Resenha de Henry Campos e Nahuan Gonçalves
Ao completar uma semana da divulgação da infecção do presidente norte-americano Donald Trump pelo coronavírus, o agravamento da sua postura de negação da doença tem sido um estopim na deflagração de várias situações que retratam um país refém de um presidente, cuja imagem, paradoxalmente, ruiu por terra. Um artigo publicado pelo jornalista Dana Milbank, na edição de 25 de setembro do Washington Post, “Isto não é simulação. O Reichstag está em chamas” (Thisisnot a drill. The Reichstagisburning), mostra as semelhanças entre a evolução do incontrolável autoritarismo do governo americano e o desenvolvimento do totalitarismo hitleriano. No título o jornalista faz uma alusão à ocasião em que Hitler, na Alemanha, em 1933, usou um incêndio tido como criminoso, do parlamento alemão, para transformar a democracia em um estado totalitário.
Na verdade, o culto, por Trump, da violência para resolver dissidências, a criação de situações de emergência para concentrar nele mais poder, a submissão incondicional exigida dos membros de sua equipe de trabalho, as palavras usadas por ele para descrever os movimentos de luta anti-racista, a sua aprovação dos grupos de extrema direita e neonazistas e a omissão diante dos seus homicídios, as suas intimidações e manobras para sabotar a próxima eleição, inclusive revitalizando táticas desaparecidas há 40 anos, para dificultar o acesso dos eleitores negros às urnas, e, por último, a sua tentativa de adiar as eleições e de não garantir uma transferência pacífica de poder, são mais do que evidências de uma personificação do totalitarismo. Acrescente-se a esse rol, a condução genocida da pandemia pelo presidente americano, o seu doutrinamento de negação e desrespeito à ciência, a pressão por ele exercida para burlar as regras de liberação da vacina contra a Covid-19, que nos dão ainda mais elementos para temer o seu poder destruidor. Na América de hoje não ardem apenas as florestas da Califórnia – o perigo de destruição da democracia é real.
Em seu livro publicado em julho deste ano, Demais e Nunca o Bastante. Como Minha Família Criou o Homem Mais Perigoso do Mundo (Too Muchand Never Enough. Howmy Family Created the Most Dangerous Man in the World), Mary Trump, sobrinha do presidente americano, PhD em Psicologia , terapeuta e professora universitária, não parece fazer vendeta ao traçar um perfil psicológico de Donald Trump baseado em padrões de alterações mentais, onde preenche os critérios de narcisismo, personalidade antissocial, destacando que “ele não age segundo estratégias ou agendas, como se operasse segundo princípios organizacionais. Ele não faz isso. O ego de Donald tem sido e é uma barreira frágil e inadequada entre ele e o mundo real, com o qual, graças ao dinheiro e poder do seu pai, ele nunca teve que negociar por si mesmo. Donald sempre perpetuou a ficção iniciada por seu pai, meu avô, que ele é forte, inteligente, o que torna isso extraordinário, porque enfrentar a verdade – que ele não é nenhuma dessas coisas – é muito aterrorizador para ele contemplar.” Prossegue Mary Trump: “Trabalho honesto nunca foi dele exigido, e não importa quanto ele tenha fracassado, sempre foi reconhecido de modo quase oculto. Ele continua sendo protegido dos seus próprios desastres na Casa Branca, onde uma claque leal a ele aplaude cada pronunciamento seu ou encobre qualquer negligência criminosa sua, normalizando-a a ponto de nos tornarmos anestesiados com as transgressões que se acumulam. Agora, no entanto, os desafios são bem mais altos como nunca foram; eles são, literalmente, vida e morte. De maneira sem precedentes na sua vida, os fracassos de Donald não podem ser escondidos ou ignorados porque eles ameaçam todos nós.”
