Por Henry Campos e Nahuan Gonçalves

A cada dia torna-se mais evidente o fosso entre o pensamento mágico que a esmagadora maioria das pessoas desenvolveu sobre as vacinas contra o SARS-CoV-2 e a realidade com que poderemos ser a elas apresentados. Um primeiro choque de realidade é o que foi estabelecido como padrão-ouro de resposta na estratégia de desenvolvimento (benchmark) empregada pelas três companhias que lideram a corrida das vacinas contra o novo coronavírus – Moderna, Pfizer e AstraZeneca. De acordo com os protocolos de seus estudos, divulgados na semana passada, uma vacina pode atingir os objetivos estabelecidos se ela diminuir a ocorrência de casos leves de COVID-19, não sendo necessário que seja demonstrada uma redução nas formas moderadas ou graves da doença, ou no risco de hospitalização, de necessidade de internação em UTI ou de morte.

Definir uma vacina como eficaz deveria significar que as pessoas não mais correm o risco de adoecimento grave. No entanto, não é isso que as vacinas atualmente testadas propõem-se, até o momento, a mostrar. As vacinas da Moderna e da AstraZeneca vão envolver 30.000 voluntários, e a da Pfizer, cerca de 44.000, sendo que em cada estudo metade das pessoas receberão a vacina e a outra metade, um placebo. A determinação final de eficácia ocorrerá depois que 150-160 participantes desenvolverem a COVID-19. Os critérios para determinar a ocorrência da doença não são uniformes, mas como as formas leves são mais comuns do que a forma moderada, a maioria dos dados de eficácia devem corresponder a pacientes com formas leves, não permitindo, essa definição de eficácia, que se garanta que a vacinação resultará na redução de formas moderadas ou graves da COVID-19. Uma das razões é que a vacina pode não funcionar do mesmo modo nas populações vulneráveis e submetidas a outros riscos.

As farmacêuticas Moderna e Pfizer admitem que as suas vacinas parecem induzir efeitos colaterais semelhantes aos de uma forma leve da COVID-19. Na fase inicial do estudo da Pfizer mais da metade dos vacinados apresentou dor de cabeça, dores musculares e calafrios. Assim, se for confirmado que as vacinas não previnem mais do que formas leves da doença, podem terminar causando mais desconforto do que oferecendo proteção. Embora a interrupção de um estudo clínico envolvendo 30.000 ou 40.000 voluntários quando surgirem 150 ou pouco mais casos da doença possa ser estatisticamente aceito, administrar uma vacina a milhões de pessoas saudáveis com base em dados tão limitados pode ser uma atitude arriscada. Outros aspectos ainda devem ser considerados, como a provável baixa representatividade das minorias entre os voluntários recrutados para os estudos atuais.

Os argumentos até aqui expostos não invalidam a hipótese que as vacinas possam reduzir o risco de complicações graves, da COVID-19. Mas, até que os estudos possam durar o tempo necessário para avaliar essa questão, nós não teremos essa resposta.

Os estudos precisam ter como objetivo definir se as vacinas protegem contra formas moderadas e severas da COVID-19 e precisam ser inteiramente completados. Não é muito tarde para que as companhias farmacêuticas, a agência reguladora Food and Drug Administration - FDA, a Organização Mundial da Saúde - OMS e outros atores envolvidos nos protocolos promovam as modificações que se fizerem necessárias.
Esses estudos são os ensaios clínicos mais importantes da história e afetam todo o planeta. Como veremos ao longo desta resenha, há muitos outros pontos obscuros, sendo imperativo imprimir ao processo toda a transparência possível e empregar os melhores recursos científicos disponíveis para atender ao que constitui, nos tempos modernos, o maior anseio da humanidade.

Enquanto o mundo aguarda com expectativa a liberação para acesso da população às vacinas contra a COVID-19 cresce a preocupação de que o desfecho do processo seja seguido pela confiança, aceitação e adesão maciça da população à imunização, como é de ser esperado e imprescindível, no que pode ser a mais importante arma para vencer a pandemia.

A suspensão por seis dias, no Reino Unido, dos testes clínicos com a vacina produzida pela farmacêutica AstraZeneca e a Universidade de Oxford, fez surgirem questionamentos quanto à transparência desses ensaios clínicos em pacientes, deixando mais evidente a necessidade de informações mais completas sobre essa fase que precede a comercialização. No caso dessa vacina, embora o estudo tenha sido retomado no Reino Unido, Brasil e África do Sul, a FDA ainda não deu permissão para a retomada do protocolo nos Estados Unidos. Esse fato adiciona um ponto nebuloso à questão, ainda mais que os promotores do estudo não liberaram, até o momento, maiores explicações sobre a interrupção dos testes e muito menos justificaram por que foram retomados.

Cientistas têm criticado a não liberação, nesse estudo, de informação em tempo adequado, pois foi verificado que tratava-se, na verdade, de uma segunda interrupção, já que, em julho, informação dirigida a participantes do estudo, relatava que o mesmo havia sido suspenso, quando um dos pacientes foi descrito como tendo apresentado sintomas de mielite transversa, processo inflamatório que acomete a medula espinhal, que, segundo a imprensa, também teria sido a causa da ultima interrupção do estudo. Com relação a essa ocorrência de julho, o laboratório AstraZeneca informou que a pessoa foi mais tarde diagnosticada com esclerose múltipla e que essa condição não estava relacionada à vacina. A companhia não informou se as duas intercorrências foram registradas em voluntários que receberam a vacina ou o placebo.

