Por Henry Campos(*) e Nahuan Gonçalves (**)

Breve revisão histórica da interligação entre saúde, arquitetura e urbanismo.

A complexidade do desenho de novas tramas urbanas para reestruturar as cidades após a pandemia da Covid-19.

Perspectivas históricas mostram que arquitetura e urbanismo, e saúde estão intimamente ligados. A demonstração dessa conexão encontra vasto respaldo na literatura. Um exemplo de brilhante ilustração encontra-se na obra coletiva Ville, urbanisme et santé, Les trois révolutions (2015), coordenada pelo arquiteto e urbanista francês, Albert Lévy.

Ao longo deste artigo voltaremos a fazer referência a essa obra e traçaremos, com a inclusão de outros autores, uma sinopse da evolução histórica dessa relação entre saúde e arquitetura e urbanismo, pois esse conhecimento revela-se precioso no momento em que arquitetos de vários países começam a refletir e discutir sobre um urbanismo pós-COVID-19, buscando a definição de um novo paradigma, que possa dar resposta, com estratégias de articulação intersetorial, às complexas inquietações, reveladas pela atual pandemia, o que requer, inclusive, uma ampliação do conceito de determinantes sociais do processo saúde-doença.

As grandes epidemias, cujo primeiro registro vem de referências bíblicas (Antigo Testamento, 1500 a.C e 450 a.C), e que, juntamente com as pandemias, vêm sendo relatadas ao longo de toda a história da humanidade, têm determinantes que, além de fatores biológicos, podem, de forma simplificada, serem classificados como econômicos, culturais, ambientais e ecológicos, comportamentais e psico-sociais.

Fazendo uma leitura abreviada, com cronologia aproximada, desde a peste de Atenas(430-427 a:C), deflagrada na Guerra do Peloponeso, descrita por Tucídides, de etiologia ainda hoje controversa; a peste de Siracusa (395 a.C): a peste antonina (Roma, 166 d.C), passando pelo período medieval, com a peste bubônica (Constantinopla, 541-544), que tornou-se doença recorrente na Europa por todo o século XIV e lá existiu até 1720; a epidemia de varíola no Japão (735-737); a longa pandemia de varíola, desde a colonização das Américas, no final do século XV; a epidemia de febre amarela no Haiti (1801) e em Nova Orleans (1857); a epidemia de cólera ao longo do século XIX, chegamos ao início do século XX, com o surgimento, na Primeira Guerra Mundial (1918-1919), da chamada gripe espanhola, disseminada em três ondas de contágio a todos os continentes, com origem na China e nos Estados Unidos. Não se pode deixar de fazer referência a mais de um bilhão de mortes por tuberculose contabilizadas no mundo entre 1850 e 1950 . Em tempos mais recentes vivenciamos pandemias de doenças ainda prevalentes, como as da AIDS (1980) e da SARS (2002-2004). Merece registro a identificação, em 1976, do vírus Ebola, no Sudão e no Congo, e o surto epidêmico ocorrido entre 2013 e 2016, nos países da África Ocidental. Não se pode esquecer os surtos e as epidemias de sarampo: a maior e mais recente delas foi registrada em 2019, na República Democrática do Congo. O sarampo afeta anualmente cerca de 20 milhões de pessoas, a maioria delas encontram-se em regiões em desenvolvimento da África e da Ásia.

Em todas essas catástrofes sanitárias mencionadas identifica-se como ponto comum a importância, quase sempre vultosa, da participação de fatores ambientais e do habitat na gênese e desenvolvimento das crises sanitárias, que causaram, invariavelmente, transformações e desvelaram fragilidades de diferentes aspectos do ethos social, gerando reflexão sobre a relação causal para propagação das moléstias e, como reação para frear a disseminação de doenças, a adoção de medidas político-administrativas, nas quais predominavam intervenções sobre o habitat, sobre o meio ambiente.