Com esse perfil do presidente americano temos a explicativa de que, para ele, “estar doente, é ser fraco”, a evidência de que a vida dos outros é banalizada e sem qualquer valor, como mostram os acontecimentos, que a sua existência é forjada na mentira, na manipulação da verdade. Assim é que permanece oculta até hoje a data real do seu primeiro teste positivo para a COVID-19, o que ocorreu possivelmente antes do debate presidencial. Do mesmo modo estão os médicos que dele cuidam, quando deixam de revelar pontos importantes da sua evolução clínica, da extensão da sua doença, do acometimento ou não dos seus pulmões. A equipe médica chegou a evocar indiretamente o The Health Insurance Portabilityand AccountabilityAct – HIPAA, lei federal de 1966, que estabeleceu padrões para a divulgação de informações sobre a saúde do paciente sem o seu consentimento. Em se tratando de um chefe de Estado os estudiosos da ética perguntam: não seria esse dever de informar uma obrigação perante a nação? Mas, tratando-se de Trump, nenhuma regra é seguida, muito menos a ciência é respeitada. O inusitado passeio de carro, que pôs em risco os seguranças que o acompanhavam, pode ter outros dois componentes, além da irresponsabilidade e do desrespeito à liturgia do cargo: baixos níveis de oxigênio sanguíneo e altas doses de corticosteroides, o primeiro pela confusão mental a que dá origem , o segundo, pela exacerbação do humor.
O fato é que, a seu belprazer, Donald Trump sempre esteve no comando do seu próprio tratamento e continuou seu espetáculo na esteira da irresponsabilidade. Dando prosseguimento ao seu desdém para os riscos do coronavírus, ditou a sua própria alta, excessivamente prematura, e voltou rapidamente para o seu território familiar – a ala oeste da Casa Branca, a essa altura já com 19 dos seus assessores mais próximos infectados, igualmente contaminada pela propaganda, sem grande preocupação com as centenas de empregados subalternos, cujo trabalho é considerado essencial – negros, latinos e filipinos, que circulam pelos estreitos corredores da sede do governo americano e que “não podem perder seus empregos”. Em sua primeira declaração após a alta, obviamente sem máscara, usando a sua maquiagem habitual de fundo alaranjado, Donald Trump mostrou o seu desrespeito para com a população americana: “Não tenham medo. Não deixem o coronavírus dominar suas vidas”, sem pensar nas consequências dessa fala desastrosa e muito menos considerar que nenhum outro americano teria acesso ao tratamento de ponta por ele recebido – anticorpos monoclonais, antivirais, corticosteróides, bem como contar com o mais seguro aparato médico imaginável. Irresponsavelmente, ainda acrescentou a posteriori: “A Covid-19 foi uma benção. Os americanos terão acesso a uma cura gratuita.” Bem sabe ele que isso não é verdade, que o número de novos casos continua a crescer em mais da metade dos estados americanos e que, estados como North Dakota e Wisconsin enfrentam faltas de leitos para tratar os pacientes. Face à erupção de casos em áreas como o Brooklyn e Queens, o governador de Nova Iorque, Michael Cuomo, foi obrigado a reinstituir o lockdown, causando protestos principalmente da comunidade de judeus ortodoxos, que julga-se prejudicada nos seus direitos de prática religiosa.
O caos instalado no país tem outras facetas, a começar pelo ocultamento de qual dos acontecimentos sociais e aglomerações deu início ao surto de contaminação dos assessores presidenciais, de militares do Pentágono, e de jornalistas, e em quais deles Donald Trump já estava infectado: debate presidencial (ala trumpista sem máscaras)? rallies políticos? reunião com doadores? cerimônia no Rose Garden (26/09) para homenagear a indicada para o supremo, juíza Amy Coney Barret? Cerimônia para entrega da Gold Star a militares (27/09)? Isso ficará sem resposta, o que torna também mais fácil que para não haja uma ação coordenada da Casa Branca para rastrear as pessoas que tiveram contato com os infectados.
Ao contrário do que alardeia Trump, a economia desanda, o desemprego não diminui, e ele, numa manobra relâmpago surpresa, declara suspenso o auxílio emergencial, já negociado com o Congresso, cujo valor é hoje incerto, algo entre 1 e 2,5 trilhões de dólares, para atender a desempregados, populações vulneráveis, pequenas empresas e comércios. Esse anúncio foi feito depois que Jerome Powell, presidente do mais importante dos 12 Federal Reserve Banks, fala da “trágica redução da economia”. Esses bancos executam a polícia do banco central americano, revendo inflação e crescimento econômico, e assim regulam os demais bancos do país. Embora Trump afirme que o auxílio emergencial só será liberado depois da eleição de 3 de novembro, são muitas as apostas de que essa é mais uma manobra eleitoreira, que só aguarda a definição de como poderá reverter em maior número de votos.
