Tradução de Henry Campos para artigo de Kate Baggaley publicado em Popular Science (www.popsci.com), quarta-feira, 23 de setembro de 2020
Embora o estudo não tenha sido submetido a um comitê de revisão científica por pares, está amplamente alinhado com o que os epidemiologistas haviam previsto anteriormente.
Um surto explosivo de Covid-19 em uma cidade brasileira pode ter infectado um número suficiente de pessoas para desencadear a imunidade de rebanho, é o que sugere o resultado preliminar de uma pesquisa. Testes de anticorpos indicam que até dois terços da população de Manaus pode ter adquirido o vírus, é o que relatou um grupo de pesquisadores do Brasil, Reino Unido e Estados Unidos, no dia 21 de setembro, no repositório de pré-publicações medRxiv. Os cientistas argumentam que isso poderia explicar o declínio sustentado de novos casos na cidade.
“É muito difícil optar se isso é pura imunidade de rebanho ou uma combinação de coisas”, diz Martin Russo, chefe da divisão de doenças infecciosas da Jacobs Schoolof Medicine and Biomedical Sciences, na University at Buffalo, que não estava envolvida na pesquisa. “Mas, é certamente intrigante”.
A imunidade de rebanho se desenvolve quando um número suficiente de pessoas está protegido de uma doença infecciosa – por meio de infecção ou vacinação – de forma que ela não pode espalhar-se facilmente para o restante da população. Nesse ponto, cada pessoa que adquire a doença vai transmiti-la a menos de uma pessoa, em média, o que significa que, com o passar do tempo, o número de casos vai diminuir. Os pesquisadores não têm certeza sobre qual é o limite suficiente para chegar a essa condição, mas Russo diz que as estimativas estão na faixa de 60% a 80%.
A nova pesquisa não pode apontar exatamente quando a imunidade de rebanho tem início. É plausível que, em alguns dos focos mais duramente atingidos pela Covid-19, a redução de novos casos possa refletir tanto a enorme fração da população que desenvolveu imunidade bem como os impactos de práticas como o porte de máscaras e o distanciamento social. Os achados ainda precisam ser analisados por um comitê de revisão formado por outros cientistas. Ainda assim, Russo destaca que os resultados não são surpreendentes e que estão de acordo com o que epidemiologistas haviam previsto.
Para esse novo estudo, os pesquisadores determinaram os níveis de anticorpos em amostras de sangue doado, em duas cidades, entre fevereiro e agosto. Manaus, localizada na floresta amazônica, enfrentou um surto feroz da Covid-19 na primavera, depois do primeiro caso ter sido diagnosticado no dia 13 de março. O número de novos casos aumentou rapidamente em março e abril, antes de atingir o pico no início de maio, passando a diminuir de maio a setembro, mesmo depois do relaxamento das medidas de controle.
Tomando por base a proporção de amostras de sangue com teste positivo para anticorpos, os pesquisadores calcularam que cerca de 44% da população da cidade tinha anticorpos detectáveis em junho. Como leva um tempo para que os anticorpos se desenvolvam depois de uma pessoa ter sido infectada, os pesquisadores estimam que 52% da população pode ter sido infectada naquele período. Houve menor número de testes positivos para anticorpos à medida que o verão avançou, provavelmente porque o nível de anticorpos detectável no sangue das pessoas diminuiu. A equipe, diante dos dados, concluiu que até 66,1% da população de Manaus tornou-se infectada.
“Embora intervenções não farmacológicas, somadas a uma mudança no comportamento da população, possam ter ajudado a limitar a transmissão do Sars-CoV-2 em Manaus, a taxa de infecção, incomumente elevada, sugere que a imunidade de rebanho desempenhou um papel importante na determinação da extensão da epidemia”, os pesquisadores registraram.
Em contraste, São Paulo – onde o primeiro caso de Covid-19 no Brasil foi confirmado, em 25 de fevereiro – experimentou um surto menos intenso na primavera. Em junho, a prevalência de anticorpos em doadores de sangue atingiu apenas 13,6%.
Não está inteiramente esclarecido por que a Covid-19 surgiu em Manaus, que implantou medidas semelhantes às de São Paulo e de outras cidades brasileiras, no final de março. Os pesquisadores acreditam que a epidemia de Manaus possa ter sido turbinada pelas aglomerações, acesso limitado a água de qualidade e confiabilidade no transporte em barcos superlotados. A cidade também tem uma população com idade média inferior àquela de São Paulo. Isso significa que as pessoas podem ter saído e circulado mais, espalhando o vírus. Essa menor idade média da população também pode explicar por que Manaus, a despeito de sua epidemia desenfreada, pareça ter tido uma taxa de letalidade inferior à de São Paulo.
Os pesquisadores recomendam cautela, pois os seus achados não podem ser aplicados diretamente a outras localidades, uma vez que a difusão da Covid-19 depende, igualmente, do número de pessoas que adquiriram imunidade e de outras variáveis, como o rigor com que foram seguidas as regras de distanciamento social. Doadores de sangue , também, são, geralmente, adultos saudáveis e não necessariamente representativos de toda a população. Mesmo assim, a equipe argumenta que “Manaus pode atuar como sentinela para determinar a longevidade da imunidade da população e a frequência das reinfecções”.
A imunidade de rebanho pode, portanto, ter reduzido a transmissão da Covid-19 em Manaus, assinala Russo, mas essa não é uma estratégia que nós possamos estar lutando para que ocorra em outros locais. Grosseiramente, 3 milhões de pessoas morreriam, apenas nos Estados Unidos, se esse caminho fosse seguido, e os pesquisadores também mostram inquietação quanto ao fato da Covid-19 levar a problemas de saúde a longo prazo, mesmo em pessoas que apresentaram formas brandas ou assintomáticas da doença.
“Haverá, definitivamente, um excesso de mortes e, quase certamente, um excesso de prejuízos a médio e curto prazo”, afirma Russo. Pode haver conexões ao fato de estar infectado que não são inicialmente consideradas no plano da saúde, mas que podem mostrar a sua face assustadora, a meses, anos ou décadas de agora”.
Adicionalmente, a maioria dos lugares – mesmo aqueles com surtos severos de Covid-19 – não está nem próxima de alcançar a imunidade de rebanho; apenas 27% dos nova-iorquinos testados, em um estudo recente, apresentaram testes positivos para anticorpos. Russo declara que apoiar-se em medidas de saúde pública, como o uso de máscaras, a lavagem frequente das mãos e o distanciamento social, pode nos proporcionar um benefício semelhante ao da imunidade de rebanho.
“Eu gostaria mais de ter zero por cento de pessoas infectadas e 80% a 90% de pessoas usando máscaras. Esse barco deixou a baía, infelizmente”, diz ele. “Mas, certamente, é chave, até que cheguemos à vacina, minimizar o número de pessoas infectadas e adotar as medidas de saúde pública como um imperativo para a proteção”.
Nota: Uma versão prévia deste artigo utilizou incorretamente o nome da University at Buffalo, como University of Buffalo.