Entrevista com Eduardo Mei, concedida por e-mail, conduzida por João Vitor Santos, publicada em Cahiers & Revue La Brèche, 20.07.2020. Tradução de Henry Campos e Nahuan Gonçalves, colaboradores da FPA

Para o professor Eduardo Mei, a guerra é alguma coisa presente no imaginário brasileiro. Mas, não se trata de qualquer guerra, é uma disputa desigual que aniquila os mesmos grupos da população que têm sido submissos desde a colonização. “O Brasil é o produto cotidiano de uma guerra da conquista, onde as vítimas são os pobres, os indígenas, os Negros, os favelados, os sem-terra, os sem-teto”, resume ele em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos On-Line. E, para compreender a conjuntura política atual, que mistura guerra e repressão das populações, ele evoca o conceito de necropolítica. “A necropolítica é a própria negação da humanidade“, define ele.

Eduardo Mei explica que, no caso do Brasil, “a necropolítica é um vestígio vivo da conquista colonial e da escravidão, como um cadáver constitutivo de nossa vida cotidiana”. A origem disso é encontrada no passado, quando os Negros, depois de terem sido dizimados na escravidão, foram liberados e abandonados à sua própria sorte, e que os Índios foram exterminados ou confinados nas reservas. “O acúmulo do capital e o neoliberalismo favorecem o caráter necropolítico de um país formado sob o impacto da conquista colonial e da escravidão”, acrescenta ele.

Enquanto isso, ele compreende que, infelizmente, essas perspectivas foram atualizadas da pior maneira possível pela administração de Jair Bolsonaro. As políticas sociais recentemente adotadas provocaram uma resposta positiva da “casa grande” [“casa grande”, o equivalente da grande plantação do Sul dos Estados Unidos, onde reinava um mestre]. O presidente atual se apresenta como um representante da “casa grande”, um soldado da necropolítica contra os povos indígenas, os Negros, os quilombolas [comunidades negras rurais, formadas no tempo da escravidão, que puderam escapar dos seus algozes], os pobres e  os famintos”, diz ele. E, segundo Mei, em uma situação de pandemia e de desespero, ele encontra o cenário perfeito para se instalar. A pandemia apresentou-se ao “governo” como uma oportunidade de ouro para colocar em prática o genocídio indígena. “Nesse sentido, a pandemia é a oportunidade de reforçar o caráter fascista do bolsonarismo”, lembra ele.

Eduardo Mei é professor de Sociologia na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista – UNESP. Ele é doutor em História pela UNESP, mestre em Filosofia e graduado em Ciências Sociais pela UNICAMP. Ele faz parte do Grupo de Estudos sobre a Defesa e a Segurança Internacionais – GEDES, da UNESP.

IHU On-Line – Por que a ideia de guerra está sempre presente na sociedade contemporânea? Com o que contribui, intrinsecamente, a ideia de guerra contra o novo coronavírus?

Eduardo Mei – Seria necessário um estudo linguístico para saber se a frequência desse discurso “belicoso” é maior do que em outros períodos históricos e não conheço nenhum estudo sobre esse tema. De todo modo, há pelo menos duas razões pelas quais a guerra e os discursos belicosos estejam tão presentes na nossa época. A primeira é o fato de que o mundo inteiro experimenta atualmente um período muito belicoso, pelo menos desde a Revolução Francesa, com uma incidência maior depois da segunda metade do século XIX e com a deflagração dos conflitos mundiais no século XX. A segunda razão é que as guerras ganharam uma projeção através da imprensa, do rádio, da televisão e do cinema, e, mais recentemente, da Internet. Além disso, o vocabulário estratégico, de origem militar – pois o estrategista era aquele que comandava o exército na Grécia antiga-, estendeu-se a todas as atividades humanas, como a economia e a administração de negócios, por exemplo.

Intrinsecamente, não há qualquer problema em fazer guerra contra o novo coronavírus, desde que se trate do “bom combate”. Na verdade, se por “guerra contra a propagação do vírus” nós entendemos que a pandemia é tão grave quanto a guerra e que ela necessita do engajamento do poder público para vencer, a “guerra” é benvinda. Nesse sentido, a pandemia serviu para colocar em questão e, na maioria dos países, para suplantar o sofisma da auto-regulação do mercado. A pandemia é uma questão pública, e não privada, que só por meio do Estado (da res publica, da coisa pública) pode ser enfrentada. Infelizmente, não é o que acontece no Brasil.

 

IHU On-Line – Que ligações podemos estabelecer entre a política e a guerra na situação brasileira atual?

