Resenha de Henry Campos e Nahuan Gonçalves
O fim do verão no hemisfério Norte e do inverno no hemisfério Sul é marcado por 30.059.896 casos confirmados e 944.358 mortes pela Covid-19 (dados de 17/09), a doença que sacudiu, em poucos meses, a vida de todos os habitantes do planeta. Em apenas nove meses produziu-se um choque social, cultural e econômico inimaginável, fruto das medidas tomadas para conter a circulação do vírus, que se incorporaram ao linguajar de toda a humanidade – confinamento, porte de máscaras, distanciamento físico, testagem, monitoramento de casos, quarentena. Tendo o sucesso dessas medidas se revelado limitado, vive-se agora a expectativa de um risco elevado de uma segunda onda de infecções, que já começa a configurar-se em alguns países.
“Isso vai se tornar mais duro. Em outubro, em novembro, vamos ver uma mortalidade mais elevada”, declarou na segunda-feira, 14 de setembro, Hans Kluge, diretor do braço europeu da Organização Mundial da Saúde (OMS), continente onde foram registrados 51 mil novos casos de Covid-19 na sexta-feira, 11 de setembro. “Constata-se que o aumento de novos casos não pode ser atribuído apenas ao número de novos testes: existe um verdadeiro aumento da transmissão em muitos países europeus”, assinala Andréa Amon, diretora do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC). À frente desse rebote epidêmico figuram países do oeste da Europa, como a Espanha (9.700 novos casos diários, em média, na semana passada), seguida de perto pela França (média diária de 8.300 novos casos), ou a Hungria e República Tcheca, que apresentam expressivo aumento recente no número de testes positivos.
A situação dos países europeus é contrastante, sendo “difícil compará-los entre si, segundo a sua política de saúde”, registra Dominique Costagliola, diretora do Institut Pierre-Louis d’Épidemiologie et de Santé Publique, frente à diversidade da densidade populacional, medidas flutuantes de testagem e outros fatores. A Áustria anunciou no domingo, 10 de setembro, que a segunda onda havia chegado e instituiu regras sanitárias mais rígidas. Outros países da Europa Central, como a Croácia, experimentam uma alta importante da mortalidade e, na fronteira oriental do continente, Israel vive uma verdadeira segunda onda, com mais de 4 mil novos casos por dia, em um país de 8,5 milhões de habitantes, o que deu lugar a um confinamento nacional previsto para durar até 9 de outubro.
Em outras regiões do mundo a tônica é igualmente o contraste. Nos Estados Unidos, que mantêm um platô com 35 mil novos casos por dia, o número total de casos já atinge a cifra de 6.874.596 pacientes e 202.213 mortes (dados de 17/09) e no Brasil, proporcionalmente o país mais enlutado, com 135 mil mortes até o momento, a situação continua preocupante, embora se registre uma atenuação das taxas de contágio. Enquanto a China mostra a pandemia sob controle, é alarmante a progressão da doença em países como a Índia, a África do Sul e a Indonésia.
A despeito das lições aprendidas, dos avanços no tratamento, o contexto é de muita incerteza nas próximas semanas. A interrupção programada da circulação do vírus, que estima-se ser alcançada quando anticorpos são detectados em pelo menos 50% da população, parece inaceitável, na inexistência de uma vacina, pelos riscos inerentes, e difícil de ser posta em prática, como discorreremos mais à frente nesta resenha. A OMS espera “encerrar essa pandemia em menos de dois anos”, mas esse horizonte, como veremos adiante, é muito nebuloso. “A vacina não estará disponível de imediato, e há muitas incertezas quanto à sua eficácia”, diz Sylvie Briand, diretora do Departamento de Preparação Mundial para os Riscos Infecciosos, da OMS, acrescentando “ser necessário que as pessoas estejam prontas para usar uma máscara e respeitar os gestos de barreira ainda durante muito tempo”.
O entendimento do que é a chamada imunidade de rebanho é chave para a compreensão do controle epidêmico. Essa condição é alcançada quando apenas uma proporção da população está imune a um agente infeccioso por haver superado uma infecção ou por meio de uma vacinação, possibilitando que a transmissão seja interrompida em grandes centros. Uma questão chave na pandemia atual pela Covid-19 é como e quando a imunidade rebanho pode ser adquirida e a que custo.
