A economista Tereza Campello foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Dilma Rousseff. Comandou a pasta que teve resultados na política de inclusão social mais eficiente já posta em prática no mundo. Atualmente Tereza é uma das coordenadoras do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas (Napp) Desenvolvimento Social da Fundação Perseu Abramo, que tem feito muitos debates e produzido conteúdos que ajudaram a gerar parte do Plano Reconstrução e Transformação do Brasil, documento que está sendo divulgado para a sociedade. O ObservaBR inicia com esta entrevista uma série de outras, com os demais integrantes dos Napps, para divulgar os temas e as propostas do Plano.
Campello explicou na entrevista como funcionará o Mais Bolsa Família, falou um pouco sobre a desigualdade no Brasil e o no mundo e as possibilidades de superação da pobreza e da desigualdade com as propostas apresentadas à sociedade.
ObservaBR: Como tem funcionado o Napp de Desenvolvimento Social?
Tereza Campello: Na verdade, temos um Napp que é bastante amplo, porque pensar desenvolvimento social é uma ideia de pensar a agenda social para além das políticas sociais estrito senso. Exatamente porque você não dá conta de enfrentar e reduzir desigualdade e garantir direitos para a população olhando cada uma das caixinhas. Então estamos com um núcleo de acompanhamento de políticas públicas de Desenvolvimento Social e é bem amplo é coordenado por três pessoas: sou eu, a Laís Abramo e a Márcia Lopes.
E aí a gente tem trabalhado também com uma interseção muito forte com alguns Napps. Tem gente que nem sabe que existe esse Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas. No caso do nosso Napp o centro da preocupação é agenda desigualdade olhando muito para as políticas sociais e o recente desmonte das políticas sociais. A gente trabalha sempre muito em parceria com o Napp de Economia e de Emprego e Trabalho. Então, grande parte das políticas que construímos para o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil foi feita em conjunto com esses outros dois Núcleos.
ObservaBR: Qual a situação da desigualdade no mundo e no Brasil e como chegamos nessa situação?
TC: É importante a gente pontuar a questão da desigualdade crescente no mundo para entender a situação atual.
Vivemos no Brasil um período exemplar ao ter inaugurado um momento de enfrentamento de problemas históricos. No início da década deste século, principalmente a partir de 2003, com o governo do presidente Lula e ao longo de treze anos, o país conseguiu reduzir desigualdades. Pela primeira vez, tivemos no Brasil, durante esses treze anos, um período no qual houve um crescimento grande e diminuição da desigualdade. E mesmo depois de 2008, com a crise internacional, o Brasil continuou reduzindo pobreza e desigualdades.
Foi quebrado um processo de naturalização histórica, de que o Brasil sempre foi assim, sempre teve fome, pobreza, os negros sempre foram os mais pobres e que isso faria parte da nossa gênese, da nossa natureza. Este período foi absolutamente importante porque mostra que é possível fazer diferente, quebrar esse processo e reduzir desigualdade.
As desigualdades não são só de renda e patrimônio, também são de acesso, como é o caso do acesso ao saneamento básico, que é um problema histórico no Brasil determinante de um conjunto de outros problemas, inclusive de saúde pública. O não acesso ao saneamento básico tem um impacto altíssimo na vida dessas comunidades, em geral pobres.
Entre 2003 e 2015, 48 milhões de brasileiros passaram a ter saneamento, fossa séptica ou rede geral. E a maioria desses são negros. Então para se ter ideia, 48 milhões de pessoas é como se tivéssemos levado o saneamento básico para toda a Argentina em treze anos. Alguns países levaram séculos para fazer isso. Nós em treze anos conseguimos garantir 48 milhões de brasileiros com acesso, eletricidade para 36 milhões de brasileiros e não é só o Luz para Todos, outros milhões de brasileiros nas periferias passaram a ter acesso a água, esgoto, energia. Então houve um processo de redução das desigualdades no Brasil muito acima daquilo que a gente identificou em outros países no mundo. Também neste período vivenciamos uma redução das desigualdades de renda, redução da pobreza em vários países da América Latina que, a exemplo do Brasil, também tiveram uma redução da pobreza e da desigualdade de renda.
