Por Henry Campos e Nahuan Gonçalves.
A pandemia da COVID-19 apresenta o efeito mais devastador dentre as catástrofes que já atingiram a humanidade. Apenas a Antártida e um pequeno grupo de países, quase todos insulares, estão, até o momento, livres do novo coronavírus – Turcomenistão, Kiribati, Ilhas Marshall, Palau, Ilhas Salomão, Samoa, Tonga, Tuvalu e Vanuatu.
Até por sua complexidade, o mundo contemporâneo encontra-se sob uma multifacetada ameaça – ameaça à integridade pessoal e às relações humanas, às economias, ao desenvolvimento, enveredando também pela política e as relações de poder. Tem sido notória e determinante a influência exercida pela postura de governantes diante da crise sanitária, o que é bem representado pelo que se registra nos Estados Unidos, Brasil, Índia, e Rússia, que detêm os maiores números de casos e de mortes ocorridas na pandemia, países onde a severidade da COVID-19 foi negada, as orientações da Organização Mundial da Saúde e da ciência foram desrespeitadas, onde não foram adotadas medidas de coordenação nacional de ações de enfrentamento da crise sanitária e de proteção efetiva das populações vulneráveis, notadamente as minorias éticas e raciais.
O anúncio da contaminação do Presidente Donald Trump, nesta sexta-feira, reacendeu as luzes sobre como pode ser catastrófica essa atitude de negação e de desprezo pelas normas sanitárias. Tendo como pano de fundo uma nebulosa linha do tempo, sem informação prestada sobre a data de real início dos sintomas de Trump, a partir do que poder-se-ia definir o início do contágio e monitorar efetivamente as pessoas de risco, assiste-se a uma desordenada revelação de um número crescente de infectados entre os assessores mais próximos do presidente, de senadores e outros políticos, enquanto se vincula esse elitizado surto a realizações de rallies políticos, encontros com doadores, recepções – com números elevados de pessoas, sem distanciamento social e sem o uso de máscaras, como costuma também acontecer nos comícios do candidato à reeleição. Os ingredientes perfeitos para uma eclosão ainda não dimensionada.
O anúncio do tratamento inicial de Donald Trump deu especial relevo ao emprego de dois anticorpos monoclonais (mAbs), compostos imunobiológicos a que já nos havíamos referido neste espaço, mencionando-os como drogas promissoras no futuro, no tratamento da COVID-19. Os mAbs constituem hoje o maior grupo das chamadas proteínas recombinantes e têm aplicações em várias patologias, como câncer, doenças autoimunes (artrite reumatoide, p.ex.), sendo por isso o produto dominante no mercado biofarmacêutico, com cerca de 70 produtos aprovados pela Food and Drugs Administration – FDA (2018). No caso dos mAbs contra o SARS-CoV-2 eles são produzidos a partir de linfócitos B - células produtoras de anticorpos, provenientes de pacientes que foram infectados pelo coronavírus. Frações de anticorpos dirigidos contra proteínas do vírus são identificadas, isoladas e transfectadas em células de mamíferos, no caso, células de ovário de hamster chinês. Essas células transfectadas são cultivadas, multiplicando-se de forma idêntica (clones) e produzem grandes quantidades de um anticorpo idêntico, que passa depois por processos de purificação e de verificação do seu papel neutralizador do antígeno para cuja inibição foi selecionado.