Levando em consideração estimativas e modelagens feitas nos diferentes cenários da Covid-19, há pouca evidência de que a transmissão do SARS-CoV-2 possa ser interrompida naturalmente antes que 50% da população se tornem imune. Outra questão é o que seria necessário para alcançar esse nível, já que, levando-se em conta os conhecimentos atuais, não sabemos qual a duração da imunidade adquirida contra o novo coronavírus, em especial para aqueles que experimentaram formas brandas da doença e que, em tese, precisariam de reinfecções para chegar a esse ponto, o que tem sido demonstrado ocorrer até agora em poucas situações bem documentadas.
Nas epidemias de gripe, a imunidade de rebanho é geralmente atingida após duas ou três ondas de surtos, geralmente interrompidos pela sazonalidade, por raras intervenções, pela imunidade cruzada a vírus previamente identificados e pela imunização. Na Covid-19, que tem uma letalidade estimada de 0,3%-1,5%, o custo de atingir a imunidade de rebanho por infecções naturais seria muito alto, especialmente na ausência de progressos significativos no tratamento da infecção e sem a máxima proteção dos indivíduos com risco de infecções severas. Uma previsão otimista de se atingir o limite de 50% da imunidade de rebanho para países como a França e os Estados Unidos, se traduziriam em 100.000-450.000 mortes e 500.000-2.100.000 mortes, respectivamente, pois a letalidade pode atingir 3,3% nas pessoas acima de 60 anos e naquelas com comorbidades.
Embora as vacinas representem o conceito mais seguro para atingir a imunidade de rebanho, temos diante de nós o desafio do tempo para que estejam disponíveis e possam ser administradas à população, visando primeiro a atender grupos de maior exposição e levando em conta que deverão ser menos eficazes em pessoas mais idosas. Na situação atual, apenas intervenções não farmacológicas, como o distanciamento social, o isolamento de pacientes, o porte de máscaras e medidas de higienização têm se mostrado efetivas no controle da circulação do vírus e devem ser estritamente reforçadas. Potenciais drogas antivirais, que podem reduzir a carga viral e assim reduzir a transmissão, ou tratamentos que possam prevenir complicações e morte, podem tornar-se fatores significativos no controle da epidemia nos próximos meses. Isso até que as vacinas estejam disponíveis e contribuam para alcançar a imunidade de rebanho do modo mais seguro possível.
A pandemia não mostra a mesma face em todos os lugares. Em países como a China, Nova Zelândia, Ruanda e Senegal o número de casos mostra-se baixo, após lockdowns de duração e modalidades diferentes. Uma característica comum os assemelha: a liberação de isolamentos é feita mantendo um estado de alerta para a possibilidade de erupção de novos casos em determinados agrupamentos. Em países como os Estados Unidos e o Brasil, o número de casos continua em ascensão, tendo os lockdowns ocorrido rapidamente, em poucas áreas, sem nunca terem sido praticados nacionalmente. Essa característica tem sido uma preocupação para os cientistas especialistas de previsão e modelagem. A África do Sul, hoje o quinto país no mundo no número total de casos de Covid-19, ultrapassou os 655 mil casos e 16 mil mortes (dados de 17/09) e pode alcançar uma dezena de milhão de infectados em novembro próximo. “Diante do que vivenciamos e, na melhor das expectativas, o nosso cenário é de extrema gravidade”, afirma Juliet Pulliam, diretora do South African Centre for Epidemiological Modelling and Analysis, na Stellenboch University.