A primazia do diálogo entre a saúde e a polis coube ao médico grego, Hipócrates, considerado o pai da Medicina, que incluiu, com Tratado dos ares, águas, lugares, a ligação entre as doenças e o ambiente entre os famosos Corpus Hippocraticus : ”Aquele que quer aplicar-se corretamente à Medicina deve fazer o seguinte: considerar, em primeiro lugar, em relação às estações do ano os efeitos que cada uma delas deve produzir, uma vez que elas não se assemelham, mas diferenciam-se uma das outras, e cada uma em particular difere muito dela mesma em suas vicissitudes; em segundo lugar, os ventos quentes e os ventos frios, sobretudo aqueles que são comuns a todas as terras; em seguida aqueles que são próprios de cada rincão. Ele deve considerar igualmente a qualidade das águas, pois elas diferem por seu sabor e por seu peso, tanto que elas diferem em suas propriedades. Assim, quando um médico chega a uma cidade com a qual não tem vivência, ele deve examinar sua posição e suas relações com os ventos e o raiar do dia, uma vez que aquela que é exposta ao norte, aquela que o é ao meio-dia, aquela que o é ao amanhecer, aquela que o é ao por do sol, não exercem a mesma influência. Ele considerará muito bem essas coisas, investigará a natureza das águas, saberá se aquelas utilizadas são pantanosas e moles , ou duras e saídas do interior das terras e rochedos, ou se elas são salinas e refratárias. Ele examinará se o solo é nu e seco, ou arborizado e úmido; se ele é depressivo e queimado por calores escaldantes, ou se ele é alto e frio. Por fim, ele conhecerá o gênero de vida que mais agrada aos habitantes, e saberá se são amigos do vinho, glutões e preguiçosos, ou se são amigos da fadiga e dos exercícios físicos, bebendo e comendo pouco. ”

A influência das ideias hipocráticas já pode ser vista nos trabalhos realizados em Roma pelo Imperador Augusto, fundador do Império Romano, com a construção do aqueduto Aqua Alsietina, ou Água Augusta (2 a.C), a construção de fontes e reservatórios de água. Em artigo publicado na revista Études sur la Mort (2010), a historiadora francesa Françoise Biotti-Mache relata que “as epidemias rareiam”, em razão do “nível de higiene que as termas e esgotos proporcionam à população”. Depois de um longo silêncio as ideias hipocráticas ressurgem no século 13, quando os médicos formulam a teoria dos miasmas, ou odores maléficos, realçando a qualidade do ar como fator de prevenção das doenças, nomeando as cidades como “sadias ou doentias”, como descreve, em 1256, o médico Aldebrandin de Sienne, no seu livro Régime du corps.

A atração da população pelas cidades, a partir do século XIII, faz surgir, como relata o historiador François-Olivier Touati no artigo Um mal que espalha o terror? Espaço urbano, doença e epidemias na Idade Média (revista Histoire urbaine, 2000/2, no 2), faz surgir a primeira legislação sanitária, seguida de um processo de urbanização, que afasta da cidade as populações errantes, os marginalizados, as prostitutas, em razão do “risco de degradação física”, os morféticos, e cria a polícia dos mercados e das ocupações “produtoras de dejetos”.
Estabelece-se assim, um ordenamento paisagístico, espacial e arquitetural, social e político, como garantias para que as cidades “não se tornem testemunhas de uma degradação que não seja fruto do seu sucesso”.

Os séculos seguintes viram a continuidade das teorias neohipocráticas, levando a muitas iniciativas de urbanização , como o movimento de retomada da pavimentação de ruas na França, que havia sido iniciada por Philippe Auguste e interrompida durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre os reinos da Inglaterra e da França, que saiu vitoriosa e assim consolidou a sua monarquia.

