Por Dani Rodrik e Stefanie Stantcheva publicado no The Project Syndicate (em inglês)
Tradução de Julia Felmanas
A Covid-19 exacerbou profundamente as fissuras da economia global, expondo as divisões e desigualdades do nosso mundo atual. Também multiplicou e amplificou as vozes daqueles que pedem reformas radicais. Quando até o grupo de Davos pede uma "reconfiguração global do capitalismo", sabemos que as mudanças estão a caminho.
Há algumas linhas comuns nestas agendas políticas que estão sendo propostas: para preparar a força de trabalho para as novas tecnologias, os governos precisam melhorar a educação e programas de capacitação e adaptá-los de maneira mais apropriada aos requisitos do mercado de trabalho. A proteção e o seguro social precisam ser melhorados, especialmente para os trabalhadores da gig economy (economia de bicos) e os informais.
De forma mais abrangente, o declínio do poder de barganha dos trabalhadores nas recentes décadas implica na necessidade de novas formas de diálogo social e cooperação entre trabalhadores e empresas. É necessario implantar um programa mais bem concebido de tributação para lidar com a crescente desigualdade de renda. É preciso fortalecer as politicas anti-monopólio para garantir maior concorrência, especialmente em relação às plataformas de mídia e as novas tecnologias. É necessário enfrentar diretamente as mudanças climáticas. Os governos precisam ter um papel mais ativo no fomento das novas tecnologias digitais e das techologias verdes.
Juntas, estas reformas mudariam significativamente a maneira como as economias operam. Mas elas não alterariam fundamentalmente as narrativas sobre como as economias de mercado devem funcionar, como também não representariam um distanciamento radical da política econômica tradicional. Mais importante, elas continuariam a deixar de lado o desafio principal: a reorganização da produção.
Os problemas econômicos mais centrais - a pobreza, a desigualdade, a exclusão e a insegurança - têm várias origens. Mas são reproduzidas e reforçadas no dia a dia da produção. Estes problemas são os efeitos colaterais imediatos das decisões das empresas sobre o emprego, o investimento e a inovação.
Na linguagem econômica, estas decisões estão cheias de "externalidades": elas têm consequências que afetam as pessoas, empresas e outras partes da economia. As externalidades podem ser positivas: pense no aprendizado possível destas repercussões através de pesquisas e desenvolvimento, que são bem reconhecidas (e fundamentam a lógica dos créditos tributários e outros subsídios públicos). As mais óbvias externalidades negativas são a poluição ambiental e os efeitos das emisões de gás de estufa no clima.
Estas repercussões também incluem o que se chamaria de externalidades dos "empregos de qualidade". Os "empregos de qualidade" são aqueles que são relativamente estáveis, bem pagos o suficiente para sustentar um padrão de vida razoável, com segurança e que proporcionam a possibilidade de poupar, garantem condições seguras de trabalho e oferecem oportunidades de progressão da carreira. As empresas que geram este tipo de emprego contribuem para a vitalidade de suas comunidades.
Por outro lado, a falta de empregos de qualidade muitas vezes tem altos custos sociais e políticos: a destruição das famílias, o abuso de drogas e a criminalidade, como também o declínio da confiança nos governos, nos especialistas e nas institutições e acarretam na polarização partidária e no nacionalismo populista. Há também as ineficiências econômicas: as tecnologias que aumentam a produtividade se restringem a poucas empresas e contribuem ao crescimento anêmico geral dos salários.
As decisões das empresas sobre quantas pessoas empregar, o quanto pagar e como organizar o trabalho não só afetam o seu lucro interno. Quando uma firma decide automatizar sua linha de produção ou terceirizar a produção a outro país, a comunidade local sofre danos a longo prazo que não são "internalizados" pelos diretores ou acionistas da empresa.
A suposição implícita por detrás deste pensamento, como também do modelo tradicional do estado de bem-estar social, é que os empregos de qualidade das classes médias estarão disponíveis para todos que tiverem competências adequadas. Deste ponto de vista, a estratégia correta para fomentar a inclusão seria combinar os gastos em educação e capacitação, um sistema progressivo de tributação e transferência com o seguro social contra riscos idiosincráticos como o desemprego, as doenças e as deficiências.
Porém, atualmente, a insegurança econômica e a desigualdade são problemas estruturais. As tendências da tecnologia e globalização estão esvaziando a distribuição de empregos. O resultado são empregos de má qualidade que não oferecem estabilidade, recursos financeiros suficientes ou progressão de carreira e deprimem permanentemente os mercados de trabalho fora dos maiores centros metropolitanos.
Enfrentar estes problemas requer estratégias diferentes que abordam diretamente a questão da criação de empregos de qualidade. O ônus da internalização das repercussões econômicas e sociais devem ficar com as empresas que as causam. Portanto, o setor produtivo deve estar no cerne da nova estratégia.
Claramente falando, precisamos mudar o que produzimos, a maneira que produzimos e as pessoas que fazem estas decisões. Isto requer não só novas políticas, mas também a reconfiguração das políticas existentes.
As políticas para o mercado de trabalho concebidas para aumentar as competências e a empregabilidade devem ser ampliadas em parcerias com as empresas e almejar explicitamente a criação de empregos de qualidade. As políticas regionais e industriais que atualmente estão no centro dos incentivos tributários e subsídios ao investimento devem ser substituidas por serviços e facilidades empresariais especificamente adaptados, que maximizam a criação de empregos.
Os sistemas nacionais de inovação precisam ser redesenhados para orientar os investimentos em novas tecnologias de maneira que elas sejam sejam favoráveis à manutenção de empregos. As políticas para combater as mudanças climáticas, como o 'Green Deal' Europeu, precisam estar explicitamente conectadas à criação de empregos nas comunidades excluidas.
Uma nova ordem econômica requer um quid pro quo explícito entre a iniciativa privada e os poder público. Para prosperar, as empresas precisam de uma força de trabalho confiável e qualificada, boa infraestrutura, um ecosistema de fornecedores e colaboradores com acesso fácil à tecnologia e um regime de contratos e direitos de propriedade adequados. A maioria destes elementos são fornecidos pela ação pública e coletiva que é o lado da barganha do governo.
Por outro lado, os governos precisam que a iniciativa privada internalize as várias externalidades produzidas pelas suas decisões sobre o trabalho, o investimento e a inovação nas comunidades e sociedades. A iniciativa privada precisa cumprir com o seu lado da barganha - não como uma questão de responsabilidade social corporativa, mas como parte de um quadro regulatório e de governança explícito.
Mais que isso, a nova estratégia precisa abandonar a separação tradicional entre as políticas pró-crescimento e as políticas sociais. Um crescimento econômico mais rápido requer a difusão das novas tecnologias e oportunidades de produção entre as pequenas empresas e segmentos mais amplos da força de trablaho e não mantê-las reservadas a pequena elite. Melhores perspectivas de emprego reduzem a desigualdade e a insegurança econômica de maneira mais eficiente que a redistribuição fiscal sozinha. De maneira sucinta, as agendas de crescimento e social são dois lados da mesma moeda.