Artigo do biólogo, professor e pesquisador do Museu Nacional Marcos Raposo para o grupo Terapia Política discute volta às aulas no meio da pandemia.
Desde a detecção dos primeiros casos da Covid-19 no Brasil, temos publicado textos explorando diferentes facetas do problema. Abordamos a questão matemática ligada à progressão da doença* e a questão psicológica associada ao comportamento quase infantil da nossa sociedade ao ignorar os avisos de especialistas no assunto*. Agora, entretanto, a aposta negacionista das autoridades aponta seus canhões na direção de nossas crianças, em uma postura que deve ser veementemente repudiada em todas as esferas (municipal, estadual e federal). Se for levada adiante, tal medida poderá provocar rupturas e traumas insuperáveis em nossa sociedade.
Neste texto, queremos discutir, da maneira mais simples e direta possível, o que está por trás da inaceitável tentativa das autoridades de marcarem a volta às aulas do ensino público e privado em plena escalada do número de casos de infectados pelo coronavírus. Discutimos também alguns dos possíveis desdobramentos caso a abertura das escolas seja, de fato, implementada. Os dados aqui apresentados são aqueles oficialmente publicados pelo Ministério da Saúde e pelo CONASS.
Fazendo um rápido resumo, no Brasil, a Covid-19 já matou 55 mil pessoas e não se cansa de bater recordes. A gravidade da questão pode ser mais bem vista quando consultamos os dados e vemos que há 30 dias nós tínhamos cerca de 15 mil novos casos por dia. Hoje, relacionam-se diretamente a esses números as mais de 1000 mortes diárias, enquanto o número de novos casos por dia subiu para 45 mil. O que vocês acham que estará acontecendo daqui a um mês, ou seja, no final de julho?
Didático também é relembrar que, no dia 16 de março, a UFRJ, onde trabalho, suspendia as aulas presenciais juntamente com boa parte das demais universidades e escolas. Tal medida era necessária uma vez que, indo às aulas, crianças, adolescentes e jovens em geral, além de colocarem a sua saúde em risco, se tornariam um veículo poderoso de disseminação da doença.
Na ocasião, tínhamos cerca de 40 casos novos da doença por dia. Veja, não eram 40 mortes. Eram 40 novos casos de pessoas testadas positivo para o vírus. Mais precisamente, no referido dia 16 de março, 34 casos novos foram oficialmente notificados no Brasil. Hoje, três meses depois, temos mil vezes mais casos novos aparecendo diariamente e as autoridades discutem a volta às aulas. Qual o sentido disso? Com 40 casos diários nós fechamos e com 40 mil nós abrimos? As crianças não correm mais risco? Pais e avós deixaram de estar mais expostos às crianças? Elas deixaram de ser portais de disseminação? Em São Paulo, que bate recordes diários de mortes e que está flexibilizando as medidas de confinamento, estipula-se setembro como o momento em que serão reabertas as escolas.
Entretanto, se analisarmos os dados acima, no final de agosto, teremos muita “sorte” se não estivermos perdendo três mil vidas por dia. Isso equivale a uma tragédia igual à do atentado às torres gêmeas todos os dias! São 100 ônibus lotados de gente morrendo diariamente e desnecessariamente, mas, de repente, parece que normalizamos isso. Abrir as escolas nesse momento seria dar um tiro de misericórdia na sociedade.
Sobre o coronavírus, nós já sabemos que ele é extremamente contagioso. A Escola Preparatória de Cadetes do Ar, em Barbacena, Minas Gerais, exemplifica bem isso. Ela optou por desafiar o vírus e manter parte de suas atividades, com resultados absolutamente previsíveis. De um total de 507 alunos, mais de 200 contraíram o vírus. Considerando que a cidade de Barbacena, na época, não tinha chegado aos 300 casos, não fica difícil imaginar a importância potencial desses casos na disseminação da doença na cidade. Os pais sabiam desse risco? Sobre o contágio em ambientes fechados, ele foi também experimentado por grandes frigoríficos que enfrentaram vários surtos tanto no Brasil quanto na Europa e Estados Unidos.
Claro, assim como está ocorrendo na Alemanha, as escolas brasileiras, seguramente, tentarão reabrir respeitando a distância de dois metros, usando máscaras, reduzindo a densidade a um terço do número de alunos, fazendo sistema de rodízio e usando todas as medidas de higienização possíveis. Infelizmente, entretanto, a pergunta apropriada neste momento seria: alguém que conheça as escolas Brasil afora e o nível da educação e engajamento do brasileiro médio acreditaria na viabilidade disso? Mesmo em um cenário quase fantasioso, onde as pessoas fossem extremamente educadas e disciplinadas, tais medidas não necessariamente funcionariam de modo a evitar que escolas se tornassem polos dispersores do vírus (já há mais de 70 casos de crianças infectadas em escolas francesas após o retorno às aulas).
Então chegamos ao ponto. Diante de uma iminente tragédia humanitária, com falta de remédios, leitos, covas, médicos, enfermeiros etc., o que justificaria o empenho de autoridades em piorar as coisas?