Na obra coletiva Ville, urbanisme et santé, Les trois révolutions , coordenada pelo arquiteto e urbanista francês, Albert Levy, os colaboradores Sabine Barles e André Guillerme apresentam dados muito esclarecedores para a compreensão do triunfo do higienismo, ao fazer um balanço sombrio do estado sanitário de Paris às vésperas da Revolução Francesa de 1789. Tendo sido a Revolução Industrial (1760-1840) que marcou o ápice da insalubridade das cidades, a industrialização de Paris não poupou a capital francesa dos seus malefícios. A utilização de produtos tóxicos e poluentes por numerosas fábricas faz surgir o que se chamará mais tarde de doenças profissionais, mas o foco de estatísticos parisienses sobre as moradias insalubres esconde a responsabilidade da indústria pela baixa qualidade de saúde dos trabalhadores e também dos moradores dos arredores das fábricas. “O amontoamento de trabalhadores em ambientes insalubres favorece o desenvolvimento de epidemias que a medicina não consegue conter – cólera, varíola, sarampo, escarlatina, febre tifóide”, realça Albert Lévy. Essa questão reúne diversas correntes higienistas e leva à criação de uma federação de médicos e engenheiros, e faz surgir o espacialismo, doutrina que propõe-se a resolver os problemas sociais e sanitários para uma ocupação justa do espaço.

O chamado neohipocratismo, dominante desde o fim do século XVIII, exerce profunda influência sobre a urbanização das grandes cidades e adota conceitos espacialistas, fazendo surgir as bases para um urbanismo de saneamento, divulgado num tratado publicado em 1769 pelo arquiteto francês Pierre Patte, creditado também como pioneiro da ligação de edificações a uma rede de esgotos. Essa obra inspirou, anos mais tarde, a transformação de grandes cidades, como ocorreu no Segundo Império com a chamada Reforma Urbana de Paris, também conhecida como Renovação de Haussmann, vultoso programa de obras públicas de modernização da capital francesa, promovida por Georges-Eugène Haussmann entre 1852 e 1870.No entanto, essas obras que transformaram a fisionomia das grandes cidades, embora ajudassem a reduzir o avanço das doenças infecciosas, não levaram à superação das epidemias.

Desde sua aparição na Europa, em 1830, o cólera desencadeou um debate sobre qual era causa de sua propagação: contágio ou infecção? Em seu artigo Cólera e a questão das moradias insalubres em Paris, publicado em 1998 na edição francesa da revista Population,
constata René Le Mée que “o caráter social da epidemia se confirmara a partir de 1832 e que a super-mortalidade nos bairros de trabalhadores do centro histórico da capital, demonstrada com base em dados estatísticos, era explicada, segundo os higienistas, pela insalubridade dos domicílios, responsável pelo aparecimento e proliferação dos miasmas”. A segunda epidemia, em 1849, justifica essa posição, pois a mortalidade continuava a atingir níveis superiores à média nos bairros populares, mas havia diminuído no centro histórico, onde havia sido feita a demolição das moradias consideradas insalubres. Registra Le Mée que “a relação epidemia/moradias insalubres foi então confirmada nos bairros do sudeste, onde persistiam os casebres – a geografia do cólera se confundia com aquela da pobreza. A higiene pública foi então reconhecida, o que permitiu a promulgação de uma lei sobre a salubridade das moradias. A luta travada, particularmente contra os casebres, ganhou uma dimensão política, a serviço de um novo urbanismo”.

A fundamentação desse urbanismo higienista continuou baseada numa ilusão médica, continuou sendo a guerra contra os miasmas, pois, como relata Thierry Paquot, “essa luta obsessiva contra a corrupção do ar está presente entre os utopistas do século XIX”, e não se dissipou até o final daquele período. Relata ainda René Le Mée que as descobertas de Louis Pasteur e Robert Koch, que levaram ao desenvolvimento da Teoria microbiana da doença (1870), “mostram, na realidade, que as epidemias não flutuam no ar como imaginava Hipócrates, mas que elas são ligadas a agentes infecciosos que se transmitem, na maioria das vezes, através de contatos”. Os trabalhos de Pasteur e de Koch, no fim do século XIX, não reverteram de vez a teoria dos miasmas, dominante depois de um século. A descoberta do bacilo da tuberculose não muda a forma de lutar contra a doença: compreende-se à época que a tuberculose era causada por um bacilo, mas constata-se também que ela se multiplica melhor nos locais úmidos e escuros, o que traz novo recorte à teoria dos miasmas. Os responsáveis pelo poder público compreendem que “é preciso alargar ruas, abrir janelas nos apartamentos e destruir os imóveis ditos mortíferos, que abrigavam um número elevado de casos de tuberculose”.

