A chanceler alemã Angela Merkel defendeu em pronunciamento ao parlamente alemão no dia 23 de abril as medidas que vêm sendo adotadas pelo Governo Federal da Alemanha, além de reforçar a necessidade de uma cooperação internacional e de um apoio aos países mais pobres para o combate à pandemia e a superação da crise, o contrário do que vem sendo vendido pelo governo de Jair Bolsonaro como solução para a crise no Brasil.
Leia abaixo trechos do pronunciamento, traduzidos por Claudia Cavalcanti.
Excerto do pronunciamento da Chanceler Angela Merkel ao parlamento alemão em 23/4/2020
Senhor Presidente! Caros colegas! Senhoras e senhores!
Estamos vivendo momentos extraordinariamente sérios. E todos nós, governo e parlamento, todo nosso país, estamos sendo colocados à prova como nunca antes, desde a Segunda Guerra Mundial, desde os anos da fundação da República Federal da Alemanha. Nada menos que a vida e a saúde do povo estão em jogo. Trata-se de coesão e solidariedade em nossa sociedade e na Europa.
Estou aqui, diante de vocês, como chanceler de um Governo Federal que, juntamente com os Estados federais, nas últimas semanas adotou medidas para as quais não existe um modelo histórico que possa nos orientar. Submetemos projetos de lei ao Parlamento, pedimos que aprovassem financiamentos em um montante que pura e simplesmente estava além de nossas expectativas, antes da pandemia da Covid-19. Gostaria de agradecer sinceramente o fato de, em circunstâncias difíceis, o Parlamento alemão, assim como o Conselho Federal, aliás, terem sido extremamente rápidos para discutirem e adotarem as medidas legais.
Há semanas, vivemos então com a pandemia. Cada um de nós precisou adaptar suas vidas às novas condições, seja na vida privada, seja na profissional. Cada um de nós pode relatar de que sente falta, o que é particularmente difícil. E entendo que esta vida sob condições da Covid-19 já nos parece a todos durar demais.
Ninguém gosta de ouvir, mas é a verdade: não estamos vivendo a fase final da pandemia, mas seu início, ainda. Teremos que conviver com esse vírus por muito tempo ainda. Evitar que o vírus, em algum momento, sobrecarregue nosso sistema de saúde e custe a morte de inúmeras pessoas continuará sendo a questão central para os políticos na Alemanha e na Europa, por muito tempo.
Estou bem ciente de como nos sobrecarregam as restrições – individualmente, mas também para a sociedade. Essa pandemia é um desafio à democracia, pois restringe exatamente nossos direitos e necessidades existenciais – tanto os dos adultos quanto os das crianças. Tal situação só é aceitável e suportável se as razões das restrições forem transparentes e compreensíveis, se a crítica e a contradição não só forem permitidas, mas exigidas e escutadas – mutuamente. É aqui que a imprensa livre ajuda.
Ajuda também nossa organização federalizada. Assim como a confiança mútua experimentada nas últimas semanas aqui, no Parlamento, e em todo o país. É admirável como naturalmente as cidadãs e os cidadãos se defenderam e se restringiram como cidadãs e cidadãos, em prol dos outros.
Asseguro-lhes que quase nenhuma outra decisão foi tão difícil para mim, durante meu mandato de chanceler, quanto as restrições às liberdades pessoais.
Também me afeta quando as crianças simplesmente não podem encontrar seus amigos e sentem tanta falta disso. Assim como quando as pessoas fundamentalmente só podem caminhar com uma única pessoa fora de suas casas, sempre tendo que atentar para a distância mínima, tão importante.
Também me afeta particularmente o que têm de suportar as pessoas que vivem em instituições para idosos e para deficientes. Onde a solidão de todo modo pode se tornar um problema, ela é ainda mais aguda em tempos de pandemias e sem visitas. É cruel ninguém poder estar lá, exceto os cuidadores que fazem o seu melhor, quando as forças se esvaem e uma vida chega ao fim.
Nunca esqueçamos essas pessoas e o isolamento temporário em que têm que viver. Essas pessoas de 80, 90 anos de idade construíram nosso país. A prosperidade em que vivemos foi fundada por eles.
Eles são a Alemanha tanto quanto nós, seus filhos e netos. E lutamos contra o vírus por eles, também. Portanto, estou convencida de que restrições tão severas são necessárias para sobrevivermos a esta crise dramática como uma comunidade e para protegermos o que nossa Constituição coloca no centro de nossas ações: a vida e a dignidade de cada um.
Com o rigor com nós mesmos, a disciplina e a paciência das últimas semanas, temos desacelerado a propagação do vírus. Isto soa algo menor, mas é imensamente valioso. Ganhamos tempo e utilizamos bem este valioso tempo para fortalecer ainda mais nosso sistema de saúde.