No mundo acontece hoje uma onda conservadora e neoliberal que avança sobre o Brasil e sobre vários outros países na América Latina. Países que tinham tradicionalmente um Estado de bem-estar social forte, como é o caso da Inglaterra, e que passaram por um período longo de desmonte de políticas públicas colocando em xeque o conjunto das políticas sociais. É importante olhar a desigualdade como um todo. Tem acesso quem tem dinheiro, mas para a população pobre ter acesso à educação pública de qualidade, assistência social faz uma diferença enorme.
A desigualdade lamentavelmente voltou a crescer no Brasil, que vinha já enfrentando uma situação bastante grave de crescimento do desemprego e desaceleração da economia e de aumento da informalidade. Quando falamos de desigualdade é importante situar porquê melhorou tanto a renda dos brasileiros ao longo desse período de governo do presidente Lula e da presidenta Dilma. Não foi só o Bolsa Família. Grande parte do fortalecimento da renda da população que levou a sair da pobreza e melhorar de vida não foi só res8ltado das políticas sociais: foi o aumento do salário mínimo, aumento dos empregos, tivemos aumento do salário mínimo 74% acima da inflação, vinte milhões de empregos formais gerados.
E de 2016 a 2020 tivemos uma reversão completa, as políticas de recuperação do salário mínimo foram estagnadas, interrupção do processo de geração de empregos formais, aumento do desemprego, e mesmo entre os empregados com trabalhos precarizados. Esse aumento da desigualdade de acesso está na desorganização do mercado de trabalho, na fragilização das políticas sociais e 2020 é inaugurado com a tragédia sanitária do coronavírus encontrando o Brasil muito fragilizado.
A crise do coronavírus seria uma tragédia em qualquer circunstância, não vamos diminuir o problema. Mas enfrentar a pandemia em 2014 é completamente diferente de enfrentar em 2020. Tínhamos a população em pleno emprego, políticas públicas, uma legislação trabalhista que dava garantias à população, o respeito a direitos como o direito humano à alimentação adequada. Falar em desigualdade é também pensar em desigualdade de acesso a alimentos saudáveis. Tudo isso é parte do processo. E tudo isso bem ligado à economia, não dá para fazer uma proposta do que queremos fazer para reconstruir a área de desenvolvimento social sem pensar no desenvolvimento econômico, até porque no nosso projeto eles não estão separados.
Os elementos centrais no Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil: o econômico, o social e o ambiental, que não só se complementam mas mutuamente se dinamizam. As soluções ficam muito melhores à medida que você trabalha de forma conjunta.
Uma das questões estratégicas no nosso Plano, por exemplo, é o casamento do auxílio emergencial com o Mais Bolsa Família. Questões que entraram na parte do Plano com medidas emergenciais. A primeira é que queremos a manutenção dos seiscentos reais. É errado o que o governo federal está fazendo, decretando o fim da pandemia e do auxílio emergencial em 31 de dezembro por Medida Provisória. É uma temeridade porque na verdade a pandemia continua, e o Brasil vai viver uma situação endêmica, portanto é um erro, tanto do ponto de vista sanitário quanto do ponto de vista da recuperação da economia, e o fim dela não vai acontecer por decreto.
Hoje temos várias pesquisas, inclusive do IBGE, mostrando que a população gastava 60% dos R$ 600 com comida. Se você corta para 300 e 326, ninguém vai comer, e os preços subiram loucamente. São dois movimentos pressionando essa população e levando-os a uma situação de insegurança alimentar limite: de um lado, mesmo que fosse o valor de R$ 600, já não seria suficiente para a família comer, então, vai ter de comer menos do que já comia.
ObservaBR: E junta com a outra área que a é agricultura, investimento nenhum para agricultura familiar que poderia e pode conter a fome em muitas localidades.
TC: As questões que envolvem a segurança alimentar não são só a quantidade de comida, mas a qualidade. Esse aumento do preço dos alimentos e a tragédia da redução do valor do auxílio emergencial vai levar a uma situação gravíssima de ameaça ao direito humano à alimentação.