Nas regiões onde a Covid-19 parece estar em declínio os pesquisadores consideram que a melhor estratégia é a vigilância cuidadosa por meio da testagem, isolamento de novos casos e monitoramento dos seus contatos, como acontece em Hong Kong, por exemplo. O que não se sabe ao certo é que grau de monitoramento e isolamento de contatos é necessário para prevenir efetivamente um novo surto. Uma análise feita pelo grupo britânico, the Centre for the Mathemathical Modelling of Infectious Diseases Covid-19 Working Group, na London School of Hygieneand Medicine, simulando contágios a partir de 5, 20 ou 40 novos casos, concluiu que, para ser efetivo, o monitoramento precisa incluir, em poucos dias, 80% dos contágios para conter um novo surto. Esse controle de 80% dos contágios parece quase impossível, em especial em regiões que veem surgir milhares de infecções a cada semana – ainda pior, quando se sabe que esses contatos foram subestimados. Um relatório da equipe do Massachussets Institute of Technology, em Cambridge, sobre a análise de dados de 84 países, sugeriu que o número global de infecções é 12 vezes maior e 50% acima do que é oficialmente relatado. “Há mais casos do que os dados indicam. Em consequência, há um risco maior de infecção do que as pessoas acreditam”, afirma John Sterman, co-autor do estudo e diretor do MIT Systems Dynamics Group. Em pesquisa publicada por três pesquisadores do MIT – Sloan School of Management, Cambridge, Massachussets, que trabalham com modelagem da evolução da Covid-19 em 86 países, é relatado igualmente que, até o presente, estatísticas oficiais subestimam o número de casos e de mortes, projetando que, por volta de março de 2021, esses países terão vivenciado quase 300 milhões de infecções e mais de 2 milhões de mortes.
Um dos fatores a ser considerado é a consolidação do frio no hemisfério Norte, no último trimestre deste ano, que preocupa pelo fato das pessoas permanecerem mais tempo em ambientes fechados, o que favorece a transmissão de doenças respiratórias e pela possibilidade de que o SARS-CoV-2 também apresente, a exemplo de outros coronavírus humanos e de vírus respiratórios sinciciais, uma oscilação sazonal que leva ao aumento de casos. “Espero uma taxa de infecção pelo SARS-CoV-2 e também uma evolução potencialmente mais grave no inverno”, declara Akiko Iwasaki, imunobiologista na Yale School of Medicine, Connecticut, New Haven, já que é sabido que o ar seco do inverno melhora a estabilidade e transmissão de vírus respiratórios, quando também ocorre inibição dos mecanismos da defesa imune pela inalação do ar frio.
Para o fim da pandemia, o vírus deve ser eliminado mundialmente, o que é quase impossível, ou as pessoas precisam construir uma resposta imune pela infecção ou vacinas. Os estudos de prevalência de anticorpos ou de outros indicadores de infecção indicam que esses números não ultrapassam 3-4%, bem distante das estimativas variáveis de que 50-80% da população precisa apresentar uma resposta imune ao vírus para que a sua transmissão seja interrompida.
O que vai ocorrer em 2021 e até 2025 depende, em grande parte, da chegada de uma ou mais vacinas e do seu efeito protetor. Os estudos de modelagem não têm ainda considerado o tempo necessário para vacinar a população indicada em cada país, menos ainda as particularidades das exigências para transporte e armazenamento, que podem variar de uma vacina a outra. Até o presente a estimativa possível foi realizada para regiões de clima temperado, como América do Norte e Europa., considerando a duração da imunidade conferida pela vacina, a importância das estações climáticas e a imunidade oferecida por outros coronavírus. Se a imunidade durar menos do que 40 semanas, assumindo que a pandemia teve início em março de 2020, devem ocorrer surtos anuais. Caso a imunidade persista cerca de 100 dias, os surtos ocorreriam a cada dois anos e, confirmada a influência da sazonalidade, com picos no inverno. Ainda nessa melhor perspectiva de duração da imunidade, se outros coronavírus proporcionam uma imunidade cruzada, poderia haver uma aparente eliminação, com ressurgimento tardio de casos.
Essa modelagem não pode ser generalizada. Se a imunidade ao SARS-CoV-2 é permanente, mesmo sem uma vacina, seria em tese possível que, após um mais intenso acometimento mundial, o vírus pudesse desaparecer em 2021, o que não ocorreria se o grau de imunidade conferido for moderado. Essa análise previsional não leva em conta o acesso a uma ou mais vacinas e uma cobertura mundial. O que parece mais realista dizer é que o mundo continuará sendo afetado de modo muito desigual pela Covid-19, por um tempo que hoje não podemos estimar.
Para ler mais: www.nature.com
www.science.com
www.thelancet.com
www.papers.ssrn.com
www.lemonde.fr