Segundo a epidemiologista Rayna MacIntyre, da University of South Wales, Austrália, o fato de duas pessoas, em um universo relativamente pequeno de pacientes, terem desenvolvido mielite transversa, é notável. “Se um outro caso for registrado, vai ser muito difícil que esse estudo se recupere depois dessa ocorrência”, diz a epidemiologista. Destacando que esclerose múltipla e mielite transversa têm sido relacionadas a infecções virais e que esta última também ocorre em pessoas com COVID-19, a epidemiologista australiana acredita que é na análise desses fatos que se detém a FDA antes de autorizar a retomada dos testes nos Estados Unidos. Outra pesquisadora australiana, especialista em medicina baseada em evidência, Hilda Bastian, da Bond University, reitera a importância de que sejam explicadas as razões para a interrupção e retomada dos testes, pois a falta de transparência pode fazer voluntários abandonarem o estudo ou levar as pessoas a não tomar a vacina, uma vez aprovada.

A confiança do público já sofre oscilações, em especial nos Estados Unidos, onde o presidente Trump trabalha com uma força tarefa especial para acelerar o desenvolvimento de vacinas contra a COVID-19 e divulga isso de forma reiterada e veemente, com objetivos eleitorais explícitos. Segundo pesquisa realizada pelo Pew Research Center, Washington, DC, a proporção de adultos que afirmam que aceitariam receber uma vacina se ela estivesse disponível, caiu de 72%, em maio, para
51%, em setembro. Esse ceticismo tem se manifestado até entre pesquisadores envolvidos no desenho e teste de vacinas, que manifestam suas reservas quanto à potencial influência de fatores políticos no processo de aprovação, em detrimento dos aspectos científicos. “Vou verificar os dados de segurança antes de aplicar uma injeção no braço dos meus filhos”, diz Kurt Viele, diretor de modelagem e simulação da empresa Bery Consultants, que orienta o desenho de estudos clínicos, em Lexington, Kentucky. A desconfiança não se limita aos Estados Unidos e estende-se também à Europa. Yannis Natsis, que integra, em Bruxelas, a European Public Alliances, grupo que advoga em favor de políticas públicas, critica as negociações, a portas fechadas, das companhias farmacêuticas sobre as vacinas e a “incrível falta de transparência”.

Nos Estados Unidos parte das preocupações devem-se a um caminho rápido para tratamentos necessitados com urgência – o aval da FDA para Autorização de Uso Emergencial (Emergency Use Authorization – EUA), que salta etapas do processo habitual de aprovação de drogas e autoriza tratamentos a serem usados se eles “puderem ser efetivos”. Sobre esse procedimento, diz Herschel Nachlis, que estuda políticas de saúde no Darthmouth College, Hanover, New Hampshire: “Por ser vago e não transparente, é potencialmente suscetível ao surgimento de influência política”.

Duas autorizações para uso emergencial de tratamentos para a COVID-19 já concedidas nos Estados Unidos não confirmaram os seus alardeados efeitos benéficos. O uso do plasma convalescente, anunciado às vésperas de uma convenção nacional do partido do presidente Trump, ainda hoje carece de estudos controlados que comprovem o seu benefício, e a hidroxicloroquina teve sua autorização revogada depois que estudos mostraram a sua ineficácia em pacientes hospitalizados.

Entre os protocolos de estudo das três principais vacinas, chama atenção um ponto que difere a vacina da farmacêutica Pfizer das duas outras: é a possibilidade de colher dados em períodos intermediários da fase de ensaio clínico. Isso significa que, tendo alcançado um universo de 32 voluntários injetados com a vacina ou placebo, o que pode ocorrer em cerca de três meses, e, se essa análise mostrar que a vacina reduziu de modo efetivo a infecção naquele pequeno grupo de pessoas testadas, o fabricante pode solicitar uma autorização para uso emergencial. Como assinala David Benkeser, bioestatístico na Emory University, Atlanta, Georgia, com esse pequeno período de seguimento, seria impossível o acompanhamento a longo prazo para avaliar a segurança, como também esse tempo de observação é insuficiente para avaliar se a imunidade proporcionada pela vacina é duradoura.

Correm rumores de que a FDA estaria revendo o seu processo de autorização para uso emergencial no caso das vacinas contra a COVID, tornando-o mais rigoroso do que aquele anteriormente utilizado para liberação emergencial do uso da hidroxicloroquina e do plasma convalescente, segundo informação veiculada na edição de 22 de setembro do Washington Post. No entanto, Donald Trump tem repetido que pode bloquear tal medida. Fala-se também em realização de uma audiência pública para discutir essa questão da vacina e tornar mais transparente do que as anteriores a autorização para uso emergencial. Em relação à possível mudança nas regras de autorização para uso emergencial, o estudioso de políticas públicas, Herschel Nachlis, registra “a necessidade de fortalecer o rigor e a transparência” e diz que “tem havido um movimento substancial nessa direção”.

Para ler mais:
www.nature.com
www.washingtonpost.com
www.nytimes.com