo Bolsonaro faz afagos às transnacionais de TIC, facilita suas práticas de captura de dados em território nacional e de envio de informações para data center localizados no exterior e permite a criação de bases de dados que alimentam sistemas de Big Data e de Inteligência Artificial que podem, inclusive, atentar contra nossa democracia, como vimos com o episódio das fake news nas eleições de 2018.
Não há, neste governo, qualquer estratégia aparente para reduzir os riscos que o novo cenário - que pode ser resumido em uma concentração ainda maior de poder econômico por parte de pouquíssimas empresas que atuam para além de nossas fronteiras e de nossa legislação - traz consigo, como é o exemplo da precarização das relações de trabalho por aplicativos. Também não há qualquer preocupação com a defesa da soberania nacional: nossas estatais tornam-se, na prática, revendas de produtos de corporações coletoras de dados ou então entregam informações a essas empresas graciosamente, por meio de uso irresponsável de serviços de computação em nuvem, informações sensíveis e confidenciais, que antes exigiriam um brutal esforço de espionagem industrial para serem obtidas.
Os dados pessoais, como muito se tem dito, são considerados o “novo petróleo”. Garantir a proteção dos cidadãos e cidadãs é fundamental. Ainda que a LGPD possa ser considerada uma legislação bastante avançada (mas não ideal), o desenho proposto pelo governo para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), nela prevista, pode torná-la praticamente inócua. A autoridade nacional, que está em vias de ser implementada, apresenta uma estrutura extremamente enfraquecida, impermeável à sociedade civil e sem qualquer autonomia em relação ao poder executivo. Nessa medida, lidando com tema estratégico ao país, a ANPD, no desenho apresentado, não terá capacidades mínimas para dar conta dos enormes desafios já postos e dos que ainda virão.