O medo da tuberculose inspirou o surgimento de um higienismo funcionalista , segundo Albert Lévy, “ainda mais radical do que aquele de Haussmann”e fez surgirem modelos urbanos dominantes até os anos 1960. Surge também a arquitetura clínica, que acredita no poder bactericida do sol e que tem no renomado arquiteto francês Le Corbusier a sua maior expressão. Registra Thierry Paquot que “ar e luz são as palavras-chave desse arquiteto, sendo conhecidas as suas relações de amizade com médicos eugenistas e a atração por uma autoridade que controle a saúde como controlaria o corpo e os sentidos de alguém”. Segundo Le Corbusier,”Para que um habitat favoreça a saúde e combata as doenças, notadamente a tuberculose, é preciso construir sobre pilotis para se distanciar dos solos poluídos ou mal cheirosos, prever grandes aberturas envidraçadas para fazer entrar a claridade, e instalar varandas ensolaradas para se aerar”.

Esse entrelaçamento entre arquitetura e urbanismo, e saúde, foi quebrado, a partir dos anos 1960, pelos avanços extraordinários da Medicina e por uma progressiva e quase que universal passagem à chamada transição epidemiológica, condição em que velhos e novos problemas de saúde coexistem – a persistência de doenças transmissíveis e o progressivo predomínio das doenças crônico-degenerativas.

A reaproximação entre arquitetura e urbanismo, e saúde, estimulada pela crise ecológica global sugere que as lições aprendidas em comum no enfrentamento do desequilíbrio climático possam revelar-se úteis no combate a pandemias como a da COVID-19, que pegou o mundo despreparado para essa luta. A extrapolação dessas novas concepções foi tratada em publicações recentes da pesquisadora Anne Roué Le-Gall, da École de Hautes Études de Santé Publique. Em artigo recente a pesquisadora, enquanto revela-se cautelosa com a discussão sobre possíveis origens e causas do novo coronavírus, observa que as epidemias são, com frequência, também resultantes de um desequilíbrio ambiental.

A tese é confirmada pela jornalista Sônia Shah (The Nation -18.02.2020; Le Monde Diplomatique– 05.07.2020), autora dos livros Tracking Contagion from Cholera to Ebola and Beyond e The Next Migration: The Beauty and Terror of Life on the Move, que reforça a contribuição do desmatamento, bem como dos perigos de intensificação da industrialização, do despejo de dejetos, vísceras e carcaças de animais - todas essas condições, de uma maneira ou outra contribuem para mutações de micro-organismos. A jornalista faz referência ao programa PREDICT, cujos pesquisadores já identificaram mais de 900 vírus ligados às marcas deixadas pelo homem nas agressões ao planeta. Esse programa foi interrompido pelo governo de Donald Trump. Como indica o epidemiologista Larry Brilliant, “a emergência dos vírus são inevitáveis, não as epidemias”.

“O trauma das epidemias, como a gripe espanhola ou a febre tifoide desapareceu do imaginário popular, mas as cidades lembram”, é o que atesta o jornalista Michel Safi, no artigo “Coronavirus will reshape our cities – we just don’t know how yet”, publicado na edição do The Guardian, de 22 de junho último. As cidades evoluíram ao longo dos séculos segundo teorias de combate às doenças, o que faz com que o legado da COVID-19 já seja motivo de amplo debate, que depende da resposta sobre o entendimento de como o vírus se espalha e como provoca o adoecimento das pessoas. Segundo Roger Keil, professor de estudos ambientais naToronto’s York University, “nós não temos essas respostas, mas, uma vez tornadas mais claras, levarão planejadores urbanos a pensar como seus predecessores há cem anos atrás, quando instalaram tubulações de esgotos e limparam partes das cidades consideradas insalubres”.