Eduardo Mei – No Brasil, a compreensão da realidade é – desde Cabral [Pedro Álvares Cabral, “descobridor do Brasil”, em 1500] – deformada pela perspectiva do colonizador. A tendência de utilizar categorias exógenas para interpretar a realidade brasileira é secular e hesitante. Tomemos o exemplo do Brasil mesmo, pois é o continente que podemos considerar. Existe a tendência de tratar o Brasil como uma nação contida no interior de suas fronteiras. A noção de fronteira é proveniente de uma realidade histórica estranha ao Brasil e que se impõe nos tratados internacionais como um interesse do colonizador. A fronteira é então, por assim dizer, “normatizada”, “naturalizada” e, como tal, torna-se um fato incontestável. Para os povos indígenas as fronteiras são uma imposição factual. Eles não são reconhecidos como nação por sua dignidade, como acontece na República plurinacional da Bolívia, por exemplo. O caráter genocida do “governo” atual - o termo “governo” tem uma origem náutica, refere-se ao termo governáculo; e ele não deveria, então, nunca ser utilizado para designar aqueles que, deliberadamente ou por incompetência, buscam causar o naufrágio; segundo o direito marítimo, eles são criminosos, como indica o artigo 261 do Código Penal -postura já reiterada pelo ministro da Educação [Abraham Weintraub], por ocasião da reunião ministerial de 22 de abril de 2020. Ele afirmou: “odeio o termo “povos indígenas”[...} o povo cigano”. Não há que um único povo neste país”. Isso revela algo que é geralmente travestido: o Brasil é o produto cotidiano de uma guerra de conquista, onde as vítimas são os pobres, os indígenas, os Negros, os favelados, os sem-terra e os sem-teto.

O Brasil tem um caráter genocida durável, de dimensão continental. No caso brasileiro (com exceção das raras guerras interestadistas nas quais o país esteve implicado) não se trata de uma guerra interestadista entre entidades soberanas que reconhecem entre elas o estatuto de igualdade jurídica (aquilo que Hugo Grotius, 1583-1645, definiu como bellum publicum solemne). Não se trata de uma guerra entre grupos politicamente organizados, como seria o caso de uma guerra civil, por exemplo. Trata-se de uma “guerra” no sentido figurado: seja a utilização do aparato militar e repressor do Estado – ou de atores privados com o consentimento do Estado – para a prática da violência genocida cotidiana.

 

IHU On-Line – Nas situações de crise extrema, e mesmo de guerra, a ideia de coesão nacional emerge. Por que o governo federal parece ir exatamente na direção oposta face à pandemia? O que revela sobre o governo Bolsonaro essa postura?

Eduardo Mei – A situação brasileira, pelo menos desde 2013, é de tal maneira instável que torna-se impossível fazer considerações categóricas, mas parece que a pandemia apenas reforça os aspectos fascistas do bolsonarismo. O discurso belicoso e de exclusão sempre foi repetido, e de modo claro, durante a campanha eleitoral. Esse é o porquê da relação intrínseca entre o bolsonarismo e a milícia. Não é por acaso que os dedos imitando uma arma são um símbolo do movimento bolsonarista e da campanha eleitoral.

O fanatismo da violência é característico dos regimes fascistas. Deve ser notado que a “unanimidade”nacional” do Terceiro Reich foi construída pela estigmatização e eliminação dos “inimigos” tais como os judeus, os Ciganos, os socialistas, os homossexuais, etc. O bolsonarismo sobrevive e cresce, utilizando a estigmatização repetida dos “inimigos”. Daí o estranhamento de uma suposta ameaça comunista internacional, ou a insinuação de que todos aqueles que criticam o “governo” são comunistas.  Isso revela algo alarmante: não falta ocasião para que o governo assuma seu caráter francamente fascista.

 

IHUOn-Line – A récita belicosa do governo Bolsonaro pode ser compreendida como uma estratégia de guerra? Por que? Como você interpreta esse discurso?

Eduardo Mei – O discurso belicoso, a divisão do mundo entre amigos e inimigos, a estigmatização de adversários políticos, a retórica da polarização da sociedade entre grupos que se excluem e, se a ocasião se apresenta, a eliminação física dos adversários e dos inimigos”, são características do fascismo e das tendências políticas filofascistas. Nessas circunstâncias a pandemia representou para o “governo” uma oportunidade de ouro para pôr em prática o genocídio indígena. Nesse sentido, a pandemia é a ocasião para reforçar o caráter fascista do bolsonarismo.

O negacionismo, a sugestão de que a pandemia é uma “gripezinha”, a política econômica procíclica e as iniciativas que suscitaram os agrupamentos e a distribuição caótica dos socorros de urgência são a prova de uma intenção de propagação da doença e da eliminação física de uma parte da população. Não é por acaso que o presidente foi denunciado na Côrte Penal Internacional de Haia.