Nosso Plano de Transformação e Recuperação está falando, por um lado, na exigência de manter o auxílio emergencial enquanto durar a pandemia, e ao mesmo tempo, já estamos apontando para uma saída emergencial quando terminar quarentena. E essa proposta de saída é o Mais Bolsa Família, um programa muito ampliado.
Perguntam por que agora estamos propondo, e não quando era ministra. Naquela época a taxa de desemprego era menos da metade de hoje, tínhamos um Bolsa Família adequado àquele momento. Hoje, para o Bolsa Família dar conta da atual realidade com o aumento da desigualdade e com a queda de renda, com a crise, ele teria que ser adaptado atual situação.
ObservaBR: Quem tem direito ao Mais Bolsa Família?
TC: Famílias que recebem até R$ 600 per capita. Isso não quer dizer que ela vai receber R$ 600. É o critério de entrada. Então, por exemplo, uma família que recebe R$ 2000 e tem quatro pessoas (dois adultos e duas crianças), está dentro do Mais Bolsa Família. Se você dividir dois mil por quatro, são quinhentos reais, e nessa faixa vai receber trezentos reais por criança. Todo mundo que tiver dentro do Bolsa Família e tiver criança e jovens até 18 anos recebe R$ 300 por criança. Então esse casal com dois filhos receberia R$ 600 porque são duas crianças. Se for um casal com R$ 600 per capita sem criança nenhuma, não receberia, a não ser que ganhe abaixo de R$ 300 , aí ele receberá R$ 300. Fizemos uma construção que é muito mais adequada, apesar de ser mais difícil de entender. O auxílio emergencial é um seguro, não é uma política continuada. E é assim que seria importante atuar no meio de uma pandemia gigantesca. A forma fácil é passar um valor fixo por família, uma política continuada tem que considerar quantas pessoas tem na família.
Estamos propondo uma política que é muito mais adequada, e, em média as famílias irão receber R$ 600, proporcional ao número de pessoas que a família tem. Esse é o Mais Bolsa Família, propostas emergenciais feitas pelo Napp Desenvolvimento Social, em parceria com o NAPP de Economia: a manutenção do auxílio emergencial, que virou projeto de lei, e o Mais Bolsa Família, que também virou projeto de lei da bancada do PT no Senado e na Câmara dos Deputados, que se chama Mais Bolsa Família.
ObservaBR: O Plano não é eleitoral, é para agora?
TC: O Plano não é um programa de governo, são propostas que podem ser colocadas imediatamente em prática. É um plano para o Brasil enfrentar a situação atual gravíssima. Ele tem medidas emergenciais para o auge da crise e medidas de reconstrução, portanto apontam para a necessidade de recuperar empregos já e no processo de transição da saída da crise e medidas de transformação. Por que? Porque a crise também abre uma janela de oportunidade.
Então essas são duas medidas, ao mesmo tempo emergenciais, constituem uma política pública. O que está acontecendo agora, tanto no governo Bolsonaro como em setores conservadores, é que resolveram fazer de conta que o Brasil não tem o maior, melhor, o mais eficiente e o mais reconhecido programa do mundo, então jogam na lata do lixo dezessete anos de experiência bem sucedida.
ObservaBR: Você avalia que isso é feito deliberadamente no sentido só de destruir ou pretende lucrar com algo?
TC: Tem duas grandes questões por trás. Uma seria a resposta mais simples, que é tirar o nome do Bolsa Família. Mas não acho que seja uma resposta simples. O Bolsa Família não é só um programa de transferência de renda. Por trás dele tem todo o Sistema Único da Assistência Social, o acompanhamento das crianças pela área da educação, acompanhamento pela área de saúde. Há uma rede montada Pela qual essa população vulnerável passa a ter acesso ao Estado brasileiro. Fazer uma outra coisa que seja somente um programa de transferência de renda, acabar com o Bolsa Família, significa acabar com este programa multidimensional, que, na verdade, é uma porta de entrada para o Estado brasileiro. Não é só o nome que está em jogo, na verdade é toda essa estrutura de políticas públicas que o Bolsa Família ativou para que a população de baixa renda tivesse prioridade.
