Por Miriam Belchior

Acredito que o Brasil precisa de uma Reforma Administrativa para fortalecer o Estado brasileiro tornando-o capaz de promover a redução das desigualdades sociais e regionais do país e garantir os direitos da população, prestando bons serviços. O que a população quer é saúde e educação de qualidade, agilidade administrativa, enfim usufruir de seus direitos e ter melhores serviços.

A apresentação pública e a mensagem do governo ao Congresso sobre a Reforma Administrativa (PEC-32) fala em Nova Administração Pública e em Estado que precisa entregar mais à população, mas não há um só artigo da PEC que trate desse aspecto.

O que a Reforma de Bolsonaro tem como objetivo é desmontar o Estado a partir de um foco eminentemente fiscal, sem qualquer preocupação em melhorar o funcionamento dos governos federal, estadual e municipal.

E faz isso demonizando os servidores públicos e mentindo sobre a despesa de pessoal no governo federal ao apresentar dados de crescimento nominal dessa despesa, sem descontar a inflação – 145% em 12 anos; ao invés de apresentar a despesa como % do PIB, que tem se mantido estável em torno de 4,5%.

A PEC 32 se junta a várias outras medidas de destruição do Estado, como a PEC 188 do pacto federativo, o Teto de Gastos, a Lei complementar 173 e as privatizações de setores estratégicos.

Acredito que há cinco elementos principais que cabe destacar a respeito da Reforma proposta.

  1. Subordinação do público ao privado

O Artigo 37 da Constituição estabelece os princípios que a administração pública obedecerá: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A PEC-32 propõe adicionar o princípio da subsidiariedade, que foi discutido e descartado durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1988.

A adoção desse novo princípio implicaria numa profunda limitação da intervenção estatal. O Estado passaria a ser auxiliar do setor privado, destinado apenas a suprir a iniciativa privada em suas deficiências e carências, só a substituindo excepcionalmente. A atuação do Estado seria a exceção, não a regra.

Essa medida fere de morte as bases sobre as quais nossa Constituição foi construída: prestação pelo Estado, de forma universal, dos direitos básicos de saúde, educação, assistência, previdência social, trabalho, e outros, inspirado nos Estados de bem-estar europeus. Não à toa ela foi chamada de Constituição Cidadã.

É bom lembrar que a atual Constituição do Chile, oriunda do período Pinochet, apresenta esse princípio, que foi a base da privatização da previdência, da saúde, da educação, entre outras, naquele país. O Chile se prepara para um plebiscito em 25 de outubro sobre fazer ou não uma nova Constituição e o maior foco de mobilização da sociedade é exatamente a questão da subsidiariedade, que deixou milhões de chilenos sem proteção social.

  1. PEC covarde, elitista e mentirosa

O governo mente ao afirmar que a reforma proposta não atinge os atuais servidores, pois os projetos de lei previstos na PEC vão atingi-los.

A proposta é covarde e elitista porque diz que a reforma é contra privilégios, mas ela atinge servidores civis de todos os níveis de governo, cuja grande maioria ganha salário mínimo; e protege a maioria dos detentores de altos salários e mordomias: os militares, os juízes e os promotores e procuradores do Ministério Público.

Covarde e mentirosa, pois usa a falácia de que o Executivo não poderia propor mudanças para os outros poderes. Eles não usaram esse falso argumento quando enviaram a proposta de Reforma Previdenciária, que atingia os demais poderes.

Assim, os juízes, promotores e procuradores foram preservados com a manutenção de férias de dois meses, gratificações de substituições e os diversos penduricalhos extra teto, mantendo seus altíssimos rendimentos. Os militares foram poupados e continuarão podendo ser promovidos por tempo de serviço, diferentemente dos demais servidores; a proposta flexibiliza ainda mais a acumulação de cargos civis por fardados. Mesmo entre os servidores civis há distinção: a PEC exclui os servidores com vinculo “típicos de Estado” da redução de jornada com redução de salário. No governo federal, seriam as carreiras que ganham muito perto do teto.