 

IHU On-Line – Como você analisa a presença e o desempenho dos militares no seio do governo Bolsonaro?

Eduardo Mei – Também deplorável em todos os sentidos. O “governo” Bolsonaro é o produto de um golpe de Estado perpetrado contra a presidente Dilma Rousseff [com a sua destituição em 2016] cuja consolidação implicou várias outras violações da Constituição de 1988, direitos individuais e coletivos garantidos por ela e pela legislação ordinária, como também violações da legislação eleitoral, etc. Nos países plenamente democráticos toda pessoa que defende uma ditadura militar e a tortura seria punida pela lei. O que dizer de uma situação em que, além de não ser punida, a pessoa conserva as prerrogativas de um deputado federal e se apresenta à presidência?

Assim como as eleições legislativas institucionalizaram e normalizaram a ditadura militar [de 1964], as eleições de 2018 institucionalizaram e normalizaram o golpe de Estado de 2016.Ao violar a legislação eleitoral e colocar o bolsonarismo no poder (não somente o presidente, mas toda uma fração parlamentar de mitômanos e putschistas), o golpe de Estado institucionalizou o crime. E os partidários do crime são também criminosos. Só o laxismo e a ligeireza com que a coisa pública é tratada no Brasil explicam a situação em que nos encontramos.

 

IHU On-Line – Por que a adesão a Bolsonaro não parece ser completa entre os militares da ativa? O que eles criticam e o que os distancia dos militares que são membros do executivo?

Eduardo Mei – Aparentemente, a maior parte dos militares consideram a associação com o bolsonarismo como uma aliança tática. Embora seja difícil de dizer com certeza, já que a sombra dos regimes de exceção recobre e esconde o aparato militar – e, falando de modo apropriado, as forças armadas brasileiras não são instituições públicas – é certo que interesses corporativos pesam nessa escolha. Curiosamente, os interesses estritamente corporativos adquirem no jargão militar a denominação de “interesses nacionais”.

Enquanto isso, basta uma análise superficial para constatar que nenhum interesse nacional guia o “governo” Bolsonaro. Pelo contrário, é um governo mercenário, lesa-pátria e lesa-humanidade. Em todo caso, a crise institucional que atravessam, igualmente, o legislativo, o judiciário e mesmo a suprema Côrte federal, é uma boa desculpa para manter uma aliança tática que pode, com frequência, parecer inconfortável.

 

IHU on-Line – Como você compreende o conceito de necropolítica? Como esse conceito pode nos ajudar a avaliar a situação brasileira?

Eduardo Mei – Compreendo a necropolítica tal qual ela foi definida por Achille Mbembe, um historiador camaronês que vive nos Estados Unidos. Mbembe definiu a necropolítica como a política que consiste em decidir quem pode viver e quem deve morrer. Ainda que a definição de necropolítica figure em um texto publicado em 2003, ele faz referência à conquista colonial, à escravatura, ao direito de tratar pessoas como coisas e de matar os indígenas e os escravos, e à introdução dessas práticas colonialistas na Europa por regimes fascistas.

Em outros termos, a necropolítica é a própria negação da humanidade. É paradoxal que grupos que se dizem cristãos sejam os defensores e praticantes da necropolítica. Há até o que nós poderíamos chamar de necro-evangelização dos povos indígenas. Na realidade, a necropolítica é a antítese do “bom samaritano”.

No caso do Brasil, a necropolítica é um vestígio vivo da conquista colonial e da escravatura, como um cadáver vivo constitutivo da nossa vida cotidiana. Quando a escravidão foi abolida (1888), os antigos escravos foram abandonados à própria sorte e sobreviveram resistindo numa sociedade racista e de exclusão. Quanto aos povos indígenas, aqueles que sobreviveram ao genocídio foi em razão da dimensão continental do país e pelo fato que, ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil mantém até hoje, graças à imensa floresta amazônica, um imenso território relativamente pouco devastado (lembremos que Bolsonaro exalta o genocídio dos indígenas americanos perpetrado pela cavalaria dos Estados Unidos).

O fato é que o acúmulo desenfreado de capital levou à expansão da fronteira agrícola, ameaçando os povos indígenas, e a precariedade das condições de trabalho afeta, no meio urbano, mais os Negros do que outros segmentos da população. Em consequência, o acúmulo de capital e o neoliberalismo favorecem a exacerbação do caráter necropolítico de um país constituído sob o impacto da conquista colonial e da escravatura. As políticas sociais recentemente adotadas provocaram uma reação positiva da “casa grande”. O presidente atual se apresenta como um representante da “casa grande”, um soldado da necropolítica contra os povos indígenas, os Negros, os quilombolas, as populações pobres e famintas.

