Reportagem de Nora Delaney para o Nexo.
Este texto faz parte da série Coronavírus Update, na qual especialistas em epidemiologia, doenças infecciosas, economia, ciência política e outras disciplinas da Universidade de Harvard oferecem conhecimento e visões sobre como as últimas descobertas sobre o surto da covid-19 podem nos ajudar.
Com a covid-19 devastando as economias mundiais, a professora de Harvard Julie Battilana e colegas de todo o mundo emitiram um apelo urgente: precisamos transformar a maneira como trabalhamos.
Battilana, uma estudiosa de como organizações podem implementar mudanças positivas, sabe que podemos fazer melhor no que diz respeito a como trabalhamos. Ela e seus colaboradores defendem melhorias em três dimensões: democratizar as empresas, “descomodificar” o trabalho (trabalho não mais como uma commodity) e criar políticas sustentáveis que beneficiem o meio ambiente.
Battilana; Isabelle Ferreras, da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e do Programa de Trabalho e Vida Profissional da Harvard Law School; e Dominique Méda, da Universidade Paris Dauphine, na França, escreveram um artigo e recolheram assinaturas de apoio de mais de 5.000 pesquisadores de universidades de todo o mundo — incluindo quase 40 associados à Universidade de Harvard. O artigo foi publicado no início de maio em mais de 40 jornais em 36 países e até gerou um site e uma hashtag: #democratizingwork.
Fazer valer a voz das mulheres nos debates acerca do trabalho era um objetivo importante das pesquisadoras. Battilana, Ferreras e Méda uniram forças com outras cinco acadêmicas: Julia Cagé, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, na França; Liza Herzog, da Universidade de Groningen, na Holanda; Pavlina Tcherneva, da Bard College; Hélène Landemore, da Universidade de Yale; e Sara Lafuente Hernandez, da Universidade de Bruxelas, na Bélgica. Esse grupo — que representa áreas incluindo sociologia, filosofia, administração, economia e ciência política — mobilizou suas redes para fazer com que milhares de outras pessoas se unissem, começando pelas mulheres com perfis acadêmicos.
Battilana é professora de inovação social da Harvard Kennedy School e professora de administração de empresas na Harvard Business School — além de fundadora e presidente de Inovação Social + Iniciativas de Mudanças da Kennedy School.
Nesta entrevista, Battilana conta sobre seu artigo e sobre sua missão de transformar as relações no trabalho.
O que levou você a escrever um artigo sobre a democratização do trabalho?
Julie Battilana O que nos levou a escrever o artigo foi a crise atual, que não é apenas uma crise de saúde. A pandemia da covid-19 evidenciou profundas rachaduras e vulnerabilidades em nossas relações sociais, em nossa economia e em nossa política.
Somos confrontados com enormes desigualdades sociais: em riqueza, acesso a cuidados de saúde e a um lar saudável, entre os que conseguem trabalhar de casa e os trabalhadores essenciais, que arriscam sua segurança para os outros. Essas desigualdades existiam muito antes do coronavírus, mas foram exaltadas e amplificadas agora.
“À medida que emergimos desta crise, teremos que investir capital para apoiar trabalhadores e cidadãos. Mas isso não será suficiente. Também precisaremos mudar as leis e nossa cultura”
A pandemia também, temporariamente, estancou a economia e, por sua vez, demonstrou como o ambiente responde quando poluímos menos. Porém, ao nos prepararmos para reiniciar a economia, precisaremos aprender com esta crise e priorizar a proteção do meio ambiente. Caso contrário, continuaremos a destruir o planeta.
Como um todo, a crise amplia a necessidade de mudar. O status quo social e econômico antes do coronavírus era insustentável. Ao reconstruírmos o pós-covid-19, deveremos investir em sociedades mais resilientes, equitativas, saudáveis, justas e verdes. Fazer isso exige novas formas de trabalhar e organizar que nos colocarão no caminho para um futuro mais democrático e sustentável. O objetivo do nosso artigo é destacar opções para construir esse tipo de futuro, mas essas opções não são as únicas que devem ser consideradas — longe disso. Eu vejo nossa carta como uma convocação para participar coletivamente de um debate para que possamos redesenhar nosso sistema juntos.
Quando você divulgou o artigo na comunidade acadêmica, recebeu uma resposta surpreendente de acadêmicos que queriam apoiar seu trabalho. Por que você acha que o manifesto ressoou tão intensamente?
Julie Battilana Eu estudo a política da mudança. E uma descoberta crucial da minha pesquisa é que a agitação — apenas dizer que as coisas não funcionam — não é suficiente. Vimos isso com o Occupy Wall Street, que agitou muito efetivamente contra o status quo, mas não foi muito além disso. Para realmente efetuar a mudança, também devemos inovar e orquestrar a mudança.
Em 2008, o mundo, incluindo a comunidade acadêmica, chamou atenção para os problemas dentro do sistema. E, no entanto, ainda aguardamos reformas fundamentais. Desta vez, acho que os acadêmicos, assim como muitos outros cidadãos, querem ter certeza de que estamos fazendo de tudo para garantir que uma mudança sustentável saia desta crise. Penso que é por isso que tantos estudiosos assinaram o editorial. Eles querem ir além da agitação e participar de ambas as frentes: inovação e orquestração.
