A demanda por petróleo no mundo vai diminuir nas próximas décadas? Novas fontes de energia mais limpas vão substituí-lo no médio e longo prazo? Se essas previsões parecem cada vez mais factíveis, a resposta aos desafios que impõem deve ser: viva a Petrobras, viva a indústria petrolífera.

Essa, que é uma das mais destacadas conclusões do debate realizado pelo Observa BR na noite de quarta, 14 de outubro, pode parecer contraditória, mas não é, apontam os participantes do programa.

Fundamentalmente, porque em todos os países desenvolvidos são justamente as empresas petrolíferas estatais ou governamentais que estão investindo pesadamente na pesquisa e no desenvolvimento de novas fontes de energia. São essas empresas as mais capacitadas – se não as únicas – do ponto de vista financeiro e tecnológico para enfrentar a nova realidade que se avizinha.

No Brasil, quem vinha fazendo este trabalho voltado ao futuro e à chamada transição energética era justamente a Petrobras, para a qual não foi constituído substituto à altura.

Portanto, desmanchar a Petrobras, como o país vem fazendo desde o golpe de 2016, é uma escolha que vai na contramão dos países líderes da economia mundial.

Além disso, alertam os debatedores, o petróleo ainda será por muito tempo uma fonte de energia central para a economia do planeta, tanto pela existência, ainda, de grandes reservas, quanto pelo desenvolvimento tecnológico capaz de aperfeiçoar e racionalizar cada vez mais sua exploração e uso.

José Sérgio Gabrielli, professor de economia aposentado pela Universidade Federal da Bahia e ex-presidente da Petrobras entre 2005 e 2012, William Nozaki, cientista político e coordenador técnico do Ineep (Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) e a doutora em desenvolvimento Juliane Furno, protagonistas do debate ocorrido na noite de quarta-feira, concordam que a decisão de diminuir a empresa de petróleo brasileira é uma opção contrária à soberania nacional e que vai impor grande dificuldades ao desenvolvimento econômico do país.

Juliane destacou que a Petrobras “já nasceu vocacionada a esse papel de busca da soberania”. Traçando retrospectiva histórica, a pesquisadora afirma que o Brasil não teria conseguido atingir estágios como o da industrialização se tivesse dependido unicamente de empresas privadas.

“A Petrobrás nasce em um período bastante crítico do abastecimento interno. Nos anos 40 o petróleo já era o principal item de importação na balança brasileira. Isso colocava em xeque o andamento do processo de industrialização. Quando há o primeiro choque do petróleo, os militares fazem a opção pela busca da exploração no mar. Novamente, há um esforço estatal para superação desse gargalo energético”, lembra.

“Nos anos 90, há uma alteração neste quadro”, diz Juliane. “O Fernando Henrique acreditou que concentrando a exploração apenas na Bacia de Campos, abriria condições de o capital internacional resolver a questão da soberania energética brasileira. Ledo engano”, completa.

Para ilustrar esse engano, Juliane lembra que a Shell teve a oportunidade de acessar o petróleo da camada pré-sal, no início dos anos 2000. “A Shell chegou a perfurar a camada do sal, mas desistiu porque a operação envolvia alto risco e isso tem um alto custo para uma empresa privada. Nos anos seguintes, a Petrobras novamente é alçada a esse papel de busca da soberania. A gente não consegue compreender a descoberta do pré-sal fora dessa chave”, diz.

Apontando para as perspectivas abertas pelas mudanças tecnológicas em curso e a busca por fontes limpas de energia, William afirma que essa evolução vai passar necessariamente pela indústria petrolífera. Tentar descartá-la antes de atingir o desenvolvimento necessário para essa transição energética corresponde a ficar de fora do processo.

“Existem múltiplas transições energéticas. O papel das petroleiras é fundamental neste processo. Não é possível pensar a transição energética nem a soberania energética sem considerá-las. A indústria petrolífera é uma das que mais investem em fontes de energia limpa e no gás natural, menos poluente que o petróleo”, afirma ele.

