Tânia Oliveira e Jorge Messias, do NAPP Institucional

O processo de redemocratização do Brasil, que se firmou com a promulgação da Constituição Federal em 1988, sofreu um rompimento de laços na última década entre as forças democráticas que sustentavam o pacto republicano, o ciclo político da Nova República, com o questionamento dos resultados eleitorais em 2014, a deposição presidencial em 2016 e a dinâmica que precedeu o pleito eleitoral de 2018, que condenou à prisão o ex-presidente Lula, e levou Jair Bolsonaro à presidência da República.

Um programa que pretenda a refundação da democracia no Brasil precisa compreender o desenvolvimento das grandes lutas e das grandes reflexões em curso e, ao mesmo tempo, verificar e enfrentar amarras do passado com vistas a criar esperanças para o futuro.

A retomada da trajetória democrático-popular do país deve estar ancorada em um Estado de novo tipo, assentado no aprofundamento permanente da soberania popular, na defesa diuturna da vontade geral da população, e na busca incessante pela formação de uma opinião pública livre e plural. Só assim poderemos enfrentar os sobressaltos e rupturas institucionais que, de tempos em tempos, colocam o país nas mãos de governos ilegítimos, ilegais e impopulares.

Para tanto, é fundamental que tenhamos clareza sobre a diferença entre o que é a estrutura do Estado e o que é a dinâmica do governo. Enquanto o primeiro exerce sua soberania por meio do monopólio da gestão do território, das armas, dos impostos, das moedas, do estamento burocrático e da diplomacia externa, o segundo assegura sua legitimidade por meio da construção dos direitos civis, dos direitos políticos, dos direitos sociais, do planejamento e das políticas públicas.

Para compor um programa compreensível e imprescindível para o exercício da soberania popular e para a refundação democrática do Brasil, precisamos enfrentar os impasses que envolvem a soberania popular: o sistema de Justiça; o sistema econômico; as reformas políticas; a democracia participativa; a revogação do aparato autoritário.

No Brasil, as instituições macro do sistema de Justiça, Poder Judiciário e Ministério Público são postos em uma posição de verdadeira superioridade diante dos outros poderes, o que é negativo para o funcionamento regular da República e da democracia, e impõe a realização de reformas na legislação ordinária, nas estruturas e nas carreiras. Demandam alteração constitucional, mesmo que seja parcial, com vistas a criar mecanismos de participação social e de controle, além de reexame de competências.

Com vistas a conter e rever o modelo de Estado mínimo em construção pelo neoliberalismo no poder, que impõe a flexibilização de direitos fundamentais e sociais, com seu mecanismo autoritário, precisamos restabelecer o serviço público como elemento essencial do Estado social, o que deve ensejar, em especial, a reforma da legislação relativa às concessões de serviço público, bem como as atividades nas quais o regime de public utilities foi aplicado, para que seja retomada a propriedade e a titularidade dos serviços. É preciso, em suma, reverter as privatizações, mantendo a iniciativa privada para os casos estritamente necessários. Os marcos legais devem ser alterados, para fortalecer o poder concedente em suas prerrogativas clássicas, ou seja, o modelo mais próprio de um Estado social.

Por outro lado, é imperioso imprimir nova qualidade na democracia no Brasil, combinando, de forma eficaz, a democracia representativa e novas formas de exercício da democracia participativa, e enfrentar o processo devastador de desqualificação da política e de deslegitimação das instituições, sob pena de agravamento da crise de representação política e do avanço de forças fascistas e autoritárias, sendo fundamental abrir caminho para reverter a exclusão política e enfrentar a sub-representação das mulheres, da comunidade negra, dos pobres, dos indígenas, com adoção da paridade de gênero e representatividade étnico-racial na composição das listas.

Todas as democracias consolidadas do mundo estabelecem mecanismos de regulação democrática, como forma de apoiar o amplo exercício do direito humano à comunicação. As comunicações devem ser livres da ação de controle das autoridades e governantes, impedindo toda e qualquer tipo de censura, mas também da dominação de alguns poucos grupos econômicos. A liberdade de imprensa é fundamental, bem como o pluralismo e o acesso a fontes diversificadas e independentes de informação, essenciais em uma sociedade verdadeiramente democrática.

Em outra ponta, coloca-se na ordem do dia a implantação de mecanismos de democracia participativa: orçamento participativo nacional, conferências setoriais e temáticas com caráter deliberativo e garantia da execução das suas deliberações, como exemplos de radicalização da democracia com a prática da democracia participativa em todas as esferas públicas: municipal, estadual, federal. Ao mesmo tempo, se reforçam as condições para implementar uma ampla reforma política, que nosso país tanto necessita, modificando as estruturas que tornam o sistema político vigente obsoleto e dominado por oligarquias e elites econômicas, combatendo, assim, uma das principais causas da corrupção.

Por fim, o Estado Democrático de Direito se ampara em determinadas dimensões materiais e formais que podemos resumir em supremacia da Constituição, juridicidade, democracia, República, separação das funções estatais e garantia dos direitos individuais e sociais.

A proposição de novos instrumentos de defesa da democracia deverá ser construída em diálogo com os movimentos sociais. A ação contra a democracia perpetrada por movimentos protofascistas, de tutela da ditadura militar, da tortura e contra os direitos humanos deve ser respondida por meios legitimamente definidos e eficazes.

Sendo assim, a retomada de um projeto de desenvolvimento para o país passa, necessariamente, pela construção de novos marcos democráticos, envolvendo não apenas a esfera do Poder Executivo e nem tão somente a dimensão das políticas públicas, mas integrando a totalidade das instituições do Estado nesse percurso. Tal esforço de reconstrução só pode se dar a partir de uma articulação entre uma reforma política, uma reforma do Estado e uma reforma administrativa, todas orientadas para a construção e o aperfeiçoamento de mecanismos de democratização, repartição da renda, transparência e controle público.