A pandemia do coronavírus só fez com que se manifestasse o caráter mórbido do neoliberalismo filofascista. As tentativas de extinção do Bolsa Família e de outras políticas de inclusão e a negligência com a qual o problema da fome e do desemprego é tratado são a prova.

 

IHU On-Line – Que associações podemos fazer entre a guerra e a necropolítica?

Eduardo Mei – A guerra foi, com frequência, utilizada como uma forma de necropolítica, antes mesmo desse conceito ter sido firmado por Achille Mbembe, uma vez que está claro que a realidade precede, e de muito, o conceito. Se nós partirmos da definição do bellum publicum solemne, constatamos que ele não se aplica que às guerras praticadas pelos Estados europeus entre eles mesmos a partir da Paz de Westfália (1648)*.

Deve ser notado que, durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), cujo fim foi convencionado nos tratados de Westfália, saqueamentos e mortes de civis, e até mesmo o canibalismo, foram praticados  na Europa. Desde então, foi iniciado um processo de engajamento para moderar e “civilizar” a guerra. No entanto, esse regramento dizia respeito apenas às relações interestadistas entre os países da Europa.

No que diz respeito ao destino dos povos das colônias europeias, não houve nem regulamentação nem moderação. As guerras de extermínio e a propagação deliberada de doenças faziam parte do cotidiano da necropolítica colonial. No mundo tecnológico contemporâneo, a guerra não é, com frequência, mais do que um subterfúgio para a necropolítica e o genocídio dissimulado.

 

IHU On-Line – As manifestações pela democracia, contra o racismo e contra o governo, são elas uma resposta da sociedade à necropolítica? Por que?

Eduardo Mei – As manifestações atuais pela democracia são a reação das “senzalas” [o termo se reporta aos alojamentos para escravos] diante das regressões impostas pela “casa grande”. Elas rejeitam o bolsonarismo e tudo aquilo que ele representa, inclusive a política econômica neoliberal do ministro Paulo Guedes. A hesitação em organizar manifestações durante um período onde deveríamos manter o isolamento social e o sucesso dessas manifestações são sintomáticas da situação particular com que estamos confrontados. Para aqueles que nós poderíamos chamar de “a esquerda tradicional”, as manifestações seriam um risco sanitário e político, pois elas poderiam ser a ocasião para um novo golpe de Estado e endurecimento do regime.

Enquanto isso, parece que, nas manifestações, são os segmentos mais precarizados da população que prevaleceram, para os quais o isolamento social é impossível, uma vez que se trata de trabalhadores e trabalhadoras que precisam trabalhar porque a ajuda governamental é um blefe; trata-se de  trabalhadores que dependem, em seu cotidiano, de meios de transporte precários e superlotados e que, em consequência, vivem cotidianamente o risco de contágio

*Nota dos Tradutores: A chamada Paz de Westfália  é também conhecida como os Tratados de Münster e Osnabruque , e designa uma série de acordos que encerraram a Guerra dos Trinta Anos e reconheceram, igualmente, de modo oficial, as Províncias Unidas e a Confederação Suíça.

 

IHU On-Line – A necropolítica é uma ameaça à democracia brasileira? E por que é uma ameaça?

Eduardo Mei – A necropolítica é absolutamente contraditória a toda forma de democracia, mesmo à nossa democracia precária, que só durou até 2016 e que nos faz tanta falta. A necropolítica é a institucionalização da exclusão social e da violência estatal e para-estatal contra a maioria da população pobre, negra, indígena e excluída do Brasil.

A democratização e a inclusão social desses últimos anos, ainda que muito limitadas, incomodaram a classe da “casa grande”. A manifestação mais evidente desse fenômeno é a visibilidade ou invisibilidade de grandes segmentos da população. Enquanto  os Negros e os pobres são invisíveis nas prisões, ou invisíveis vestindo o uniforme para limpeza dos aeroportos e dos centros comerciais, os “bons cidadãos”, a sociedade “branca”, não se preocupam. Mas, quando os Negros, os pobres, os indígenas chegam à universidade, começam a frequentar os aeroportos e centros comerciais como turistas ou consumidores, a “casa grande” começa a se inquietar. Nesse sentido, no Brasil de hoje, a necropolítica é o último recurso para confinar os Negros e os pobres nas “senzalas” e os índios na reserva indígena menor possível, a fim de garantir o seu extermínio.

 

(Entrevista originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos, em 18 de junho de 2020)