Algumas mudanças já começaram a tomar forma em cidades como Bogotá, Paris e Budapeste, que aproveitam a ocasião para instalar grandes redes de ciclovias, enquanto Atenas aumenta as suas calçadas e espaços públicos e Melbourne investe na criação de bairros auto-suficientes. Há quem aposte que “a grande inovação na infraestrutura sanitária surgida na trilha da COVID-19 será digital, sob forma, por exemplo, da tecnologia de vigilância utilizada por cidades como Seoul e Cingapura para acompanhar o deslocamento de pessoas infectadas e advertir aquelas com quem tiveram contato”, como exemplifica Michel Acuto, professor de política urbana global na Universidade de Melbourne. Sentencia ele que “nas megas cidades da futuro a vida será menos privada que jamais”. É possível que surjam migrações das grandes cidades, mas elas não perderam sua importância, apesar do desafio de reorganizar a economia e o mundo do trabalho, certamente em moldes diferentes dos atuais, em que as cidades cresceram sem condições de dar apoio aos seus moradores.

Se o coronavírus deixou alguma coisa clara, esse é o fato de que “as cidades não podem ser melhoradas se não insistirem em corrigir as desigualdades sociais, econômicas e ambientais que tornaram a pandemia mais mortal para residentes não brancos e de baixa renda”, escreve a jornalista Alicia Walker no seu artigo “Coronavírus is not fuel for urbanist fantasies. This moment should be about reassessing our broken cities”, publicado na edição do The Guardian de 20 de maio último.l

A conexão entre densidade populacional e pandemia não foi até o momento demonstrada. Recentemente, a cidade de Toronto liberou um relatório de evolução do contágio por bairro desde o início da pandemia até os dias atuais. Para verificar se havia uma ligação entre a pandemia e a densidade populacional, o colunista Matt Elliot, do The Star, comparou os dados das 30 áreas com maior renda per capita com as 30 de menor renda. A densidade populacional nos dois grupos foi praticamente idêntica – as áreas mais atingidas tinham, em média, 6.075 residentes por quilômetro quadrado (km2) e as menos atingidas tinham 6.029 habitantes/km2, portanto, sem diferença estatisticamente significativa. No entanto, enfatiza Matt Elliot, “os 39 bairros com maior número de casos per capita tinha uma renda média de 58.340 dólares canadenses por domicílio, enquanto que os bairros com menor prevalência da doença tinham renda domiciliar de 82.260 dólares canadenses”, o que o leva a afirmar que “A pandemia é mais uma história sobre pobreza do que sobre densidade populacional. Os dados da cidade sugerem que 8% das pessoas foram desproporcionalmente impactadas pela pandemia. São os bairros de trabalhadores – muitos deles localizados em subúrbios mais interiorizados, com trabalhos precários, longos deslocamentos e domicílios abaixo do padrão que têm sido expostos a um maior risco.”. Segundo Elliot, “Isso deve iluminar o caminho a ser seguido pelos governos municipais, provinciais e federal. O ataque à iniquidade e à pobreza deve ser uma prioridade pós-pandemia. A pandemia não nos deve levar a repensar a vida urbana. Ela deve nos impulsionar a pôr um fim à pobreza.”.

Tese semelhante é defendia pelo Planetizen, portal de notícias de Los Angeles, California, dedicado à discussão de temas sobre planejamento urbano, mobilidade e vários campos relacionados. O seu editor, James Brassuell, denuncia: “Sempre foi previsível que as populações mais vulneráveis sofreriam as maiores angústias econômicas durante a pandemia. Talvez retrospectivamente teria sido facilmente previsível que os maiores impactos seriam sentidos nas comunidades negras e latinas. Talvez, se isso houvesse sido previsto no terceiro mês dessa trágica crise sanitária, a discussão sobre planejamento urbano teria sido quase que completamente focada num acordo de contas sobre o racismo institucional, estrutural e sistêmico. Talvez sem a confluência dessas múltiplas crises, o sistema não tivesse sido obrigado a confrontar-se com os modos correntes com que iniquidade e discriminação são perpetuados”.