Tem gente que acha que a mãe é obrigada a levar criança à escola. Não é esse o sentido do Bolsa Família, é mostrar que não tem escola perto, saúde perto. Ele coloca um farol em cima daquele município, daquele território, saber quantas famílias do Bolsa Família não têm escola perto, e obriga o Estado a ofertar. Esse é o principal elemento que o Mais Bolsa Família resgata. Ele mantém o conjunto das políticas públicas interligado ao Bolsa Família. Se fosse aprovado, pelo menos trinta milhões de famílias receberiam R$600.
ObservaBR: Qual outro tema importante?
TC: Outra proposta dentro do Napp de Desenvolvimento Social é o fortalecimento do Sistema Único da Assistência Social. Essa é uma questão muito relevante porque temos falado muito da Emenda Constitucional 95 e do desmonte das políticas sociais na educação, de saúde, mas tem uma área que está sendo esquecida que é a Assistência Social. Uma área nova, sem salvaguardas, como a saúde e educação, que têm mínimos constitucionais exigidos, mas a assistência não tem. Quando se estabelece um teto e se pressionam as políticas sociais começa um processo de canibalização entre as próprias políticas sociais, se divide o dinheiro.
É a política que menos proteção tem. Quem conhece a rede ação social do Centro de Referência da Assistência Social (Cras)? Quem procura o apoio e acompanhamento da população de baixa renda encontra no CRAS: a mulher vítima de violência, uma criança em situação de trabalho infantil, ou uma criança ou idoso em situação de abandono, esses pobres vão procurar um Cras. Estamos falando de milhões de pobres. O governo federal cortou, vai fechar metade dos centros. Esse corte, essa reinvenção das transferências de renda no Brasil é que está fazendo acabar com o Bolsa Família. Também é um debate que vai chegar ao Congresso, porque vai ser lá também que teremos de fazer mobilização dos parlamentares para tentar reverter a situação.
ObservaBR: A luta em defesa do CRAS é ordem do dia então?
TC: Estamos fazendo, tentando mobilizar, e por isso é necessária uma frente de apoio ao Sistema Único da Assistência Social, que é um serviço múlti. Retiraram parte da área e estamos atuando muito fortemente – muitos membros do Napp fazem parte – e então tem essa vertente de fortalecer as políticas de assistência social inclusive como porta para as outras.
Quando a pessoa diz que quer o Bolsa Família e, ao ter acesso, aquela família descobre que na verdade tem um idoso que podia ter acesso ao benefício e não tá recebendo, você descobre que tem uma pessoa com doença de chagas na família e que não tá fazendo tratamento, ou você descobre que tem um problema grave de violência ali ou então você referencia aquela família no SUS, por exemplo. Vocês podem ir ao SUS, tem um posto dos saúde em tal lugar e é o mais perto da tua casa, vamos fazer a carteirinha lá. Então o processo leva a família para dentro do Estado, para outras políticas. Precisa ser conhecido e fortalecido. Ao desmontar estão jogando dinheiro fora, pois levou tanto tempo para treinar milhares e milhares de servidores públicos e eles vão não só perder o emprego mas deixar de cumprir uma função social estratégica.
O Plano
O Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil (clique para acessar) consiste em um documento em constante construção, publicado em sua primeira versão em setembro de 2020 pela Fundação Perseu Abramo e pelo Partido dos Trabalhadores, que reúne um conjunto de ideias e visa fortalecer a democracia e o Estado a serviço do país e do povo, para a adoção de medidas econômicas de emergência e de longo prazo, a recuperação de direitos dos trabalhadores e a retomada da soberania nacional.
Fruto dos debates e reflexões de centenas de companheiros e companheiras não apenas do PT – por meio, em especial, dos integrantes de seus Núcleos de Acompanhamento de Políticas Públicas, os Napps –, mas de amplos setores democráticos da sociedade, movimentos sociais, centrais sindicais, dirigentes e militantes de diversos partidos que fazem oposição ao governo Bolsonaro e têm como referência as aspirações populares por justiça social, o Plano aponta os primeiros passos de um novo caminho para reconstruir e transformar o Brasil