Preparar uma transição que preserve vidas

 

Clara Ant*

Artur Araújo*

 

27 de agosto de 2020 – 118.649 óbitos – Brasil ultrapassa o equivalente à lotação do segundo maior estádio do mundo.

“Como vou lavar as mãos se onde moro não tem água?

“Como arejar minha casa se nem janela tem?”

“Onde vou lavar as mãos se trabalho na rua?”

“Como as crianças vão poder ser cuidadas se muitas escolas sequer têm instalações sanitárias adequadas?

“Como ventilar as salas de aula se muitas têm janelas emperradas?”

Frases como essas foram ouvidas por todas as pessoas nos noticiários, nos debates transmitidos pelas redes sociais e nos papos informais.

A relevância da falta de acesso à água e demais condições de moradia e trabalho saltou aos olhos e aos ouvidos de quem queria e de quem não queria reconhecer essa evidente e perversa expressão concreta da desigualdade.

As sugestões aqui apresentadas focam a urgência da implementação de intervenções materiais em edificações e locais públicos e privados, cuja necessidade a pandemia agravou, em especial as relativas à água, sem demérito de outras necessárias e urgentes a serem desenvolvidas como, por exemplo, o transporte público.

Trata-se aqui de medidas que podem contribuir de imediato na defesa da vida da população e preparar adequadamente as condições para eventual flexibilização e retomada das atividades.

Mais do que tentar prever uma data para isso, é preciso prover as instalações de condições capazes de comportar uma possível flexibilização.

São ações que dizem respeito às responsabilidades da gestão pública e que necessariamente devem constar da pauta do debate eleitoral para Prefeituras e Câmaras Municipais.

Essas intervenções físicas e protetoras em geral, se implementadas, resultarão em um legado para a população que permitirá enfrentar, em patamar melhor, a eventualidade da ocorrência de novas epidemias ea prevenção e tratamento de outras doenças frequentes.

Em resumo, são ações imediatas a serem agregadas a outras medidas em outras áreas, com o objetivo de reduzir ao máximo a contaminação, as infecções, as sequelas e primordialmente os óbitos causados pela Covid-19 ou pelo descompasso entre a demanda provocada pela violência do vírus e a frágil capacidade de atenção aos atingidos.

PRESSUPOSTOS:

- Evitar que a chamada “volta ao normal” perpetue os danos e o sofrimento causados pela desigualdade hoje existentes, particularmente nos casos de acesso à água e de condições de moradia.

- Impedir que a expectativa de produção de vacinas arrefeça os mecanismos obrigatórios de proteção individual e coletiva. Ainda não há precisão sobre os efeitos, sobre o perfil dos beneficiários e principalmente se as vacinas serão universalizadas e gratuitas.

- Intervir para atenuar o abalo sofrido pelas condições de produção industrial, de prestação de serviços e de emprego, segundo indicam as projeções

- As sugestões aqui encaminhadas requerem muito respeito à vida, intensa vontade política, forte intervenção estatal, prioridades orçamentárias e sólida parceria entre os setores público e privado.

- Prefeituras e Câmaras Municipais, consórcios regionais, universidades, institutos que congregam profissionais, organizações da sociedade civil em geral, podem atuar para seguir e difundir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e agir articuladamente em defesa da vida.

ALERTAS

Antes de apresentar o rol de medidas, aqui vão alguns alertas que dificultam a atuação:

Teto de gastos

- Há três anos que as despesas com saúde estão congeladas pelo Congresso Nacional através da aprovação da Emenda Constitucional nº 95 proposta por Temer.  Mesmo assim, a existência e eficiência do SUS salvou milhares de vidas e as equipes de saúde da família, ainda que combalidas, puderam dar um pouco da atenção primária à população mais vulnerável.

Gestão biruta

- O governo federal confundiu a percepção da população quanto à gravidade da pandemia. Atuou desde o início fragmentando o país, disseminando informação danosa ou inútil, conflitando com autoridades de outros níveis de governo, estimulando aglomerações e desautorizando a ciência.

Primazia da economia

- O governo federal, alguns estaduais e municipais, atendendo a empresários do setor financeiro, do comércio e da indústria, provocaram outra confusão. Bancos receberam ajuda bilionária enquanto intervenção para contenção da epidemia e segurança da população foram secundarizados.

Saneamento

- Com a sanção da Lei nº 14.026, em 15 de julho de 2020, o chamado “Marco Regulatório do Saneamento”, quando já atingíamos mais de mil óbitos por dia, o Brasil perde a perspectiva da universalização do acesso aos serviços de saneamento básico. O veto ao artigo 16 do projeto de lei aprovado, anula uma possível "sobrevida" das empresas estaduais de saneamento.

Sequelas

- A real dimensão das repercussões clínicas e sequelas advindas da Covid-19 a médio e longo prazos ainda não é conhecida e exigirá reabilitação e acompanhamento por equipes multiprofissionais. Também ainda é desconhecido o impacto sobre a saúde mental dos que viveram a experiência da doença, da negação do direito ao luto de seus entes queridos, ou mesmo do medo da morte e do futuro comprometido.