  1. A PEC substitui o Regime Jurídico Único por novas modalidades de contratação

A aprovação da PEC retiraria a estabilidade da maior parte dos novos servidores públicos, criando 4 novos tipos de vínculos: os cargos típicos de Estado, únicos a manter a prerrogativa da estabilidade; os cargos com vínculo por prazo indeterminado; os com vínculo por prazo determinado e os cargos de liderança e assessoramento, novo nome para os cargos em comissão.

Os dois primeiros cargos seriam providos por concurso público, enquanto os cargos com vínculo por prazo determinado por seleção pública simplificada. Para os cargos com concurso, seria criada uma nova etapa chamada de vínculo de experiência, de pelo menos um ou dois anos, após o qual os mais bem avaliados seriam nomeados.

Afora a perda de direitos decorrente da extinção do Regime Jurídico Único, essa multiplicidade de “tipos de cargos”, regidos por regras diferentes, tornaria a gestão de pessoal inadministrável e a representação sindical seria muito prejudicada.

Além disso, os cargos típicos de Estado seriam definidos por lei complementar federal mais adiante, o que, com certeza, provocaria uma guerra entre as carreiras para garantir a estabilidade, considerando a dificuldade objetiva dessa definição. Por exemplo, auditor, médico e professor, que existem na iniciativa privada, poderão ser considerados como típicos de Estado?

  1. PEC autoritária

A aprovação da PEC retiraria atribuições do Congresso Nacional e de estados e municípios, concentrando poderes no Executivo Federal.

Hoje o Congresso tem atribuição de aprovar a criação, fusão ou extinção de órgãos e cargos. Com a PEC, essa atribuição passaria a ser feita por decreto pelo Presidente, quando não implicasse em aumento de despesa. Esta medida daria guarida, por exemplo, ao ato de extinção de Conselhos feito pelo atual governo, que foi rejeitado pelo STF. Também seria possível, por exemplo, fundir o Instituto Chico Mendes ao Ibama, sem debate público e sem ouvir o Congresso.

A confirmação da PEC permitiria que os órgãos que adotassem o mecanismo de contratos de gestão pudessem apresentar um orçamento global, sem detalhar os tipos de despesa. Verdadeiro “cheque em branco”, retiraria do Congresso a atribuição de discutir como são as despesas dos órgãos.

A reforma proposta prevê criar diretrizes gerais para a gestão de pessoas em todos os entes federados, por meio de um projeto de lei complementar federal. Com isso, estados e munícipios deixariam de legislar livremente sobre o assunto.

Essas medidas representam bem o viés autoritário do atual governo, que tem gerado, entre outras consequências, a forte judicialização das políticas públicas no país.

  1. Reforma joga para a torcida

Além de não mexer nos verdadeiros privilegiados do setor público, a PEC traz vários dispositivos que não seriam necessários constitucionalizar, visto já estarem regulados por lei.

A proposta também acaba com coisa que não existe mais. O maior exemplo disso é a proposta de extinção da aposentadoria compulsória como punição, que já foi constitucionalizada em 2019 com a Reforma da Previdência.

Enfim, a Reforma proposta não apresenta caminhos para o aperfeiçoamento necessário que o funcionamento do setor público precisa, mas tiraria direitos dos servidores e provocaria prejuízos profundos à população brasileira.

Os direitos legítimos dos servidores públicos precisam ser preservados, mas não podemos nos alinhar ao corporativismo puro e simples dos que defendem privilégios incompatíveis com a realidade brasileira.

Espero que o Congresso Nacional, capitaneado pelas oposições, defenda os princípios da Constituição de 1988 e denuncie a covardia do governo ao deixar de fora da reforma os principais detentores de privilégios no país, assim como faz na proposta de Reforma Tributária, em que não propõe cobrar impostos de quem tem muito isentando os mais pobres.