Artigo de Edoardo Campanella publicado por The Project Syndicate e traduzido por Ives Fernandes para o Observatório.
Desde a Revolução Industrial, a atividade econômica se concentrou basicamente em alguns centros urbanos em constante expansão. Mas agora que a crise do COVID-19 familiarizou a todos com os benefícios do trabalho remoto, muitos dos fatores que tradicionalmente atraíam trabalhadores e capitais para as megacidades estão em um processo de mudança.
MILÃO - O bloqueio em resposta ao COVID-19 alterou a percepção de bilhões de pessoas sobre o espaço geográfico. Durante semanas, as interações sociais e profissionais foram mediadas por tecnologias digitais que comprimiam a distância física e que confundiram as noções das fronteiras entre o mundo digital e o real. Esse evento socioeconômico sem precedentes deve proporcionar efeitos duradouros que transformarão muitos aspectos de nossas vidas e nos induzirão a repensar onde desejamos morar. A hierarquia entre centro e periferia urbana, predominante no mundo ocidental desde a primeira Revolução Industrial, pode ser alterada.
Os economistas tentam entender, há muito tempo, o que torna as cidades tão importantes.. Há mais de um século, Alfred Marshall argumentou em Principles of Economics que a proximidade e densidade proporcionada pelos centros urbanos cria uma atmosfera ideal para empresas que operam no mesmo setor. De acordo com o economista, esta concentração permite que as ideias fluam livremente de uma firma para outra, inspirando continuamente novas invenções por meio de um processo de imitação e inovação. Além disso, os fabricantes no mesmo distrito tendem a ter acesso imediato a um grande grupo de mão de obra e fornecedores apropriados para o seu processo de produção.
É evidente que, historicamente, os empreendedores não escolhem ao acaso onde se localizar. Embora se beneficiem da proximidade de seus pares, eles também desejam minimizar seus custos, localizando-se perto dos mercados onde seus principais insumos são produzidos ou seus produtos são vendidos - ou em algum ponto intermediário. Em sua análise, Marshall estava pensando em centros de manufatura da era Vitoriana, como o distrito têxtil de Lancashire, no noroeste da Inglaterra, onde as condições climáticas eram ideais para a produção de produtos de algodão. Nos Estados Unidos, os frigoríficos se aglomeravam em Chicago, porque esse era o canal pelo qual vacas e porcos eram transportados do oeste agrário para o leste urbano.
Inevitavelmente, à medida que uma cidade se desenvolve e atrai mais trabalhadores qualificados e capital, muitas outras cidades se tornam menos relevantes economicamente. É por isso que sempre houve hierarquias urbanas claramente discerníveis que, por sua vez, levam a disparidades de riqueza. Mas esse padrão não é uniforme em todas as regiões.
Em um país como a França, por exemplo, a maioria das atividades econômicas é concentrada em Paris. Já na Alemanha, um país com perfil mais federalista, tais atividades são distribuídas de maneira mais uniforme pelas regiões. Independentemente dos casos, as grandes cidades continuaram a prosperar e crescer, mesmo que a globalização e a queda nos custos de transporte levem muitas empresas a difundir sua capacidade de produção em todo o mundo. A razão para essa expansão urbana contínua é simples: empregos baseados no conhecimento, em centros tecnológicos e financeiros, dependem de interações presenciais, o que possibilita que estas cidades estejam à frente da curva. É por isso que a quantidade de patentes está positivamente correlacionadas com o tamanho da cidade.
Mas as novas tecnologias podem reduzir os incentivos da aglomeração e agrupamento, alterando assim as hierarquias urbanas. As plataformas digitais oferecem oportunidades para interações sociais e profissionais remotas. Teleconferências, ferramentas de colaboração virtual, aplicativos de namoro e muitas outras inovações têm se mostrado eficazes em colher alguns dos benefícios das interações à distância. Este potencial, latente antes da pandemia, agora está sendo posto em prática em larga escala.
Se a demanda por encontros presenciais diminuísse permanentemente, os custos de aglomeração das cidades mais populosas, poluídas e caras poderiam superar os benefícios, aumentando ainda mais a possibilidade que profissionais qualificados migrem para cidades menores, onde obteriam maior poder aquisitivo e um padrão de vida mais elevado. Afinal, muitas das oportunidades profissionais e de lazer que tornam cidades. como Paris, Nova York e Londres. tão únicas são desproporcionalmente aproveitadas por uma pequena elite com recursos para gastos discricionários em detrimento de uma grande parte da população subalterna. Deste modo, é esta elite que tem os maiores incentivos para que existam e continuem a existir cidades com grande aglomeração.
Certamente, uma mudança estrutural em que ocorra uma migração de pessoas das megacidades altamente concentradas para regiões mais longínquas não teria precedentes históricos. No passado, quando as pessoas deixavam uma cidade em declínio, elas tinham o objetivo de seguir para as capitais e grandes centros com o objetivo de aproveitar as eventuais oportunidades de emprego proporcionadas por essas regiões. Mas, agora, o movimento pode correr na direção oposta: de áreas urbanas ricas para áreas economicamente mais pobres, onde aqueles com renda disponível podem ter uma vida significativamente melhor. Isso representaria não apenas um rearranjo, mas também um achatamento das hierarquias urbanas tradicionais.
Isso não significa que o desaparecimento da cidade, ou qualquer coisa parecida, esteja no horizonte. A vida virtual nunca será um substituto perfeito para a vida real, e a maior parte do movimento não seria em direção à uma existência eremita no campo, mas sim para cidades médias.
Alguns mercados tradicionais terão limites rígidos a se adaptar a atividades remotas em virtude das características intrínsecas no processo de produção do setor. Ainda que, a partir de agora, cerca de um terço dos empregos nos Estados Unidos e na Europa possam ser realizados remotamente, muitos deles ainda estão relacionados a profissões que dependem dos efeitos de rede oferecidos por áreas urbanas vibrantes. Em última análise, as cidades onde os empregos são baseados formalmente ainda reterão relativamente mais poder econômico do que outras localidades.
No entanto, mesmo um repovoamento parcial e gradual de áreas menos desenvolvidas pode trazer benefícios de longo alcance, não apenas ajudando a diminuir desigualdades regionais que foram exploradas por políticos populistas nos países ocidentais nos últimos anos. De acordo com o economista Enrico Moretti, da Universidade da Califórnia em Berkeley, a introdução de um emprego de alta qualificação na economia de uma cidade tende a criar pelo menos cinco empregos de baixa qualificação, ajudando a elevar o padrão de vida de todos que vivem nesta região. Assim, com o passar do tempo, o influxo de trabalhadores qualificados em cidades anteriormente marginalizadas poderia criar economias locais mais dinâmicas e resilientes, preparando o terreno para um modelo de crescimento mais equilibrado geográfica e socioeconomicamente.
Os governos devem procurar facilitar essa transição, construindo infraestrutura digital adequada em áreas periféricas, fornecendo créditos fiscais para relocação e expandindo os incentivos para acordos de trabalho remoto. Na Europa, onde milhares de cidades com séculos de história foram completamente despovoadas, os benefícios de tais políticas seriam enormes - pelo menos reduziriam as disparidades geográficas com muito mais eficácia do que a imposição de impostos mais altos à elite urbana.
Até alguns meses atrás, as megacidades eram vistas como o futuro. Entretanto, em um mundo pós-pandemia, as cidades de menor porte terão muito a oferecer.