Antes de discorrermos de modo mais dirigido sobre as ideias de um urbanismo pós-COVID19, diante dessas constatações dos impactos de determinantes socioeconômicos na pandemia, vale a pena debruçarmo-nos um pouco sobre a grave situação do Brasil, onde universalizar saneamento é um desafio urgente há décadas, sem perspectiva de materialização no governo atual. Cerca de 100 milhões de brasileiros ainda vivem sem serviço de esgoto e 35 milhões sem abastecimento de água adequado, dos quais 12 milhões em regiões metropolitanas. Segundo dados do IBGE e do IPEA existiam, em 2010, 101.854 pessoas em situação de rua e 11,4 milhões vivendo nas 6.329 favelas localizadas em 323 dos 5565 municípios brasileiros (IBGE, 2010). Essa condição precária, que historicamente sempre contribuiu para a mortalidade infantil que ainda nos aflige, torna-se ainda mais grave com a chegada da pandemia pelo coronavírus.

Um comunicado do Instituto Superior de Saúde da Itália mostra que o novo coronavírus já estava presente nas águas residenciais das cidades de Milão e Turim dois meses antes do registro oficial do primeiro paciente com COVID-19. Revelações semelhantes foram feitas por estudos realizados também pela China, Espanha, Holanda e, mais recentemente, Brasil. No Brasil os achados não são diferentes: comunicado da FIOCRUZ, conjuntamente com a Prefeitura de Niterói, mostrou a presença do coronavírus em 85% das amostras de águas de esgotos analisadas. Estudo da Universidade Federal de Santa Catarina, divulgado mais recentemente, afirma ter identificado partículas do SARS-CoV2 em duas amostras de 27 de novembro de 2019, o que configuraria a detecção mais precoce da presença do vírus na América. Todos esses dados sugerem que o novo coronavírus já circulava antes mesmo de termos ciência sobre a sua ocorrência em pacientes sintomáticos ou assintomáticos. Embora a transmissão da COVID-19 se dê essencialmente por via respiratória, o acompanhamento de análises de águas de domicílios e de esgotos pode, no mínimo, contribuir como mais um indicador para o monitoramento da pandemia.

Desde que a COVID-19 tornou-se uma crise de saúde global, cidades e cidadãos do mundo inteiro têm testemunhado e vivido na pele a experiência de uma crise também urbana, que impõe um repensar sobre a vida nas cidades e também sobre o modo como recursos públicos e privados são usados para responder aos desafios sociais e econômicos que a pandemia trouxe a nu.

Um dos mais importantes nichos do pensamento urbanista é representado pelo coletivo CITIESTOBE, de Barcelona, uma plataforma que reúne arquitetos e especialistas de vários países para discutir a agenda do urbanismo. As contribuições trazidas pelo coletivo, por sua qualidade e abrangência, orientam a parte final deste artigo.

As cidades, onde são gerados mais de 80% do produto doméstico bruto do mundo, defrontam-se com uma crise econômica sem precedentes, causada em grande parte pela ruptura nas cadeias de produção e fornecimento ocorrida na maioria dos negócios. Entre as tendências que dominarão o futuro da economia urbana, o coletivo aponta em primeiro lugar o comércio virtual (e-commerce) como única alternativa para sobrevivência dos negócios locais. Em seguida, o teletrabalho é mostrado como uma tendência em crescimento, em especial para o setor de serviços, trazendo sinais externos positivos, como a redução no congestionamento do tráfego e da poluição. A mudança nos padrões de consumo, traduzida pelo uso de serviços de entrega (delivery) e compras online, parece ser uma tendência duradoura, em especial pelas expectativas de longa duração dos efeitos da pandemia. A crise trouxe também uma mudança no padrão clássico de produção e consumo, criando a chamada economia circular, que consiste no repensar, redesenhar e reusar procedimentos, a propriedade intelectual e componentes para fins inteiramente novos. A economia da experiência virtual, por meio da Realidade Aumentada ou da Realidade Virtual deve trazer novas oportunidades para negócios bem estabelecidos como o turismo, um dos mais afetados, com a assimilação de tours virtuais e para o setor do comércio de varejo. A indústria da hospedagem (hotelaria) caminha para uma certificação sanitária da condição COVID-free, o que levará o setor a investir em tecnologia para incrementar o uso de dispositivos no touch (acionamento remoto), a aconselhar-se com especialistas em saúde e a proteger seus empregados. A corrida pela tecnologia e transformação digital só aumentará, e a crise atual acelerará, sem dúvida, mudanças que já estavam em curso.