Antes de tentar dar uma explicação para essa estranha atitude, ousamos dar logo uma solução ao problema. E o interessante é que a solução está na raiz do problema, quase sendo a sua causa. A solução simples é admitir que o ano letivo está perdido. Consideremos que todos os alunos repetirão o ano corrente em 2021. Sem mistério. Ninguém passa de ano. Acreditem, essa é a única solução justa e eficiente.
Estando a solução dada, agora sim, apresentamos as duas maneiras de explicar a resistência brutal de nossa sociedade a perder um ano escolar. São duas linhas de pensamento equivocadas que convergem alegremente sobre um terreno arado e semeado por uma sociedade meritocrática, produtivista e idólatra da austeridade econômica, com uma classe política que tem uma enorme resistência a devolver o dinheiro de nossos impostos ao cidadão, algo fundamental neste momento.
A primeira explicação é o fetichismo que desenvolvemos em relação ao desempenho escolar, algo como um produtivismo na formação. Escolas são boas, não se questiona isso, mas as vidas parecem mais importantes, ou não? De que serviria a educação em um corpo sem vida ou, pior, em uma vida que não valorizasse as vidas que viesse a infectar e sacrificar? Ouvi mais de uma vez uma frase que me assustou: “Uma geração perdida com essa pandemia”, e não estavam se referindo aos idosos. Essa infeliz frase, de tão repetida, foi parar na propaganda promovida pelo MEC que dizia respeito à manutenção do calendário do ENEM. Um esclarecimento sobre isso torna-se, então, necessário. Não é uma geração perdida, é um ano perdido, e não o ano todo, somente o ano escolar. Algumas crianças tiveram anos muito mais felizes do que se estivessem em sala de aula. Sim, é péssimo repetir o ano por força maior. Ninguém contesta isso, mas drama maior será ter um milhão de mortes no Brasil em decorrência de desleixo no trato da pandemia. Estamos em guerra, perder um ano é um efeito colateral perfeitamente contornável. Basta trazer a sociedade para a discussão e estabelecer uma estratégia séria.
Fica fácil imaginar a reação negativa de pais e mães ao lerem estas palavras. Mas, cada mãe e pai deve se perguntar: saúde ou escola? Essa coisa de “perder um ano” como sendo o fim do mundo tem que ser mais bem entendida e, talvez, o caminho seja entendê-la como um processo perverso de fetichização do ano letivo, como se a criança fosse, de fato, uma peça numa linha de montagem. Veja, o fetiche é a passagem de ano, não o aprendizado, algo totalmente irrelevante, aparentemente.
Aproveito então o gancho deixado acima para introduzir a segunda causa que se esconde por trás da neurose que conduz autoridades a sacrificarem nossas vidas de maneira tão despropositada. A causa financeira (de curtos prazo e visão). Ela faz com que professores improvisem aulas a distância e que finjam, sinceramente, estar ensinando, enquanto alunos, diante da TV ou da tela de seus “tablets”, se empenham em fingir que aprendem. Veja, existe uma grande diferença entre, de um lado, ensino a distância com anos de planejamento, professores treinados e uma rede de matérias apropriadamente ajustada para tal e, de outro, um ensino a distância improvisado na marra e às pressas. Pais viram professores, escolas dão 5% de desconto, irmãos se revezam diante das telas e tudo segue aos trancos e barrancos como se daqui a um ou dois meses todos estivessem voltando às aulas presenciais.
Em suma, as autoridades, que são bem melhor assessoradas sobre a Covid-19 do que nós, dizem que as aulas vão voltar em julho, agosto ou setembro, sem ter a menor intenção de fazê-lo (esperamos!), mas para garantir a sobrevida de escolas e universidades particulares. Essas permanecerão fingindo que estão conseguindo passar o conteúdo a distância pela compreensível razão de que necessitam das mensalidades pagas por alunos. No final do ano, quando se perceber que ninguém aprendeu nada, empurra-se o aluno para o ano seguinte e se garante a felicidade de todos, inclusive daqueles pais que só se preocupam com o diploma de seus filhos. Caberá aos demais pais, a sensação, muito bem embasada, de que foram, o tempo todo, enganados.
Concluo este texto pedindo que cada leitor se coloque no lugar de pai ou mãe em uma situação como a que se apresenta. Escolas abrindo em plena pandemia e seu filho sendo obrigado a assistir aulas, pegar transporte público, etc. Convido cada um, também, a se colocar na pele de um aluno que tem pai hipertenso e mãe diabética ao saber que está expondo seus pais ao risco de morte: ponho em risco a vida de meus pais ou perco o ano letivo? Coloque-se na situação dos milhares de pais que têm filhos com bronquite, asma, diabetes ou quaisquer outras condições que os coloquem como grupo de risco. E não precisamos falar de um eventual e justificável conflito entre pais e filhos que pensem diferente ou mesmo no potencial atrito entre os pais mais conscienciosos e aqueles menos informados. Nossos governantes jamais poderiam cogitar colocar seus cidadãos nessa posição.
* Ver em “Hora de entrar em pânico” e “Ciência, negacionismo, Schopenhauer e Covid-19″