A Coronacrise , uma crise de natureza e dimensão sem precedentes, tornou-se pauta de todos: dos parlamentos às mesas virtuais de amigos; dos jornais à intimidade dos lares - que hoje também se tornaram escola, trabalho e cujo acesso desigual revela uma drástica consequência dos abismos sociais do país. A pauta é inevitável. Não só pela magnitude e gravidade da crise em si - chegamos à mais de 312 mil mortos no mundo com expectativa de retração do PIB mundial de mais de 3%, ante à 0.01% de retração com a crise de 2008 - como também pela transformação completa que ela representou na organização social da vida em todo o globo. Ao mesmo tempo, agravou aquilo que há de mais antigo no capitalismo: as suas desigualdades.

Se nosso fórum de jovens economistas, o Desajuste - fundado coincidentemente logo antes da escalada da crise no Brasil - surgiu a partir de uma compreensão coletiva da escassez de espaços progressistas, qualificados e amplos de discussão sobre desigualdades e o papel do Estado diante delas; a crise impôs que este se tornasse ponto central de qualquer debate, pesquisa, análise e formulação. Uma avaliação sobre a crise, sobretudo sob a perspectiva de países periféricos, que ignore as desigualdades pelas quais ela se dissemina e se aprofunda será necessariamente incompleta e provavelmente incorreta.

A absoluta e necessária primazia da saúde da população sobre os demais aspectos da vida cotidiana, implica que os rumos da economia se tornem também pauta fundamental do debate público. Qual a melhor resposta no momento? Quais políticas estão sendo e quais deveriam ser adotadas? Como se financiam tais medidas? Qual o papel dos Estados no enfrentamento à pandemia? E, sendo a juventude o segmento que, inevitavelmente em meio ao caos do presente, precisa se preocupar com as perspectivas para o futuro, talvez o que mais nos angustie seja justamente qual mundo herdaremos no pós crise? Não à toa, há um interesse crescente dos jovens por temas econômicos, curiosos por respostas mas, sobretudo, afetados frontalmente pela crise. Uma geração disposta a compreender o momento e lutar para não ter o seu futuro comprometido pela ganância de um projeto excludente e a violência de um governo autoritário.

A possibilidade de contribuir para o Observatório da Fundação Perseu Abramo têm sido das experiências mais ricas que poderíamos ter durante o duro momento que vivemos. Acompanhar a crise diariamente, em sua dimensão internacional e nacional é um desafio emocional, mas, sem dúvida, um enorme aprendizado. A singularidade dos tempos tem exigido ousadia na formulação de políticas de contenção e enfrentamento. Temas que haviam sido excluídos dos manuais de economia voltaram a ter destaque no debate.

À revelia dos mais fundamentalistas, a realidade exigiu posturas tidas como fora da curva, e queiram os teóricos ou não, a prática continua sendo o critério da verdade. Elevação dos gastos públicos mostram o caráter ideológico do discurso de que o dinheiro havia acabado. A possibilidade em alguns países de emissão de moeda para financiamento da dívida abre um novo terreno para disputa política. A urgência da renda básica desperta, corretamente, ambições por um mundo mais civilizado e com menos desigualdades. A falta de insumos de saúde e a imposição de uma reconversão produtiva em diversos setores tornou moda o até então proibido debate sobre política industrial. A latente incapacidade do mercado de ser a tecnologia alocativa mais eficiente - como se preconizava até então - exige uma reavaliação honesta sobre o papel e o poder do Estado.

Diante de uma defesa já tão caricata de um Estado mínimo na economia, mas que se mantém máximo na repressão policial, despejos e encarceramento, defendemos um Estado para todos e do tamanho dos nossos desafios e necessidades. Que dê conta de combater as desigualdades e garantir acesso universal à saúde. Que organize uma sociedade de empregos e direitos, utilizando suas ferramentas a serviço da maioria. Que proteja a vida, garanta dignidade e apresente uma possibilidade de futuro melhor para uma juventude que hoje sofre com o desemprego e a repressão.

A pesquisa para o Observatório é, deste modo, fonte inesgotável de perguntas, mas também combustível necessário para que busquemos as respostas. O trabalho coletivo, diverso e desafiador, tem sido fonte de novas formulações. Se o contexto exige ousadia, a ousadia é também o que move a juventude.

A crise tornou latente a insustentabilidade social e ambiental do modo de vida atual. Escancarou as desigualdades do modelo econômico que também são aprofundadas nestes momentos. Nosso compromisso, acima de tudo, enquanto fórum de economia, é de legar às próximas gerações uma discussão econômica mais madura e menos excludente. Um espaço que seja de fato plural e que em sua pluralidade dê conta de abarcar toda a diversidade do nosso povo. Fabricar, na periferia do capitalismo, uma economia que dê conta de pensar por si e para si: com a antropofagia necessária das experiências globais, mas sempre referenciada a partir da complexa dialética do desenvolvimento(1).

Nota:

(1) Em referência ao livro homônimo de Celso Furtado (1964). Para uma discussão acerca de aspectos atuais desta obra para os desafios do presente ver estrutural com igualdade. F. Rugitsky (2020), “Luta de classes inibida? Furtado e a especificidade da estrutura social brasileira” (capítulo que será publicado em breve).

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Artigo do coletivo Desajuste - Economia Fora da Curva, colaboradores voluntários do Observatório. O título deste artigo faz referência, e homenagem, ao ensaio de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis, “Um mestre na periferia do capitalismo”.