Vimos que a mudança é possível, como, por exemplo, na forma como reorganizarmos a sociedade para responder à pandemia. E não estamos começando do zero: nas últimas décadas, países de todo o mundo desenvolveram formas de trabalhar e se organizar que são mais democráticas e sustentáveis. A comunidade acadêmica pode contribuir com esforços para redesenhar nosso sistema, compartilhando o que aprendemos de nossas pesquisas e colaborando com organizações da sociedade civil, governos e empresas envolvidas no movimento mais amplo de mudança.
No artigo, propusemos inovações — modelos sociais e econômicos alternativos que podemos adotar para enfrentar o futuro. As soluções que discutimos não são as únicas, mas nossa esperança é que o artigo contribua para um debate real sobre soluções em diferentes contextos. Seria tolice pensar que o que funciona em um contexto pode funcionar em todos.
Você publicou esse manifesto em veículos do mundo todo. De que maneira os problemas que você aborda são universais? Alguns países estão conduzindo melhor do que outros o debate sobre o futuro do trabalho?
Julie Battilana Esta crise é global. E reflete como as nossas economias e sociedades se tornaram interconectadas. Então, sim, essa é uma questão universal. No entanto, nem todos os países responderão (ou deveriam responder) a ela da mesma maneira. Ainda assim, temos esperança quando vemos, por exemplo, que o governo da Coreia do Sul se comprometeu com um Green New Deal para lançar a recuperação econômica pós-covid-19.
Novos arranjos legais adequados para organizações que buscam atingir objetivos sociais e ambientais, além de financeiros, estão se tornando disponíveis em todo o mundo, inclusive no Reino Unido, França, Itália, Coreia do Sul e Estados Unidos.
No que diz respeito à participação dos trabalhadores na tomada de decisões estratégicas nas empresas, a Alemanha e alguns países nórdicos têm leis que fornecem aos trabalhadores uma representação formal nos conselhos de supervisão, dando a eles uma voz na gestão da empresa. Isabelle Ferreras, que redigiu o manifesto comigo e com Dominique Méda, é afiliada ao Programa de Trabalho e Vida Útil da Harvard Law School, que publicou um plano para reforçar a representação e o poder dos trabalhadores nas empresas e fora delas.
E alguns chefes de Estado, incluindo a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, e a primeira-ministra finlandesa, Sana Marin, propuseram adotar o bem-estar como um indicador-chave de sucesso e uma prioridade para seus governos. Eles estão trabalhando ativamente para aumentar o bem-estar de seus cidadãos. Essas políticas nacionais são cruciais para enfrentar a onda de desemprego e apoiar trabalhadores autônomos, a economia informal e os cidadãos mais vulneráveis.
Quais são os desafios para democratizar e “descomodificar” o trabalho e promover uma recuperação ambiental?
Julie Battilana Nossa economia e nossa sociedade ainda são impulsionadas principalmente pela busca da maximização do lucro. O que está em jogo é uma grande mudança econômica e social que exigirá grande esforço, determinação e criatividade. E isso é mais fácil dizer do que fazer. À medida que emergimos desta crise, teremos que investir capital para apoiar trabalhadores e cidadãos. Mas isso não será suficiente. Também precisaremos mudar as leis e nossa cultura.
No que diz respeito à economia, temos que garantir que não apenas continuaremos de onde paramos, mas desenvolveremos novos sistemas para a participação dos funcionários, definiremos metas claras para seu bem-estar e criaremos métricas ambientais e sociais, além de desempenho financeiro. Em minha pesquisa, acho que mesmo aqueles com as melhores intenções sofrem com frequência, pois perdem de vista seus objetivos ambientais e sociais na sua busca por eficiência.
Mas minha pesquisa também aponta para um lado positivo: organizações que são mais democráticas se saem melhor. É por isso que estamos buscando as respostas com os trabalhadores e cidadãos. Nossas pesquisas comprovam que esse não é apenas um caminho viável, mas necessário.
E como começamos a fazer essas mudanças?
Julie Battilana Essa é a questão crucial! Atualmente, estou escrevendo um livro sobre poder. Um componente essencial para entender o poder é entender as hierarquias que moldam quem o tem e quem não. Estamos diante de uma poderosa hierarquia que ainda coloca os investidores de capital no topo e os trabalhadores — investidores de trabalho — na base. No livro, minha coautora Tiziana Casciaro e eu mostramos que não podemos desafiar hierarquias de poder sozinhos. A mudança exige que nós, como cidadãos, mudemos nossos hábitos, que as empresas mudem suas práticas e que os governos mudem suas leis. Tais mudanças requerem movimentos coletivos. Esperamos que nosso artigo sirva como catalisador da ação coletiva.
Pesquisas em psicologia social indicam que, uma vez que os indivíduos adotam uma posição pública sobre um assunto, eles têm maior probabilidade de agir em sintonia com esse tópico. Nosso artigo tem duas missões. A primeira é mobilizar a comunidade acadêmica em torno da necessidade de democratizar empresas, “descomodificar” o trabalho e remediar o meio ambiente — e fazer com que os estudiosos adotem uma postura pública. A segunda é buscar o apoio de cidadãos, governos, empresas, organizações sem fins lucrativos e empresas sociais que desejam fazer essa mudança. Juntos, podemos começar a orquestrar mudanças que ajudarão a democratizar e “descomodificar” o trabalho e restaurar o planeta.