Artigo de Anakwa Dwamena publicado em The New Yorker e traduzido por Nicole Herscovici.

Muitos meses antes do coronavírus chegar ao Brasil, Maria Marques Martins dos Santos sofreu uma série de tragédias causadas pelo homem. No dia 12 de novembro, dos Santos, uma mãe de três de 38 anos, cuja figura de um metro e cinquenta é coroada por um cabelo castanho cacheado, estava em sua casa, na Favela do Amor, em São Paulo. Logo após a meia-noite, seu filho de 14 anos, Lucas, saiu para comprar refrigerante e biscoitos e nunca mais voltou. Três dias depois, seu corpo afogado foi encontrado em um lago próximo, depois do que as testemunhas disseram ser um encontro com a polícia militar. Quatro dias depois, quando dos Santos foi para delegacia de polícia para tentar identificar quais policiais tinham atacado seu filho, a polícia a deteve, alegando ter um mandado pendente para sua prisão. Onze dias depois, em 30 de novembro, algemada e vestindo roupas de prisão, ela observou em sofrimento enquanto o corpo deteriorado de seu filho foi enterrado em um caixão fechado.

Durante os próximos quatro meses, com dos Santos na cadeia, o coronavírus chegou ao Brasil, primeiro atingindo os ricos e depois se disseminando pelos bairros pobres e pelas prisões. As penitenciárias de São Paulo, as quais contêm cerca de 40% da população carcerária brasileira, são conhecidas pela sua falta de assistência médica. A família Dos Santos temia que ela tivesse efetivamente sido condenada à pena de morte. Ao redor do mundo, a pandemia do coronavírus tem exposto e exacerbado as desigualdades raciais e de classe. No Brasil, onde os seis homens mais ricos detêm a mesma quantidade de riqueza que a metade mais pobre da população, o fardo desproporcional da crise sobre os negros e pardos pobres desafia a profunda e popular ilusão do país de ser uma sociedade igualitária e sem distinção de raça. Em grande parte por encarcerar negros e pardos, o Brasil, na última década, tornou-se o lar da terceira maior população de prisões e cadeias do mundo, ultrapassando a Rússia. Nesse período, a população carcerária do país dobrou. As prisões brasileiras são criadouros de doenças: a água é racionada; a falta de assistência médica no local significa que as pessoas doentes são constantemente transportadas entre hospitais públicos e prisões; e a superlotação é endêmica: em média, as prisões no Brasil excedem sua capacidade em 66%. Para Santos e os 700 mil outros presos do Brasil, o isolamento social é impossível.

Surpreendentemente, 30% das pessoas encarceradas no Brasil não foram condenadas por um crime. Cerca de um terço dos prisioneiros do país estão atrás das grades por acusações de tráfico de drogas, e a maioria deles são mães negras como Santos. Reconhecendo a ameaça da pandemia, o Conselho Nacional de Justiça, um conselho de supervisão judicial do governo, recomendou em março que os juízes libertem prisioneiros que não cometeram crimes violentos e que sejam membros de grupos de risco: mulheres grávidas, mães lactantes e mães ou responsáveis ​​legais de crianças de até 12 anos. "Somente em São Paulo, 11.284 pessoas sem histórico de criminalidade têm direito a sentenças reduzidas sob essa orientação", disse-me Marcelo Novaes, advogado da dos Santos. Mas os juízes, que são os únicos funcionários que podem baixar sentenças, relutam em fazê-lo: de acordo com as diretrizes emitidas pelo Conselho Nacional de Justiça, 35 mil prisioneiros são elegíveis para a libertação, e, dos 25 mil que se inscreveram para tal, os juízes liberaram apenas 700 até agora. À medida que o coronavírus se espalhou no Brasil, o país passou a ocupar o lugar de segundo maior em número de infecções e mortes de qualquer nação do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Em suas cadeias e prisões, alguns presos estão escrevendo preventivamente cartas de despedida para suas famílias.

"O que estamos tentando evitar é um massacre", me contou Luciana Zaffalon, advogada brasileira defensora de uma reforma da justiça criminal. Zaffalon lidera a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, um dos vários grupos que pressionam os juízes para libertar prisioneiros vulneráveis. Em 2006, foi aprovada uma lei que permitia indulgência aos usuários e instituía medidas mais duras para os revendedores. Em resposta, promotores e juízes passaram a acusar as pessoas de pequenas quantidades de cocaína ou crack como traficantes, que cumprem sentenças entre cinco e quinze anos. Os defensores da reforma da justiça criminal relatam que os juízes também começaram a acusar mulheres negras pobres, como traficantes, porque poucos delas podem pagar advogados de defesa privados caros e, portanto, são mais fáceis de condenar do que réus ricos. Como resultado, entre 2000 e 2016, a população de mulheres presas aumentou quase 700%, para cerca de 44 mil detentos. Zaffalon, que é ex-mediadora da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, culpou a resistência do governo de libertar pessoas em uma mentalidade entre juízes de guerra contra o crime que afetam desproporcionalmente os pobres negros e pardos. "Quase todos os casos criminais são de negros e pobres que não têm dinheiro para contratar um advogado particular para apelar em seus casos", disse ela.

