Texto de Arnab Acharya para WIDER-UNU informa sobre o alto risco de os direitos de propriedade intelectual (PI) impedirem o acesso de significativa parcela da população a uma vacina de Covid-19 quando esta for desenvolvida. Tradução de Beatrice F-Weber.

Desenvolvimento e produção de uma vacina para COVID-19

Existe um alto risco de os direitos de propriedade intelectual (PI) impedirem o acesso de significativa parcela da população a uma vacina de COVID-19 . Para evitar essa situação, proponho que uma solução prática seria separar a fabricação da vacina de seu desenvolvimento, o que permitiria que a vacina fosse vendida a um preço próximo ao custo de sua produção. Embora seja necessária uma forte parceria público-privada para o desenvolvimento e a distribuição de uma vacina, os requisitos para sua disponibilização em grande escala serão facilitados se nenhuma empresa possuir direitos exclusivos de produção dessa vacina.

Os países em desenvolvimento e seus parceiros doadores já estão enfrentando sérios problemas ao lidar com a pandemia. No início de abril de 2020, o New York Times informou que a UNICEF só podia adquirir 28 milhões de máscaras, enquanto procurava comprar 240 milhões de máscaras. O relatório afirmou que tentaram vender máscaras vencidas a um preço cinco a dez vezes maiores do que o nível pré-crise para os países em desenvolvimento. Os testes para o vírus têm sido baixos nos países em desenvolvimento porque os reagentes químicos necessários não estão sendo disponibilizados para eles e há uma escassez de laboratórios para processar os testes.

Enquanto isso, líderes de países mais ricos fizeram contatos pessoais com executivos de fornecedores e garantiram seu próprio transporte para obter suprimentos. Um conjunto normalmente coerente de regras da cadeia de suprimentos "se transformou em exercícios de torção de braço", de acordo com um especialista.

Dada essa experiência recente com a compra de máscaras e reagentes químicos, os países em desenvolvimento poderiam não conseguir adquirir produtos farmacêuticos necessários para gerenciar o COVID-19, devido aos preços altos. Os problemas de precificação dos direitos de propriedade intelectual serão particularmente grandes para os países em desenvolvimento quando uma vacina for desenvolvida.

Por que os direitos de propriedade intelectual são um anátema para alcançar ampla cobertura vacinal?

Os direitos de PI, que desempenham um papel enorme na elevação dos preços dos produtos farmacêuticos em tempos normais, ainda irão desempenhar um papel importante durante essa pandemia. Os reagentes de teste foram modificados na Índia para desenvolver um kit de teste de US $ 14,00 (IN ₹ R $ 1.000), exigindo menor tempo de máquina e, assim, aumentando o número de testes. Métodos rápidos de teste de diagnóstico ou testes de triagem como o ELISA seriam bem-vindos aos países em desenvolvimento; testes agrupados como método de triagem estão tornando os testes mais baratos. Um método de tratamento proposto por meio do uso do remdesivir, produzido pela Gilead Sciences Inc. para o tratamento do Ebola, pode ser vendido por um preço baixo.

Enquanto não for encontrada uma vacina para o COVID-19, países ricos e pobres têm muito a temer do vírus. Uma vez desenvolvida a vacina, provavelmente nos países mais ricos, os incentivos para eliminar essa doença nos países mais pobres diminurão, pois aqueles que vivem nos países ricos estarão imunizados. Os incentivos diminuem ainda mais se o preço da vacina for alto. De acordo com as leis atuais, uma vacina desenvolvida para gerenciar o COVID-19 provavelmente terá direitos de PI - o que significa que o preço dessa vacina será alto, enquanto o volume de produção será baixo. Este é um problema que precisará ser resolvido agora, antes que a vacina seja desenvolvida.

Qual seria o custo da vacinação da população do mundo inteiro?

Michael Kremer, Prêmio Nobel de 2019, e outros cientistas observaram que, durante os primeiros anos da crise do HIV / AIDS, houve uma falha de mercado no desenvolvimento de uma vacina para prevenir a infecção pelo HIV. Uma razão importante para isso foi que, nos países mais ricos, havia grandes diferenciais no risco de contrair o HIV - apenas alguns apresentavam alto risco e, embora essas pessoas fossem numerosas no mundo, não possuíam muito poder de mercado. Em tal situação, argumentou-se que o desenvolvimento da vacina poderia ser catalisado através da compra garantida de grandes quantidades de vacina, uma vez desenvolvida sob os direitos de PI. A compra garantida ou o comprometimento avançado do mercado (AMC) induziriam o poder do mercado continuamente para atender às necessidades dos países em desenvolvimento e seria uma solução adequada em um caso no qual a demanda é relativamente pequena.