As unidades de terapia intensiva são o eixo de todos os esforços na área médica. É nelas que o destino das pessoas mais gravemente afetadas pela Covid-19 é decidido. Todos nós conhecemos os terríveis relatos de hospitais de alguns países, simplesmente invadidos pelo vírus durante algumas semanas. Que isso não pode acontecer é o objetivo simples, mas ambicioso, do governo alemão. Gostaria de agradecer ao nosso ministro da Saúde, Jens Spahn, mas também aos secretários de Saúde dos Estados, que estão trabalhando incansavelmente em prol deste objetivo – e com sucesso sensível.
Temos aumentado significativamente o número de leitos com respiradores. Com a Lei de Auxílio Hospitalar da Covid-19, garantimos que os hospitais possam desenvolver as capacidades adicionais de terapia intensiva. Assim, podemos afirmar agora: nosso sistema de saúde tem resistido até agora ao teste. Cada paciente da Covid-19 recebe o melhor tratamento humano possível, mesmo nos casos mais graves.
Mais do que todas as medidas governamentais, devemos isso ao trabalho sacrificial de médicos, enfermeiras e paramédicos, de tantas pessoas que, com sua diligência e energia, compõem o que muitas vezes chamamos simplesmente de "nosso sistema de saúde".
Agradecemos a eles com aplausos, e também gostaria de incluir nesses agradecimentos às soldadas e aos soldados das Forças Armadas alemãs, que ajudam em muitos lugares.
O serviço público de saúde tem um papel no combate à pandemia que talvez seja menos notado pelo público, mas é igualmente decisivo. Existem quase 400 postos de saúde locais. Para que possamos controlar e conter a incidência da infecção nos próximos meses, precisamos desses postos em sua melhor forma, e digo: melhor do que já eram antes da pandemia.
É por isso que o Governo Federal e os Estados acabam de fechar um acordo para fornecer mais pessoal a esses postos, para que possam, por exemplo, cumprir efetivamente essa tarefa de extrema importância – sim, digo até decisiva –, a de rastrear os contatos de uma pessoa infectada. O Instituto Robert Koch também criará 105 equipes móveis de estudantes, conhecidos como escoteiros de contenção, que poderão ser destacados onde houver uma necessidade particular.
Desde o início, o Governo Federal também tem se dedicado à questão dos equipamentos de proteção pessoal. O fornecimento desses itens, especialmente de máscaras de proteção médica, tornou-se logo uma das tarefas centrais, não só para nós, mas para todo o mundo. Porque sem médicas e médicos e enfermeiras e enfermeiros saudáveis, mesmo os leitos de terapia intensiva e respiradores disponíveis serão inúteis.
A situação nos mercados mundiais para esse material é tensa. As práticas comerciais nas primeiras semanas da pandemia foram, digamos, adversas. É por isso que o Governo Federal, mesmo não sendo responsável, nos termos da Lei de Proteção à Infecção, decidiu centralizar a coordenação para aquisição de equipamentos de proteção pessoal, e depois repassar os produtos para os Estados da federação. Gostaria também de agradecer às empresas que nos ajudaram com sua experiência nesse quesito.
A pandemia nos ensina: não é bom que os equipamentos de proteção sejam adquiridos exclusivamente de países distantes. Máscaras que custam alguns centavos podem se tornar um fator estratégico na pandemia. A República Federal da Alemanha e a União Europeia estão, portanto, trabalhando para se tornarem mais independentes de outros países nessa área. Estamos, portanto, trabalhando para expandir a capacidade de produção de equipamentos de proteção na Alemanha e Europa.
Se nos perguntamos o que nos beneficiou, nesta primeira fase da propagação do vírus, foi – além do número relativamente grande de leitos de terapia intensiva – a alta capacidade de testes e a densa rede de laboratórios. Os especialistas nos dizem: testes, testes, testes. Assim temos um quadro melhor da epidemia na Alemanha, mais clareza sobre o número de infecções não detectadas, além de permitir que os enfermeiros façam testes com mais frequência, para reduzir o risco de infecção em hospitais e residências. É por isso que já expandimos continuamente nossas capacidades para testes abrangentes e continuaremos a fazê-lo.
No entanto, provavelmente só conseguiremos acabar com a pandemia da Covid-19 com uma vacina, ao menos de acordo com tudo o que sabemos sobre o vírus hoje. Pesquisadores estão em busca dela em vários países do mundo. O Governo Federal está fornecendo apoio financeiro para que a Alemanha, sendo um local de pesquisa, também possa desempenhar seu papel. Mas também apoiamos iniciativas internacionais, como a iniciativa da CEPI [Confederation of European Paper Industries].