A corrupção há muito afeta o sistema judicial brasileiro. A maior parte do orçamento do judiciário é destinada aos salários dos juízes, muitos dos quais são homens brancos mais velhos que se formaram nas universidades de elite do país. O Projeto Justa, uma organização que luta por maior transparência judicial, descobriu que 100% dos que se tornam juízes acabam no 0,08% do segmento mais rico da população, o que o grupo sustenta ser um sinal nítido de racismo sistêmico e corrupção.

Desde março, a proibição de visitas nas prisões impediu que as famílias levassem comida para os encarcerados - uma prática comum em um país onde muitos reclusos, devido ao subfinanciamento bruto do sistema prisional, são desnutridos. Andrelina Amélia Ferreira, que lidera o movimento Mães do Cárcere, contou-me que ouviu histórias de detentas comendo pasta de dente por desespero e fome. “Mesmo que adoeçam”, argumentou Ferreira, “é direito deles morrer com a família e não sozinhos na prisão”. Nos últimos 18 anos, Ferreira usou sua casa como sede e aconselhou 20 a 30 mulheres por dia. Ela me disse que teme pela vida dos prisioneiros como nunca antes. “Sou uma mulher que cresceu em uma comunidade simples, na periferia, e posso dizer que nunca tive tanto medo como agora”, ela me confessou. "Não sabemos quem permanecerá vivo, quem não".

Na terça-feira, depois de zombar do risco de infecção por coronavírus por meses, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro anunciou que havia testado positivo para o vírus. Desde a chegada da pandemia no Brasil, Bolsonaro por si só criou o caos: menosprezou sua severidade, apesar das evidências esmagadoras de seu perigo; desafiou publicamente as medidas de isolamento social caminhando entre multidões e apertando as mãos e incentivando outras pessoas a fazê-lo; brigou com e demitiu um ministro da saúde e minou os esforços dos demais líderes do país. Questionado sobre o crescente número de casos em São Paulo, em uma entrevista em 27 de março, Bolsonaro respondeu: "Sinto muito, algumas pessoas vão morrer. Eles vão morrer. Isso é a vida. Você não pode parar uma fábrica de automóveis por causa de mortes no trânsito”.

Com o aumento das taxas de infecção no Brasil, surgiu uma imagem mais definida de cujas vidas o presidente aparentemente considera descartáveis. No início do surto, o maior número de casos ocorreu em bairros ricos - os únicos lugares com acesso a testes. Com o tempo, trabalhadores da necrópole de Vila Formosa, o maior cemitério da América Latina, notaram uma aceleração nas mortes de pessoas nas periferias da cidade. Agora, a taxa nas favelas e periferias é oficialmente dez vezes maior que a média no resto do país. Mais da metade dos casos do Brasil está na região Sudeste, onde cerca de 10 milhões de pessoas vivem em casas sem acesso ao saneamento básico, e cerca de 7 milhões não têm acesso à água corrente. A desigualdade no sistema de saúde brasileiro também é extrema. Sessenta por cento (67%) das camas de UTI no estado de São Paulo estão em três de suas regiões mais ricas e apenas 25% da população nacionalmente tem seguro de saúde privado ou pode pagar. A disparidade resultante por raça nas taxas de mortalidade relacionadas ao coronavírus é flagrante: negros em São Paulo têm 62% mais chances de morrer de covid-19 do que brancos.

Raquel Rolnik, professora de planejamento urbano da Universidade de São Paulo e ex-relatora especial da ONU em moradias adequadas, me disse que o impacto da pandemia foi exacerbado porque "o vírus chegou a um país desmantelado". Desde os 1960, o custo da moradia no Brasil está além do alcance do trabalhador médio. "O mantra deve ser 'ficar em casa'", argumentou Rolnik, mas "no caso do Brasil, para ficar em casa, é preciso ter uma casa para começar". Quando assumiu o cargo, Bolsonaro dissolveu o Ministério das Cidades, que havia investido 780 bilhões de reais em imóveis por mais de uma década, muitos deles em imóveis públicos para brasileiros de baixa renda. "Agora é deserto novamente", afirmou Rolnik.

“É complexo, porque o Presidente está andando pelas ruas negando a doença e espirrando nas pessoas e dando às mãos,” Ferreira me disse. “Então, para as pessoas vivendo nas favelas, passa a mensagem para fazer o mesmo”. O governador de São Paulo, João Doria, contou à Associated Press, “nós estamos lutando contra o coronavírus e contra o Bolsonaro-vírus”.