No caso do COVID-19, a demanda para a compra da vacina será tão alta quanto toda a população humana, ou muito próxima, digamos, de 80 a 90% precisará ser vacinada. A lista de preços do Centers for Disease Control (CDC) informa que, dependendo de quem compra a vacina, os preços variam de US $ 10 a US $ 225; A UNICEF adquire vacinas a custos mais baixos. Se o custo de uma vacina COVID-19 estivesse no limite superior da lista de preços do CDC, o custo para toda a população dos EUA seria de apenas US $ 100 bilhões, e para a Índia seria de US $ 300 bilhões - cinco vezes mais orçamento do setor público para a saúde. Seria necessário um pouco menos de US $ 2 trilhões para vacinar o mundo inteiro.

O papel que os governos desempenham no desenvolvimento da vacina não é insignificante

Pesquisas mostram que o custo do desenvolvimento de uma vacina para licenciamento leva em média mais de 10 anos para ser concluído e custa bilhões de dólares.

Os governos não têm desempenhado um grande papel no desenvolvimento de medicamentos desde os esforços dos EUA para desenvolver uma vacina contra a poliomielite no final dos anos 1940 e 50. Os governos, no entanto, ainda desempenham um papel importante - a maioria dos desenvolvimentos farmacêuticos nas últimas décadas recebeu algum financiamento de pesquisa do governo. Agora, os governos estão investindo pesadamente em uma vacina para COVID-19, pois as esperanças de passar do “novo normal” para pandêmico para a realidade pós COVID-19 depende essencialmente da imunização da população.

Por exemplo, o Congresso dos EUA já disponibilizou US $ 3 bilhões para o desenvolvimento da vacina para COVID-19 até agora em 2020.

Outra iniciativa que apoia todas as atividades médicas relacionadas ao COVID-19 em todo o mundo, incluindo uma vacina, é o Acelerador de Acesso às Ferramentas COVID-19 (ACT). O ACT é um consórcio organizado através da OMS, embora sem a participação dos EUA e da China, que arrecadou US $ 8 bilhões. Esse esforço é apoiado pela Coalizão de Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI), que apóia explicitamente o desenvolvimento e a distribuição de vacinas. Para otimizar resultados, pesquisa de Athey et al. (2020),  o ACT Accelerator apóia 15 a 20 candidatos à vacina para aumentar a probabilidade de sucesso. Existem 115 vacinas sendo exploradas desde de abril de 2020, incluindo as que estão sendo reaproveitadas para combater vírus semelhantes. O desenvolvimento da vacina para COVID-19 será caro, mas uma fração dos custos econômicos e humanos que ela induziu.

Subsídios financeiros de até US $ 1,2 bilhão foram concedidos pelo governo dos EUA à AstraZeneca para desenvolver uma vacina trabalhando com o Jenner Institute da Universidade de Oxford, que recebeu financiamento do CEPI, com o objetivo de fornecer 300 milhões de doses para os EUA. O governo dos EUA está seguindo a estratégia da AMC, mantendo intactos os direitos de propriedade intelectual. Separado ao acordo nos EUA, a AstraZeneca vem trabalhando com outras empresas, como o Serum Institute of India, para fabricar um bilhão adicional das mesmas vacinas. Essa é uma solução plausível para cobrir uma grande população, como a da Índia, e o aumento de capital para a produção em larga escala já está ocorrendo. Mas há incerteza sobre a eficácia dessa vacina e, além disso, não há clareza sobre que tipo de estrutura de preços podemos esperar. A um preço alto, muitos países serão deixados de fora.

Há quase tanta incerteza acerca da ampla distribuição da vacina em todo o mundo, quanto sobre se e quando a vacina será desenvolvida. O problema pode se agravar ainda mais se o desenvolvimento de uma vacina ocorrer por meio de um relacionamento exclusivo de laboratórios com a China ou os EUA, sem a participação de uma organização como o CEPI. Além dessa possibilidade, Lurie et al. (2020), autores com afiliação ao CEPI, observaram que não há entidade global responsável pelo financiamento ou organização da fabricação de vacinas. O envolvimento do CEPI não resultou no esclarecimento do papel dos direitos de propriedade intelectual.

Dada a necessidade de vacinar tantas pessoas, muitas das quais são pobres, é importante garantir agora que esta vacina terá um preço mais próximo do custo de sua produção.

Garantir a fabricação genérica de qualquer vacina para COVID-19 é essencial

Supondo que uma vacina viável seja desenvolvida no início de 2021, quais são as etapas que garantiriam a disponibilidade da vacina a bilhões de pessoas nos meses seguintes?

A mobilização de fundos públicos para o desenvolvimento de produtos farmacêuticos não produziu diretrizes claras de preços, mesmo quando a patente pertence essencialmente ao governo. É  o caso da venda de profilaxia pré-exposição ao HIV (PrEP) pela Gilead Sciences, que foi acusada em 2019 de exagerar seu papel no desenvolvimento do produto. A Gilead cobrou US $ 20.000 pelo uso anual do produto, enquanto o produto genérico semelhante não pôde ser vendido nos EUA pelo preço de US $ 60, devido aos esforços legais empreendidos pela Gilead.

No caso de uma vacina  para COVID-19, liberar a capacidade global para a produção de genéricos é muito necessária, como foi observado por outros autores.