O caminho para um futuro digital já começou a ser construído. O melhor exemplo é a necessidade urgente das cidades avaliarem sua capacidade tecnológica digital e implementar soluções para o controle de todos os níveis de resposta à crise da COVID-19. Assim, a crise tem sido um acelerador da digitalização de serviços públicos. O modelo das cidades inteligentes, sobre o que discorreremos à frente, até então em voga, terá que ser repensado.

O manejo da pandemia deixou clara a necessidade de fortalecer mecanismos estatísticos e modelagem de dados, que serão indicadores da governança e controle democrático da informação. A implementação de diversas respostas digitais – inteligência artificial, aplicativos sobre mobilidade, reconhecimento facial, necessita de uma avaliação sobre o impacto da tecnologia sobre a privacidade e os direitos digitais. Uma grande capacidade de inovação e empreendedorismo será necessária para pôr em prática soluções criativas. Em um mundo em que teletrabalho, educação online ou telesaúde vêm se tornando a norma, é necessário um grande esforço para eliminar o fosso existente no acesso digital dos grupos mais vulneráveis. As chamadas tecnologias cívicas precisam ser direcionadas para uma melhor compreensão do funcionamento das estratégias a serviço dos ecossistemas e de uma sociedade digital. A variedade no comportamento das curvas do coronavírus deixou clara a necessidade de melhor planejamento e otimização da organização da informação. Isso se aplica ao modo de trabalho das cidades, aos serviços públicos, à interação entre administração pública e cidadãos, à nossa rotina diária, bem como à transformação interna das companhias e o repensar dos seus planos futuros.

No que diz respeito ao objeto central deste artigo, as consequências sociais da COVID-19 trouxeram mudanças nas relações humanas e nos espaços ocupados. Os espaços urbanos terão que reajustar o seu desenho e as suas infraestruturas a essa nova realidade. Reabrindo o debate sobre o modelo preferível de cidade, espaçamento urbano ou densificação urbana, as cidades, especialmente as mais densas, terão que criar e adaptar espaços públicos e infraestrutura para que sejam harmônicas, seguras, ágeis e adaptáveis. Surge aí a importância do urbanismo tático – curto prazo, baixo custo e intervenções em escala, tudo isso com o envolvimento da comunidade. A ambientação de espaços urbanos a novas necessidades, que envolvem transporte público, lazer, lojas, etc. terá que atender a medidas preventivas, com regras mais rigorosas para espaços fechados, normas e medidas mais rígidas de limpeza, uso de equipamentos de proteção, mais acesso controlado, tudo para atender às regras de isolamento social. Fica claro que o desenho de ambientes internos precisará ser mudado; os domicílios, acomodados para uso mais diversificado e, sobretudo, melhoradas as condições de moradia das pessoas em vulnerabilidade social, tudo isso para favorecer um gasto maior de tempo em casa. O monitoramento e controle da mobilidade local e internacional imporá novas rotinas e novos comportamentos sociais, sem esquecer dos fortes efeitos psicológicos das regras de isolamento e distanciamento social. A mudança de um padrão de vida social externa para uma vida mais reclusa é uma oportunidade para o desenvolvimento de novas tecnologias, mas, certamente, ampliará a iniquidade, sendo essencial criar regulações que promovam a inclusão social. A construção de comunidades mais resilientes precisa levar em conta que, com o fim dos lockdowns, os problemas socioeconômicos estruturais revelados pelo coronavírus persistirão, fazendo-se necessário fortalecer a assistência aos idosos, proteger trabalhadores temporários, cuidadores e empregados domésticos, bem como ajudar os pais a reconciliar a sua vida pessoal e profissional. Essa necessidade de mais disciplina e de novas regulamentações poderá levar a uma situação de forte controle social, onde faz-se necessário encontrar um equilíbrio entre o estabelecimento de segurança, saúde e bem estar para todos, conservando o respeito à liberdade individual e coletiva.