O Governo Federal também forneceu financiamento substancial em curto prazo para a pesquisa de medicamentos e para uma nova rede nacional de pesquisa sobre a Covid-19. Isso ajuda pesquisadores e médicos em todos os hospitais universitários alemães a trabalharem lado a lado nessa tarefa. Vamos precisar de muitos mais estudos, e no futuro também vamos precisar de estudos de anticorpos. Para isso também estamos bem equipados.
Mas a ciência nunca é nacional. A ciência serve à humanidade. Portanto, é óbvio dizer que quando medicamentos ou uma vacina são inventados, testados, aprovados e prontos para uso, eles devem estar disponíveis e acessíveis para o mundo inteiro.
Um vírus que se propaga em quase todos os países só pode ser contido e reprimido com a cooperação de todos os países. Para o Governo Federal, a cooperação internacional contra o vírus é extremamente importante. Estamos em coordenação no âmbito da União Europeia, assim como dentro do G7 e G20.
Com a decisão de adiar todos os pagamentos de juros e resgates para os 77 países mais pobres do mundo, este ano, conseguimos aliviar um pouco a pressão desses grupos de países em dificuldades. Mas é claro que não possível ficar apenas com esse apoio. Para o Governo Federal, a cooperação com os países africanos é sempre uma prioridade, e na crise da Covid-19 temos que fortalecê-la.
Não só na África, mas especialmente onde o trabalho da OMS é muito importante. Para governo alemão, ressalto, a OMS é um parceiro indispensável e a apoiamos em sua missão.
Senhoras e senhores, se olharmos os últimos números do Instituto Robert Koch, aqui na Alemanha, os indicadores mostram que eles estão se desenvolvendo na direção certa, por exemplo, com uma taxa de infecção mais lenta, mais pacientes em recuperação, atualmente, do que novos, diariamente. Este é um sucesso intermediário. Mas justamente porque os números dão esperança, sinto-me obrigada a dizer que este resultado provisório é frágil. Estamos nos movendo em gelo fino, ou se poderia dizer: no gelo mais fino.
A situação é enganosa, e estamos longe de ter ultrapassado o perigo, pois devemos ter sempre em mente o vírus ao combatê-lo: os números de hoje refletem os níveis de infecção de 10 a 12 dias atrás. Os números de hoje, portanto, não nos dizem qual será a situação daqui a uma semana ou duas, se nesse meio tempo tivermos permitido um aumento significativo de novos contatos.
Caros colegas, gostaria de aproveitar esta oportunidade para explicar mais detalhadamente o que me preocupa. É claro que as decisões políticas são sempre parte de um processo contínuo de ponderação pelo melhor do conhecimento e consciência. Isso também se aplica às decisões sobre o combate à pandemia, que é naturalmente da maior importância para o bem-estar de todos em nosso país.
Neste exercício de ponderação tão importante, que ninguém, nem no nível federal nem nos Estados, considera fácil – bem sei disso –, estou convencida da luta contra o coronavírus, se mostrarmos a maior perseverança e disciplina possíveis, especialmente no início dessa pandemia, então seremos capazes de desenvolver novamente a vida econômica, social e pública de forma mais rápida e sustentável do que se – especialmente no início – nos acalmarmos muito rapidamente em uma falsa sensação de segurança, tendo como pano de fundo números encorajadores de infecção.
Assim, se formos disciplinados no início, mais rapidamente poderemos voltar a ter saúde e economia, saúde e vida social em igual medida. Mesmo assim, o vírus ainda estará lá; mas com concentração e perseverança – especialmente no início –, podemos evitar ter que passar de um isolamento para o outro, ou ter que isolar grupos de pessoas de todos os outros durante meses a fio e ser confrontados com condições terríveis em nossos hospitais, como infelizmente tem sido o caso em alguns outros países. Quanto mais persistente e consistentemente suportarmos as restrições no início da pandemia e, assim, empurrarmos para baixo o nível de infecções, mais servimos não só à saúde das pessoas, mas também à vida econômica e social, porque assim estaremos em condição de identificar, de forma consistente, toda cadeia de infecção e controlar o vírus. É esta convicção que orienta minhas ações.
Por isso, lhe digo abertamente: apoio plenamente as decisões tomadas pelos governos federal e estaduais, na quarta-feira da semana passada. No entanto, estou preocupada com a sua implementação desde então.