Doria e o governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, foram elogiados por enfrentarem Bolsonaro na questão do coronavírus, mas têm sido criticados por manterem-se de braços cruzados enquanto a polícia tem matado centenas de pessoas negras e pobres. O Rio registrou um aumento de 23% nas mortes envolvendo policiais durante os primeiros cinco meses de 2019, e pesquisas recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que entre 2007 e 2017 o assassinato de negros no Brasil aumentou dez vezes mais rápido que o resto da população. Em São Paulo, os assassinatos da polícia militar estão aumentando, de acordo com a Globo, um importante veículo da mídia brasileira, apesar da diminuição na taxa de criminalidade associada à pandemia. A devastadora política de policiamento de Witzel no Rio, que autoriza policiais a disparar foguetes contra comunidades de helicópteros, matou cerca de 1800 pessoas no ano passado, o maior número já registrado no estado.

As pandemias anteriores, como a gripe de 1918, também contaram com falta de auxílio estatal para ajudar os pobres e os negros. O que é único na história do Brasil, no entanto, é "ter um presidente contra a ciência", me afirmou Lilia Schwarcz, historiadora brasileira e professora da Universidade de Princeton, citando a crença no círculo interno de Bolsonaro de que a Terra é plana. A relutância de Bolsonaro em pressionar pelo isolamento e sua vontade de deixar os vulneráveis ​​morrerem, acrescentou Rolnik, é emblemático de sua maior "filosofia absolutamente pró-morte e sua prática da necropolítica", uma referência ao filósofo camaronês Achille Mbembe, que argumentou que os estados afirmam sua soberania impondo dor e morte a populações consideradas outra.

Em seu livro “Brazil: A Biography”, que ela co-escreveu com Heloisa M. Starling, Schwarcz afirma: “A experiência de violência e dor repetida e dispersa persiste na sociedade brasileira moderna”. Esta é uma referência à longa história da escravidão no Brasil, que recebeu pouco menos da metade dos escravizados levados para as Américas e, em 1888, foi a última nação da região a aboli-la. Os historiadores brasileiros há muito a descrevem como uma "falsa abolição", porque mantinha no país as estruturas econômicas, políticas e sociais baseadas na escravidão. Um século se passou até que uma nova constituição, em 1988, levou à implementação de programas de ação afirmativa e outros esforços do governo para aumentar a equidade. Bolsonaro descarta a existência de racismo sistêmico no Brasil e, desde sua eleição, tenta reverter os programas do governo projetados para ajudar grupos marginalizados. Schwarcz argumenta que a falta de desejo do governo de intervir em nome dos pobres e negros moradores de favelas e povos indígenas é uma continuação de uma era anterior na história do país. Muitos dos seguidores de Bolsonaro acreditam que os ganhos dos últimos trinta anos para os brasileiros negros, como um sistema de cotas projetado para dar mais acesso aos estudantes negros à educação, estão privando outros brasileiros das oportunidades a que têm direito. Seus seguidores professam, Schwarcz me contou, uma "nostalgia por uma história e um passado que nunca existiram".

Recentemente, dos Santos foi liberada da Penitenciária Feminina de Santana, depois de um juiz decidir que sua sentença era ilegal. Devido a praticamente nenhum teste nas instalações, e à categorização geral de algumas mortes nas prisões como causadas por "infecções respiratórias agudas", é difícil dizer quantos presos em Santana realmente morreram de covid-19. Onze guardas da penitenciária testaram positivo e um morreu. Sendo eles próprios residentes de baixa renda da periferia, os guardas também são vítimas da desigualdade no acesso a exames e cuidados de saúde.

Durante toda sua detenção e desde a libertação, Santos não teve acesso a testes. Ela me disse que não acha que tem o vírus, mas sente "algo no nariz, como uma gripe". Antes de seu encarceramento, ela trabalhava 10 a 12 horas por dia, ao lado de sua irmã, coletando e entregando amostras de urina aos hospitais para testes. Ela ganhava R$ 320,00 reais - aproximadamente US$ 60 - por mês. Agora, sua única fonte de renda é o dinheiro das comunidades de ajuda mútua. "Devido a doações, estamos sobrevivendo", ela me disse.

Segundo o registro oficial do governo, apenas 63 presos nas prisões brasileiras morreram por causa do coronavírus, e outros 5.359 prisioneiros testaram positivo para o vírus. Os números provavelmente são muito mais altos, dada a taxa extremamente baixa de testes atrás das grades. Novaes, advogado de Santos, afirmou que as leis criminais e o sistema de policiamento do país são duas das ferramentas que os brasileiros ricos usam para manter a desigualdade no país. Um número crescente de pessoas mais vulneráveis ​​do Brasil está sendo enredado em um sistema de encarceramento em massa, que, segundo os defensores da reforma, leva a ainda mais pobreza e desigualdade.

Quando perguntei a Santos como era ser um cidadão brasileiro nesses tempos, ela disse que se sentia abandonada e prejudicada pelo Estado. A polícia havia retirado "minha felicidade, meu filho e minha vida". Ela culpou o sistema judiciário por tentar silenciá-la. Quanto a Bolsonaro, Santos não quer que ele morra, mas ela espera que ele sinta "os efeitos da covid-19, porque não é uma 'gripezinha', como ele disse antes". Ela me disse que está decidida a fazer tudo o que pode para conseguir justiça para seu filho e impedir que ele se torne "outra estatística de jovem preto morto".