Tradução de Rodrigo Toneto para artigo de Juan Manuel Santos e Sabina Alkire publicado por The Project Syndicate. Link do artigo original: https://bit.ly/2Q07kw2 

A última atualização do Índice de Pobreza Multidimensional global mostra que muitos países fizeram um progresso significativo na melhoria da vida dos pobres na última década. Em vez de permitir que esses ganhos sejam revertidos pela pandemia Covid-19, os governos devem aproveitar este momento para redobrar seus esforços.

A atual crise humanitária e econômica induzida por uma pandemia representa uma oportunidade sem precedentes de ir além das respostas de emergência e abordar as falhas estruturais de nossas economias. Os pacotes de estímulo e recuperação de muitos governos já estão moldando o futuro. Os líderes de todos os setores da sociedade devem reconhecer este momento como uma rara chance de construir um mundo mais inclusivo e sustentável, que só será possível se acabarmos com a pobreza em todas as suas formas.

Acabar com a pobreza pode parecer um sonho impossível, mas abolir a escravidão e acabar com o apartheid também parecia. O lançamento do Índice Global de Pobreza Multidimensional 2020 pode servir como um catalisador. Lançado recentemente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e pela Oxford Poverty and Human Development Initiative, o MPI, na sigla em inglês, mostra que 65 dos 75 países estudados reduziram seus níveis de pobreza significativamente na última década. Além disso, o país que reduziu a pobreza com mais rapidez, Serra Leoa, fez isso apesar da epidemia de Ebola que começou em 2014 (link para o índice).

O risco agora é que esses ganhos sejam revertidos. A crise da Covid-19 requer o compromisso dos líderes globais e nacionais não apenas para preservar o progresso conquistado a duras penas, mas também para avançar uma casa a mais no esforço global para erradicar a pobreza. Isso não será fácil, visto que a pandemia está exacerbando as desigualdades pré-existentes.

Usando dados que remontam a 2010, o MPI fornece uma imagem abrangente de como as pessoas enfrentam desvantagens em suas vidas diárias, porque mede simultaneamente as privações em saúde, educação e padrões de vida em dez indicadores. Esses dados podem nos ajudar a mitigar o fardo da pandemia sobre 1,3 bilhão de pessoas que vivem na pobreza multidimensional, evitando que muitas outras empobreçam. No nível nacional, os governos devem considerar a criação de seus próprios MPIs, específicos para cada país, para orientar estratégias eficazes para combater a pobreza.

Dezenas de países ao redor do mundo já o fizeram. Dos 47 países que enviaram Avaliações Nacionais Voluntárias ao Fórum Político de Alto Nível da ONU neste mês, 21 mencionam a pobreza multidimensional. Esperamos que eles possam usar essa ferramenta poderosa durante a própria pandemia. Ao enfatizar o apoio aos mais vulneráveis ​​hoje, todos os países estarão em uma posição mais forte para “uma melhor reconstrução” após a pandemia. Combater a pobreza multidimensional é bom para a sociedade e bom para a paz.

Mas para virar a esquina da pobreza, compromissos nos níveis mais altos são essenciais. Durante meu mandato (de Santos) como presidente da Colômbia, complementamos o processo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), com um MPI nacional que se concentrava não apenas na renda, mas também nas privações sociais adicionais que estavam afetando a vida dos colombianos. Nosso MPI, apoiado por dados robustos, serviu de base para o desenvolvimento de programas e políticas concretas que conseguiram reduzir a pobreza multidimensional de 30,4% para 19,6% em oito anos.

Os países que ainda não têm um indicador de pobreza multidimensional permanente oficial poderiam explorar o MPI global para ver se ele poderia fortalecer seus próprios esforços. De qualquer forma, todos os governos devem colocar a dignidade humana e as capacidades no centro de suas estratégias de recuperação.

É um “mito que estamos todos no mesmo barco”, observou este mês o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres. “Enquanto estamos todos flutuando no mesmo mar, é claro que alguns estão em super-iates enquanto outros se agarram aos escombros à deriva”. Portanto, é ainda mais essencial que estendamos a mão aos pobres, que sofrem múltiplas privações, com a Covid-19 aumentando o que já era um fardo esmagador.

Os governos nacionais não podem fazer isso sozinhos, é claro. A magnitude do desafio exige ação coletiva por parte de empresas, organizações não-governamentais e da sociedade civil e filantropos. Agora é a hora de colocar palavras em ação. Os líderes devem demonstrar coragem, determinação e perseverança e combinar ousadia com pragmatismo. A mobilização de todos os setores da sociedade em torno da causa comum para erradicar a pobreza beneficiará não apenas os pobres, mas também a economia em geral.

No início da Segunda Guerra Mundial, Eleanor Roosevelt observou que, “não podemos dizer no dia a dia o que pode vir. Este não é um momento comum. Não há tempo para pesar nada, exceto o que podemos fazer de melhor pelo país como um todo”. Nestes tempos desafiadores, a humanidade tem a oportunidade de se unir com solidariedade em favor dos que ficaram para trás e de agir com visão e determinação para acabar com a pobreza em todas as suas dimensões em todos os lugares.

No início desta pandemia, nosso amigo Amartya Sen, economista ganhador do Nobel, nos lembrou de bons e maus exemplos de liderança em tempos de crise. Ele ressaltou que durante a Segunda Guerra Mundial, um sistema de racionamento na Grã-Bretanha levou a uma distribuição mais igualitária de alimentos, o que por sua vez sustentou um aumento acentuado na expectativa de vida – de 6,5 anos para homens e sete anos para mulheres (de um aumento de apenas 1,2 e 1,5 anos, respectivamente, na década anterior).

A lição dessa experiência, e da de Serra Leoa na última década, é que políticas voltadas para o futuro, práticas e equitativas promulgadas em tempos de coação funcionam. Esperemos que os líderes de hoje reconheçam a oportunidade diante deles e adotem as métricas multidimensionais necessárias para enfrentar essa batalha.