O Plano de Reconstrução de Transformação do Brasil, lançado em 21 de setembro, contém um tópico que analisa o atual cenário de instabilidade no país, agravado pela tutela militar do poder civil e pelo bolsonarismo. Um dos instrumentos que ameaçam a liberdade de expressão brasileira é a Lei de Segurança de Nacional (LSN), um resquício da ditadura militar que precisa ser derrubado com a maior urgência. “Todos os dias, vive-se no país o medo do golpe definitivo contra a já abalada democracia. Por conseguinte, a grande prioridade atual é a defesa das liberdades democráticas e do Estado Democrático de Direito”, afirma o plano.
Nesse sentido, o PT propõe uma lei que coíba ameaças que pesam sobre a frágil democracia brasileira, entre outras medidas. Nesta entrevista, o jurista especializado em Direito Consitucional Pedro Serrano fala sobre a crise democrática atual e o PL 3864/2020, que ele ajudou a elaborar. O projeto apresentado recentemente à Câmara Federal pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP) institui a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito.
ObservaBR - Qual a importância de aprovar uma nova Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito para o Brasil hoje?
PS - A primeira coisa que temos de abordar é a necessidade de revogar a Lei de Segurança Nacional (LSN), essa seria a primeira função da legislação nova. A LSN é a pior legislação produzida pelo regime militar, porque manifesta exatamente a lógica dos regimes de exceção do século 20, as ditaduras, o nazifascismo, os bonapartistas. Essa lei enxerga como “indesejável” o cidadão que critica e exerce seus direitos de pensar, o oposicionista como inimigo do Estado e da sociedade. Rousseau já falava que o Estado só pode ter como inimigo outro Estado. Portanto trata-se de uma lei cujo espírito é incompatível com a Constituição de 1988. O Supremo deveria fazer com ela o que fez com a Lei de Imprensa e declarar que não foi recepcionada pela nova ordem constitucional integralmente, pois não existe um só dispositivo ou outro da LSN que seja compatível com a Constituição, pois trata cidadãos como inimigos. Criminaliza condutas que nos planos ético e democrático não devem ser considerados crimes e condutas desejáveis na democracia.
Quais são os efeitos práticos atuais da manutenção da LSN?
PS - O artigo 26 da LSN, por exemplo, sanciona como crimes a crítica ao presidente da República a ministros do Supremo, ministros de Estado, ao Parlamento, aos presidentes Câmara e do Senado, isso é um absurdo mesmo que a crítica seja exacerbada, abusiva. Se você comete um crime contra a honra do presidente da República ou de qualquer agente público deve responder na forma do Código Penal comum e não como se fosse um crime contra a segurança nacional. Um cidadão agindo pacificamente nunca atenta contra a segurança nacional. O problema é que houve um certo pacto interessante no Brasil Não se revogou a LSN, mas em compensação ela não era utilizada desde a Constituição de 1988. Agora ela volta a ser utilizada neste país autoritário em que vivemos. Tem diversos jornalistas, cartunistas e até um ministro do STF sendo investigado por ela, porque fez uma crítica, como cidadão, às Forças Armadas. Numa democracia qualquer agente público, inclusive os militares, está sujeito a críticas. Portanto independentemente do Supremo declarar sua inconstitucionalidade, o Legislativo deve se adiantar e revogar essa legislação, pois também é um órgão de defesa da Constituição. Mas melhor do revogá-la seria substituí-la por uma Lei de Defesa do Estado Democrático.
ObservaBR - E quais seriam as bases desta lei de defesa da democracia?
PS - Todas as democracias do mundo têm leis de defesa da Constituição ou quase todas. Fizemos uma ampla pesquisa que durou vários anos em toda a legislação europeia e inclusive de projetos de lei nos outros países latino-americanos, e, a partir dela, foi elaborado um projeto cujo conteúdo reúne outras leis democráticas, como a da Alemanha, de Portugal, da Itália, um projeto de lei aqui do Chile etc. Algo importante é que demos uma abrasileirada no projeto ao longo do processo. Preocupados com o fato de que no Brasil temos visto cada vez mais órgãos de investigação utilizando até leis às vezes boas por conta muitas vezes dessa legislação revertida em conceitos indeterminados, tivemos a preocupação de fazer poucos artigos muito específicos sobre quais são as atitudes criminosas. Há uma série de condutas que poderiam ser enquadrados na lei, mas optamos por não enquadrar para mitigar o risco aos movimentos sociais e à liberdade de expressão. Então é estritamente uma lei contra golpes militares, tentativas de golpe, insubordinações militares contra o poder civil com fins políticos e fake news produzidas com intenção de atentar contra a democracia.
Portanto só há sanções a movimentos contra as instituições democráticas que forem portando armas ou com ameaça de fazê-lo. Tanto é que um dos dos artigos estabelece que os movimentos sociais são instituições da democracia e devem ser protegidos.
A utilização da Lei de Segurança Nacional que vem ocorrendo atualmente, conforme o senhor mencionou, tem alguma relação com o ativismo judicial, a produção de medidas de exceção pela jurisdição?
Sim, isso é um problema do país, e além da LSN tem vários outros instrumentos, pois medidas de exceção podem ser produzidas em qualquer ambiente do direito. Mas é mais comum que sejam produzidas no Direito Penal, e certamente a Lei de Segurança Nacional é uma das das legislações que têm sido utilizadas com fins de produzir processos penais de exceção. O que a gente tem observado é que o foco é mais a liberdade de expressão e, por exemplo, agora, até o Boulos tem um inquérito contra ele.
Observa BR - Por favor, comente como o projeto de lei trata as fake news.
Ele retrata que quando fake news forem produzidas contra as instituições democráticas é estipulado um crime por conta disso. Mas óbvio que se entende aí fake news como uma conduta dolosa, ou seja, não é a pura e simples produção de uma notícia falsa. É a produção sabendo que ela é falsa e com a intenção de prejudicar instituições democráticas, de prejudicar o bom funcionamento da Democracia. Então não é uma conduta meramente culposa, porque o jornalista ou a pessoa que trabalha com informações pode cometer erros como em todas as profissões. A intenção não é criminalizar o erro, pois se ocasionou danos há formas de reparar os danos. O direito penal é de último caso, para condutas muito agressivas. Ao meu ver o mero erro não é caso de direito penal.