O tratamento administrado a Trump, tratado pela grande mídia com desconfiança e nebulosidade, é uma combinação de dois anticorpos dirigidos contra uma proteína chave do SARS-CoV-2, uma proteína espiculada da superfície do vírus, que media a infectividade que ocorre quando essa proteína adere às células e nelas penetra, ao se ligar ao receptor de superfície ACE2 – um receptor da enzima conversora da angiotensina 2. O primeiro anticorpo, como exposto acima, é produzido a partir dos linfócitos B de um paciente. O segundo é direcionado contra a mesma estrutura espiculada do vírus, e produzido em camundongos que tiveram o seu sistema imune tornado semelhante ao de humanos através da engenharia genética, nos quais foi injetada a proteína espiculada, contra a qual eles passam a produzir anticorpos. Os anticorpos, produzidos pelas empresas Regeneron e Roche, foram objeto de um ensaio clínico com 275 pacientes, cujos resultados preliminares foram apresentados esta semana. Os pacientes avaliados no estudo tinham apresentado teste positivo para SARS-CoV2 e eram assintomáticos, ou, no máximo, tinham sintomas moderados. Foi observado que, em pacientes que não tinham anticorpos contra o SARS-CoV-2 no início do tratamento, houve redução da carga viral e do período sintomático da doença. A dose máxima de uma infusão de 8 g, utilizada no presidente americano, não encontra respaldo nos dados do estudo, que indicam claramente que a dose de 2,4 g por infusão proporciona a redução esperada da carga viral de SARS-CoV-2 nos pacientes.
A falta de dados sobre a real situação do presidente Trump dificulta que se faça uma estimativa de sua resposta a essa nova estratégia de tratamento, que se mostra promissora. Para isso seria importante saber se ele, ao iniciar o tratamento, já apresentava ou não anticorpos contra o SARS-CoV-2, já que a ausência dos mesmos parece ser um indicador favorável à boa resposta. A falta de outros elementos, como a presença ou não de lesão pulmonar, a curva térmica, a curva de saturação de oxigênio e de sinais vitais, torna difícil estimar a possibilidade de resposta de Trump a um tratamento que se mostra promissor. Tanto é que a estimativa de negócios da associação Regeneron-ROCHE para o próximo ano é de 6 bilhões de dólares. E que grandes companhias, como a Eli Lilly, começam em breve os seus ensaios clínicos. Em abril, as companhias Vir e GlaxoSmithKline iniciaram uma colaboração para acelerar o desenvolvimento de dois Mabs neutralizadores e, no mundo acadêmico, há uma expressiva mobilização para o desenvolvimento desses imunobiológicos, que poderão ser utilizados em estratégias de prevenção, gerando expectativas também de que no futuro esse tratamento possa ser oferecido com menor custo.
As lideranças mundiais precisam agir de forma mais responsável e mais impessoal na tomada de decisões em relação à COVID-19, para que tragam benefício e assegurem proteção às suas populações. Não parece defensável a recente suspensão completa do lockdown na Rússia, onde estão presentes os elementos favoráveis ao surgimento de uma segunda onda. Isso se torna ainda mais controverso quando o presidente russo se mantém, desde a primavera, protegido por uma verdadeira bolha e em rigoroso isolamento. Essa contraposição à postura de Trump e de Jair Bolsonaro, do presidente Vladimir Putin, de restringir os seus deslocamentos, seria louvável se fosse acompanhada de medidas de reforço à proteção do povo russo. Em março Vladimir Putin encomendou à companhia russa Mizzoty, produtora de desinfetantes químicos, dois túneis plásticos desinfetantes que foram colocados na residência oficial e no Kremlin, no trajeto percorrido por ele nesses locais, por onde caminha envolto em uma nuvem de produtos químicos, de odor semelhante à água clorada de piscinas, de eficácia não comprovada. Desde março as pessoas que têm encontros com Putin são submetidas a duas semanas de quarentena e as reuniões de gabinete são realizadas por vídeo conferência. Em sua aparição pública, em junho, na Praça Vermelha, para uma parada militar comemorativa da vitória sobre os nazistas, os veteranos de guerra que estariam menos distantes de Putin, tiveram que permanecer duas semanas em quarentena numa unidade militar a 80 quilômetros de Moscou. O presidente russo desde janeiro não se ausenta do país e diz que só fará viagens a outros países quando for vacinado contra a COVID-19. No entanto, a despeito de uma espalhafatosa propaganda da vacina Sputnik, segundo seu porta-voz, Dmitry Peskov, ele ainda não está pronto para receber a vacina, pois “quando se trata do chefe de estado, medidas especiais de precaução devem ser tomadas”.
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