A necessidade de fortalecer a sustentabilidade local fará reemergir o debate entre apoiadores da luta contra as mudanças climáticas e os promotores de uma rápida recuperação socioeconômica. O planejamento urbano também precisará evoluir de uma estratégia reativa às emergências para uma preparação proativa com compreensão para entender a intercorrelação setorial, o que possibilitará desenhos urbanos adequados, plataformas de dados mais qualificados que possam capturar informações críticas para fortalecer o discurso da resiliência. Igualmente crítica é a necessidade de repensar estruturas urbanas que favoreçam modos de transporte ativo – bicicletas, caminhadas, e de maior oferta de transportes públicos. A agenda dos Objetivos Sustentáveis do Milênio ganhará importância como único caminho factível para um futuro viável e de recuperação. A redução das emissões de carbono deverá ser perseguida com mudanças e adaptações das edificações, juntamente com a adoção de medidas de mobilidade sustentáveis. O avanço da agenda climática apresenta uma oportunidade estratégica de transição para cidades mais sustentáveis e o incentivo a uma economia circular e regenerativa. A crise atual tem demonstrado que iniciativas de apoio ao meio ambiente e iniciativas resilientes rumo à descarbonização da economia e à sustentabilidade urbana representam uma oportunidade que necessitará “etapas curtas tomadas com visão de longo prazo e pensamento crítico” para chegar às cidades que desejamos.

Os espaços educacionais também sofrerão transformações para aumentar a porosidade entre a escola e o território. Deverá emergir uma conjunção de escolas – a escola aberta, a escola da vida, a escola do bem-estar, a escola do fazer. Descentralizar o espaço do saber e do conhecimento e abri-lo a novos usos; combinar espaço físico e espaço virtual; espaços e atividades que favoreçam a saúde e aprendizagem cidadã são alguns princípios que permitirão forjar uma geração mais consciente de sua responsabilidade com o mundo.

Como declara em seu sítio virtual o projeto espanhol OPENCities, que ajuda cidades a serem mais abertas e competentes, “nenhuma cidade é grande o suficiente para enfrentar uma pandemia sozinha”. Em artigo publicado em sua página pelos colaboradores Pilar Conesa, Marta Galceran, Sergio García i Rodríguez e Albert Tapia, são apresentadas razões pelas quais a cooperação entre metrópoles e a aliança entre cidades são fatores-chave para “um futuro pós-pandemia de resiliência”.A comunicação entre networks internacionais e relações entre cidades têm sido importantes para compartilhamento do conhecimento e de soluções, e mostram que “a internacionalização das cidades é um instrumento que vai além do simbolismo”. A união de cidades tem possibilitado, em várias partes do mundo, o desbloqueio de fundos, mais equilíbrio na resposta à crise econômica e tem feito ecoar o apelo de uma solidariedade norte-sul. A visão global de problemas comuns enfrentados na pandemia, como mobilidade, manejo de lixo e resíduos, provisão de serviços básicos, tem contribuído para melhor gestão das cidades na crise sanitária. A incorporação de soluções sistêmicas para mobilidade nas metrópoles, de sistemas de distribuição compartilhada entre empresas tem se ampliado no cenário da pandemia. A aliança com outros atores ganha maior dimensão, como na liderança da Organização Mundial da Saúde no enfrentamento da pandemia, que tem sido fortalecida pela diplomacia científica estratégica e minimamente abalada pela posição de governos que marcham na contramão da fraternidade global, como os governos de Donald Trump e de Jair Bolsonaro.

A pandemia exacerba a divisão urbana que resultou em um fracasso a longo prazo para abordar iniquidades fundamentais e garantir direitos humanos básicos. A resposta pós-COVID-19 vai exigir que essas falhas sejam revistas e que os moradores das cidades tenham acesso aos serviços fundamentais, especialmente assistência à saúde e moradia, de modo a assegurar que todas as pessoas possam viver com dignidade e estar preparadas para a próxima crise global.

(*) Médico, professor da Faculdade de Medicina e ex-Reitor da Universidade Federal do Ceará – UFC
(**) Estudante do Curso de Ciências Sociais da UFC