Demanda reprimida

- Será necessário produzir estratégias para cuidar das pessoas com doenças crônicas que foram negligenciadas no período da pandemia da Covid-19, que estão há meses sem cuidados médicos, e demandarão fortemente os serviços do SUS com condições clínicas muito agravadas.

REDUZIR A CONTAMINAÇÃO E ZERAR OS ÓBITOS PELO SARS-COV-2

I – Atuar para articular os municípios associados da maneira mais adequada: seja em consórcio, numa mesma diretoria regional de saúde (DRS), nos moldes do “Comitê de Contenção”, criado em Araraquara e outras prefeituras e/ou do “Consórcio dos Estados do Nordeste”. Ou seja, articular gestores, profissionais da saúde, cientistas, educadores, sindicatos de trabalhadores, de empresários e demais atores que podem contribuir para a adoção de medidas conjuntas e assim proteger a saúde das populações de todo o território.

II - Uma mesma articulação pode e deve ser feita em âmbito municipal envolvendo áreas que em cada município são relevantes para esta atuação, tais como gestores locais, educadores, comitês ou grupos já constituídos por iniciativa da população, nos bairros e comunidades, pelos comerciantes, entre outros.

III –  Tendo em vista que, além do isolamento social, a higiene pessoal é um requisito decisivo para contenção da contaminação pelo Sars-CoV-2 e considerando que muitas medidas governamentais e outras de iniciativa de setores da sociedade têm estimulado o retorno em massa a atividades sociais e econômicas com proximidade física, é necessário garantir a oferta de instalações sanitárias que atendam essa diretriz de saúde pública (adequada aos protocolos da OMS), notadamente em escolas e outros edifícios públicos com forte concentração de usuários em espaços fechados e restritos e em logradouros com alta circulação de transeuntes.

IV - O distanciamento social e o isolamento dos infectados é uma providência historicamente adotada em casos de contaminação comprovada.

V – Investir fortemente em material de divulgação e informação pública sobre os riscos e as medidas a serem adotadas com adequação para os diferentes segmentos da sociedade,particularmente junto a trabalhadores na área da saúde e educadores. Se possível, inserir o tema nos currículos escolares incluindo também informações sobre a(s) pandemia(s) e o papel das vacinas, bem como seu processo de produção e universalização.

VI – Apoiar, incentivar e criar grupos e equipes de solidariedade.

ADEQUAÇÃO DE EDIFICAÇÕES AO ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA

Um caminho para ampliar a demanda industrial e gerar empregos na produção e nos serviços

A conjunção das premissas elencadas orienta a proposta esboçada aqui: um programa emergencial de adequação de edificações estatais e de construção de novas edificações para uso público, visando atender adequadamente as condicionantes sanitárias, envolvendo as ações abaixo identificadas, entre outras:

  • Levantamento exaustivo das necessidades de reparos em banheiros nas escolas da rede pública e de novos banheiros, lembrando que além da importância de lavar as mãos com frequência, o coronavírus se propaga também pela urina e pelas fezes.Observar também que as cozinhas, cantinas e locais onde é distribuída a alimentação escolar são pontos críticos.
  • Dimensionamento da necessidade de reparos em banheiros públicos e de construção de novos banheiros nas regiões urbanas de alta circulação de pessoas;
  • Dimensionamento das necessidades de produtos industriais para suprimento de um plano de construção acelerada (tijolos, cimento, pisos, canos, torneiras, vasos sanitários, esquadrias e vidros, fiação, luminárias, tintas, entre outros);
  • Dimensionamento da mão de obra (especializada e não especializada) necessária para as construções e para a ampliação da produção industrial
  • Localização de terrenos privados com possibilidade de instalação de banheiros públicos e estabelecimento de parcerias com seus proprietários, envolvendo redução ou isenção tributária
  • Levantamento da capacidade industrial local e regional, para suprimento dos bens demandados para as edificações, inclusive avaliando a necessidade e interesse em conversão de plantas para atendimento da demanda oriunda do programa;
  • Orçamentação do programa e definição de seu cronograma físico-financeiro, principalmente para atender a volta às aulas em condições de segurança para estudantes, profissionais da educação;
  • Alocação de recursos orçamentários para o programa;
  • Instituição de subprograma de capacitação de trabalhadoras e trabalhadores para ocupação dos postos de trabalho gerados pelo programa;
  • Dinamização dos recursos humanos existentes para viabilizar estes levantamentos e posteriormente as ações e operações que podem empregar profissionais já capacitados que não encontram serviço no cenário atual.

*Clara Ant é conselheira do Instituto Lula.

* Artur Araújo é consultor da Federação Nacional dos Engenheiros e da Fundação Perseu Abramo. Os autores agradecem as muitas e valiosas contribuições do ex-ministro da Saúde Arthur Chioro à concepção e redação deste artigo