A fabricação genérica de medicamentos pode dissociar o processo de produção do desenvolvimento do medicamento. Dado o envolvimento dos governos ao redor do mundo no desenvolvimento de uma vacina COVID-19, talvez a maneira mais rápida de disponibilizá-la seria simplesmente comprar os direitos de patente concedendo um prêmio ou prêmios por empreender o esforço para o desenvolvimento da vacina. Esse processo pode significar premiar a vacina bem-sucedida, concedendo prêmios de custo majorado. As colaborações internacionais permitirão esquemas de recuperação de custos, desde que estejam atentos à busca por rendas monopolistas, pois há informações assimétricas consideráveis ​​para o desenvolvedor. Com subsídio para recuperação de custos de desenvolvimento, não haveria concessão de direitos de PI.

Alguns fabricantes temem que mesmo um envolvimento governamental mínimo possa acabar com a perda de futuros direitos de propriedade intelectual. Mas o envolvimento dos governos não é menor durante essa pandemia. As empresas farmacêuticas podem ver uma oportunidade extraordinária para obter lucro durante esse período, portanto, têm o incentivo para apresentar para governos como imensurável as perdas decorrentes dessa concessão extraordinária dos direitos de propriedade. Mas, como o COVID-19 desafia toda normalidade, eu argumentaria fortemente que não estabelece precedentes para futuras quebras dos diretos de PI. Sugeriu-se que o envolvimento do governo deve ser imenso, no nível observado para o Projeto Manhattan.

A dissociação do desenvolvimento e produção da vacina resolverá problemas de produção rápida e acesso

Sem direitos de propriedade intelectual, a fabricação pode ocorrer independentemente do processo de pesquisa e desenvolvimento. A capacidade de fabricação pode ser construída agora antes de sabermos qual esforço de desenvolvimento da vacina terá êxito, pois o desenvolvedor da vacina não precisará ser o único produtor.

Essa dissociação entre fabricação e desenvolvimento permite: (1) concorrência para tornar o processo de produção mais eficiente em termos de recursos; (2) qualquer excesso de capacidade existente no processo de produção de medicamentos em todo o mundo pode ser utilizado; e (3) várias empresas podem produzir mais facilmente uma grande quantidade da vacina.

A proposta de Bill Gates para a construção de sete fábricas decorre da última observação. Um quarto fator centra-se no fato de que parte do potencial de fabricação que precisa ser construído agora pode se tornar redundante, dependendo das vacinas finalmente eficazes. Isso é muito risco para uma empresa absorver. A dissociação entre produção e desenvolvimento, em conjunto com o financiamento público, permite que capacidade ociosa seja usada por outro fim, ou que talvez nem seja utilizada.

Sob qualquer acordo de PI, como no sistema de premiação proposto aqui, os países mais ricos teriam que pagar pelo custo de desenvolvimento de seus próprios cidadãos à medida que a medicação fosse implementada. Com os custos de desenvolvimento já pagos na compra de patentes, a produção de vacinas pode ocorrer em muitos lugares do mundo e a um preço mais baixo. Muito provavelmente, supervisionar o processo de produção nos países em desenvolvimento exigirá cooperação internacional; Muitos países em desenvolvimento não terão capacidade regulatória para monitorar o processo de produção. Esse é um papel para organizações como o CEPI.

Observando um argumento comum contra a compra de patentes apresentado por muitos produtores farmacêuticos, sob os direitos de propriedade intelectual, o titular doaria a vacina gratuitamente ou venderia a um preço baixo para os países em desenvolvimento. Isso não é uma solução, pois o preço da vacina nos países mais ricos ainda será alto, mesmo que o custo marginal de fabricação seja baixo. Quando os medicamentos de alto preço são muito descontados para os países em desenvolvimento, o processo permite isenções de impostos para o detentor da PI. Os incentivos fiscais podem ser caros e abertos ao oportunismo.

Conclusão

O COVID-19 induziu uma situação única em que governos mais ricos podem oferecer incentivos para pesquisa e desenvolvimento em troca de acabar com os direitos de propriedade intelectual. A suspensão dos direitos de propriedade intelectual ajudará a baixar os preços de venda e, com a cooperação internacional, a fabricação de vacinas pode ser barata, sem sobrecarregar excessivamente os países mais ricos. A cooperação limitará a exclusão das populações mais pobres do mundo.

É necessária uma preparação muito avançada, independentemente de uma vacina eficaz ser realmente desenvolvida, pois a fabricação em escala será uma tarefa assustadora. O CEPI e o ACT Accelerator, que trabalham com as infraestruturas existentes da OMS, juntamente com outras organizações das Nações Unidas e o Banco Mundial, podem coordenar a preparação em vários níveis, inclusive nos próprios países. A dissociação entre a fabricação e o desenvolvimento desencadeará uma rápida expansão, além de garantir um preço mais baixo. Essa abordagem, que requer muita cooperação internacional, abre um caminho claro para garantir a disponibilidade da vacina tão necessária, uma vez desenvolvida.