Em algumas partes me parece muito rápido, para não dizer rápido demais. E se digo isso, absolutamente convicta, isso evidentemente não muda meu respeito à soberania dos Estados da Federação, que lhes legitima em muitas questões, conforme nossa Constituição e, naturalmente, a Lei de Proteção contra Infecções. Nosso sistema federativo é forte. Para evitar qualquer mal-entendido, eu queria deixar isso claro mais uma vez.
No entanto, tomo como meu dever adverti-los para não confiar justamente no princípio da esperança, se não estiver convencida disso. É com isso em mente que eu lembraria aos primeiros-ministros e a esta Câmara: não devemos agora arriscar o que foi alcançado e arriscar um retrocesso!
Seria uma lamentável se a esperança prematura fosse nos punir no final. Vamos todos permanecer sábios e cautelosos no caminho para a próxima fase da pandemia. É um longo caminho, e não podemos ficar sem energia e sem ar prematuramente.
Claro é que, por enquanto, não podemos voltar ao cotidiano que conhecíamos antes do coronavírus. O dia a dia vai parecer diferente, por enquanto, mesmo que os modelos de rastreamento digital, atualmente em discussão, possam ser utilizados. As rígidas regras de distância, as prescrições de higiene, até mesmo as restrições de contato continuarão a fazer parte dela. Isto diz respeito, por exemplo, à abertura de escolas e creches. Os Estados estão agora em processo de implementação ou preparação para a abertura gradual de escolas. Isto exigirá uma muita energia criativa. Gostaria de agradecer a todos aqueles que estão atualmente trabalhando nisso. Sei que são muitos, muitos.
Falei no início da maior prova de fogo desde os primeiros dias da República Federal da Alemanha. Infelizmente, isto também vale para a economia. Ainda não podemos dizer com segurança quão profundas serão as perdas no final do ano e quanto tempo elas durarão e quando a recuperação começará, pois isso, é claro, também depende do nosso sucesso no enfrentamento do vírus.
A pandemia nos atingiu em uma época de lares saudáveis e de fortes reservas. Anos de políticas sólidas estão nos ajudando. Agora, trata-se de apoiar nossa economia e abrir um escudo protetor para as trabalhadoras e os trabalhadores. Foram contabilizados milhões de pedidos para diversos programas de ajuda; milhões de pessoas e empresas já receberam dinheiro. Conseguimos aprovar todas essas medidas legislativas rapidamente e com uma maioria esmagadora. Nossa democracia parlamentar é forte, eficiente e, em tempos de crise, extremamente rápida.
Ontem à noite, no comitê de coalizão, decidimos mais uma vez sobre outras medidas, sobre as quais vocês foram informados. No entanto, todos os nossos esforços no âmbito nacional só podem ter êxito se também tivermos êxito juntos, na Europa. Muitas vezes vocês já me ouviram dizer nesta Casa: a Alemanha só poderá prosperar a longo prazo se a Europa também prosperar. Levo essa frase muito, muito a sério, hoje.
Como isso se traduz, na prática? Por exemplo, já tratamos mais de 200 pacientes da Itália, França ou Holanda em UTIs alemãs. Fornecemos material médico para a Itália e Espanha, por exemplo, e trouxemos de volta para casa milhares de europeias e europeus detidos em todo o mundo, além de nossos próprios cidadãos – por isso, a propósito, gostaríamos de agradecer a todas as funcionárias e funcionários do Ministério das Relações Exteriores Federal. Vocês não acreditariam em quantos alemães estão fora de suas fronteiras nacionais; mas nós também fomos capazes de ajudar muitos outros europeus. Obrigada por isso.
[...]
Esta pandemia afeta a todos, mas não a todos igualmente. Se não tivermos cuidado, servirá de pretexto para todos aqueles que estão tentando dividir a sociedade. A Europa não é Europa se ela também não se vê a si mesma como Europa.
[...]
E assim, no final do meu discurso, volto à ideia de coesão. O que se aplica na Europa também é o mais importante para nós, na Alemanha. Por mais paradoxal que pareça, nas semanas em que as regras de conduta nos afastaram muito e em que a distância, em vez da proximidade, é necessária, nos mantivemos unidos e, com união, conseguimos coletivamente retardar o vírus em sua trajetória pela Alemanha e Europa. Nenhum governo pode simplesmente ordenar isso. No final das contas, um governo só pode esperar por algo assim. Isso só é possível se os cidadãos fizerem algo pelos seus semelhantes, pelo seu país – se quiserem: pelo grande conjunto.
Isso me faz infinitamente grata, e espero que continuemos a passar por esse próximo período da mesma forma. Ainda vamos viver um tempo muito difícil. Mas, juntos – disso estou convencida, depois destas primeiras semanas da pandemia –, conseguiremos vencer esse gigantesco desafio: juntos como sociedade, juntos na Europa.
Muito obrigada.