O coordenador do Ineep afirma que empresas de energia pequenas, sem integração com a cadeia produtiva – como a Petrobras vem se tornando – terão mais dificuldades de enfrentar este processo. E essa busca não pode ser adiada. A pandemia, lembra, acelerou o processo, que se torna definitivo. Houve queda na demanda por petróleo e aumento do uso de eletricidade, ao mesmo tempo em que as empresas do setor assumem a ponta pela transição energética.

“Apesar do suposto fim da era do petróleo, bastante improvável nos termos em que isso é colocado hoje, o setor é essencial para que sejam buscados novos caminhos” diz.

“Em maio deste ano, um grupo de executivos dessa indústria assinou um manifesto de apoio à busca por energias alternativas e limpas e de redução de CO2. Neste mesmo período, houve, por parte das empresas privadas, 20% de redução nos investimentos em energia, segundo a Agência Internacional do setor”.

William lembra que o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, apresentado pelo PT no final de setembro, aborda o tema da soberania energética sob o prisma da transição em curso. “O programa é o ponto de partida para um debate público mais amplo. Temos de considerar que energia não é um simples setor da economia. Ele é o dínamo da economia”.

Para Gabrielli, o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil se propõe a debater o futuro da energia no planeta e o papel que o país poderá desempenhar depois do processo de desmonte da Petrobras.

“Nas décadas de 40 e 50, no Brasil havia atores políticos importantes. Tínhamos um projeto nacional: um Estado disposto a financiar uma burguesia industrial que tinha um projeto, e um conjunto de militares comprometidos com este projeto de soberania. Havia também uma base social importante, composta majoritariamente por estudantes e por setores urbanizados. Um conjunto de forças sociais que apoiava a campanha O Petróleo é Nosso, jóia da coroa da brasilidade, da identidade nacional. Foi um momento histórico dado”, lembra.

“Nos anos 90, como em diversos lugares do mundo, surgem as empresas internacionais com dois argumentos: a Petrobras não é capitalizada nem tem tecnologia. Portanto, diziam ser importante abrir a economia brasileira. Depois, há uma reversão desse entendimento, com Lula e Dilma. Isso culmina em 2010 com um modelo de desenvolvimento baseado num enorme investimento no pré-sal e que viabilizaria a criação de uma imensa cadeia produtiva brasileira e com alto desenvolvimento tecnológico internalizado na Petrobras. Tudo isso se desfaz em 2016 com o golpe de Temer e hoje é desmontado. O que fazer depois disso?”, questiona.

“Nosso plano parte dessa constatação. Frente a este quadro, é preciso entender que as forças sociais existentes hoje não são as mesmas da década de 50. A nossa chamada burguesia industrial está esfacelada. É pouco mais de 10% do PIB brasileiro. Tornou-se muito mais uma parcela da cadeia global de valor do que portadora de um projeto próprio. A área de engenharia pesada brasileira foi desmontada pela Lava-Jato e pelos impactos reputacionais sobre o setor. A legislação foi profundamente modificada”, aponta.

O cenário atual exige uma dose grande de realismo, sugere Gabrielli. “A correlação de forças é muito negativa para um projeto nacional e para um projeto dos trabalhadores. A Petrobras torna-se uma empresa pequena quase que exclusivamente voltada para a exploração dos campos do pré-sal que já estão em seu portfólio”.

Caso haja uma mudança de correlação de forças institucionais e novas forças políticas cheguem ao poder, o ex-presidente da Petrobras diz que será necessário um novo projeto. “Faremos revogação dos contratos? Não é muito fácil esse processo de total reversão. Temos que pensar que tipo de política de conteúdo nacional poderemos fazer? É preciso encontrar novos caminhos”, argumenta. Nosso sonho não pode mais ser o sonho que tínhamos na década de 50 nem das duas primeiras décadas do século 21”, conclui.

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