Uma evidência direta de como a postura de Trump, de negar a existência da chamada supremacia branca e de, indiretamente, incentivar com suas falas os movimentos racistas de extrema-direita, repercutem e ampliam a violência e a atividade desses grupos, foi a descoberta, pelo FBI e polícia estadual , nesta quinta-feira, de um plano para sequestrar e executar a governadora democrata de Wisconsin, Gretchen Whitner. Treze homens foram presos e aguarda-se o início da investigação que os levará a julgamento. A Casa Branca não se pronunciou e o Procurador Geral do país, William Barr, declarou desconhecer o assunto.
Em sua desesperada busca pela reeleição, o presidente Trump aumenta a pressão sobre os organismos que regulam a liberação da vacina, o que foi prometido por ele ocorrer até “o dia 3 de novembro”. Entre os profissionais do National Institutesof Health – NIH e Food and Drugs Administration – FDA só aumenta o desconforto e descontentamento. Nesta quarta-feira, 7 de outubro, o cientista sênior do NIH, especialista em vacinas que atua há 25 anos, Dr. Richard Bright, apresentou a sua renúncia em razão da “politização da ciência”. Um dos fatores que contribuíram para a sua decisão foi a chegada à equipe do NIH, do Dr. Scott W.Atlas, do Stanford’s Hoover Institute, que manifesta publicamente a sua aversão a máscaras e acredita que alcançar a imunidade de rebanho é a melhor alternativa para os americanos. O Dr. Atlas tornou-se um dos interlocutores favoritos de Donald Trump. Em meio a essa pressão para liberação das vacinas, a Covid-19 Prevention Network enfrenta dificuldades para incluir mais voluntários negros para testes das vacinas, pois estes são apenas 3% dos 407.000 voluntários, enquanto que a representação de negros na população americana é de 13%. Análise recente, feita pela Kaiser Family Foundation, mostra que na atual pandemia a probabilidade de hospitalização é cinco vezes maior, e a de mortes duas vezes maior, na população negra. A aceitação de uma futura vacina parece estar em declínio, em comparação a sondagens anteriores: apenas 52% da população de cor branca e 32% dos afrodescendentes dizem aceitar receber uma vacina quando ela estiver disponível.
Outra confusão gerada por Trump é a pressão para liberação emergencial para uso da associação de dois anticorpos monoclonais com que foi tratado, REGN10933 e REGN10987, fabricados pelos laboratórios Regeneron e Eli Lilly. “Vejo Regeneron como a cura, não apenas como uma terapêutica. Vejo como uma cura porque eu tomei”, disse Trump à repórter Maria Bartiromo, da Fox News. Em outra entrevista à Fox News, ao repórter Sean Hannity, Trump dá prosseguimento ao seu pensamento mágico: “O que eu tomei é incrível. Para mim, vejo como uma cura. E nós vamos fornecer para todas as pessoas, sem custo. Isso vai começar muito em breve”. Estimulado pelas declarações presidenciais, o executivo-chefe da Regeneron, George Yancopoulos, solicita a aprovação rápida dos dois produtos. O Dr. Peter Chin-Kong, especialista em doenças infecciosas em São Francisco, Califórnia, afirma que “há um milhão por cento de não possibilidade de que o tratamento possa ter curado Trump”.
É em meio a todo esse caos que Donald Trump luta desesperadamente por sua reeleição. Fragilizado não pela sonegação de impostos, que nega com veemência, e sim pelas evidências de seu fracasso como homem de negócios, atestado por suas múltiplas falências, Trump continua, com seu discurso messiânico, a agir com as leis valendo para todos, menos para ele. Diz-se de seus eleitores que “nunca se deve subestimar até que ponto os seus apoiadores gostam dele, por sua quebra das regras”. A história atual vivida pela nação americana seria bem diferente se Donald Trump tivesse feito uso de sua infecção pelo SARS-CoV-2 para redefinir a sua narrativa.
Para ler mais:
Trump, Mary. Too Muchand Never Enough. How My Family Created
The World’s Most Dangerous Man. Simon & Schuster, New York, 2020.
www.washingtonpost.com
www.lemonde.fr
www.nytimes.com
www.theguardian.com
www.apple.news
www.theink.com
www.cdc.gov/phlp/publications/topic/hipaa.html
www.financialtimes.com