Saturnino Braga: ‘A política suga a felicidade’
Talvez não haja no Brasil um político de carreira tão cheia de altos e baixos quanto Roberto Saturnino Braga. Eleito deputado federal em 1962, acabaria afastado da política pela ditadura até 1974, quando se elegeu senador. Campeão de votos para a prefeitura do Rio de Janeiro em 1985, primeiro administrador da cidade pós-regime militar, sairia sob a pecha de “incompetente”, após declarar a falência do município. Só voltaria ao cenário em 1996, como vereador.
Talvez não haja no Brasil um político de carreira tão cheia de altos e baixos quanto Roberto Saturnino Braga. Eleito deputado federal em 1962, acabaria afastado da política pela ditadura até 1974, quando se elegeu senador. Campeão de votos para a prefeitura do Rio de Janeiro em 1985, primeiro administrador da cidade pós-regime militar, sairia sob a pecha de “incompetente”, após declarar a falência do município. Só voltaria ao cenário em 1996, como vereador. Em 2006, após oito anos no Senado, decidiria abandonar a política de vez para se dedicar aos livros.
“A literatura é mais compatível com a felicidade do que a política”, defende. Aos 80 anos recém-completados, Braga está lançando pela Record o romance Cartas do Rio, trama intimista com tintas autobiográficas, espécie de retrato dos casais de sua geração. Escapará à crítica, desta vez literária?
Por que o senhor abandonou a política?
A partir de 2004, não aguentava mais aquelas sessões do Senado. Eram extremamente chatas, idiotas. O nível baixou muito. Da primeira vez que fui senador, entraram também o Paulo Brossard, o Marcos Freire, o Itamar Franco… Era uma geração de senadores novos, interessantes, porque foi a primeira eleição em que a sociedade brasileira mostrou que queria praticar política outra vez. Dos 22 estados que havia, o candidato do MDB, da oposição, ganhou em 16. Minha melhor lembrança do Senado são aqueles anos.
Já que estava farto, por que não cumpriu a promessa feita ao PDT de dar metade do mandato para o Carlos Lupi?
Realmente, assumi o compromisso de dar para ele não metade, mas os últimos dois anos do mandato. Não foi possível porque o pessoal do PDT tinha ido para a oposição e o PT não quis que eu desse. Por mim teria dado, estava absolutamente saturado. Quando terminou, dei graças a Deus e falei: nunca mais.
Mas as pessoas falam tanto que o Senado parece o céu, é até azul…
Que céu o quê? Aquilo é muito chato. Bom, dizem que o céu também é chato, não sei.
Se fosse escolher hoje, teria preferido ser escritor a político?
Sim. A política é excitante, fascinante, demanda você por inteiro, mas a literatura é mais saudável, compatível com a felicidade. Essa é que é a verdade: a política suga a felicidade. Você está sendo sempre observado, fotografado, comentado, julgado. Não desenvolve seu próprio ser.
Tem gente que adora isso, não é?
Tem, mas é uma falsa adoração, da fama, da projeção. Sobre o ponto de vista humano, do ser, é muito cerceante.
Por que preferiu escrever ficção e não memórias?
Não sei. Até podia, tenho muito material para escrever memórias. Mas gosto mais de inventar do que de contar.
O narrador de seu romance diz que quer escrever a história dos vencidos, não dos vencedores. O senhor se considera um vencido na política?
Sou um vencido, sempre fui. Só passei a ser vencedor a partir do Lula, em 2002.
O senhor se arrepende de ter decretado a falência do Rio?
Naquelas circunstâncias, não. Quando assumi, a prefeitura estava falida. Não fiz mais do que decretar uma verdade que estava escondida. O Rio era estruturalmente falido até que a Constituição de 1988 restabeleceu as receitas municipais, o que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1989, justamente quando saí. Aí disseram que o Marcelo Alencar tirou o Rio da falência. Claro, as receitas do Rio triplicaram em valor real. Mas eu saí com a pecha de incompetente.
Millôr Fernandes chegou a dizer que o senhor “desmoralizou a honradez”…
A experiência na prefeitura me foi uma paulada na cabeça, não sei como não tive um infarto, acho que porque meu ser é muito otimista. Mas o que passei, o que escutei, o que li, foi terrível. Sofri o chamado linchamento político, mas continuei saindo na rua. Ninguém falava, um ou outro jogava uma piadinha, mas, pelo olhar das pessoas, a severidade, eu percebia o julgamento. De incompetência, do cara que tinha criado uma esperança enorme e jogou tudo pelo alto. Isso eu senti nitidamente, o desprezo das pessoas.
Seu narrador arrepende-se de não ter distribuído uns sopapos, de ter sido civilizado demais. O senhor também?
Também. Fui a vida toda muito civilizado, essa é uma marca que carrego e não gosto dela.
A certa altura do livro, o senhor fala que a derrocada do socialismo foi causa de depressão para sua geração.
Nem queira saber. Minha geração, na juventude, foi fascinada pela União Soviética. Era a novidade no mundo, tinha resolvido problemas materiais fundamentais do ser humano. Um país- de mujiques analfabetos se transformou numa potência e ainda teve força para parar a maior máquina de guerra que tinha sido montada, a dos nazistas. Também foi o momento em que li O Capital. Para um engenheiro como eu ler O -Capital foi como um míope que colocasse óculos… Quem não era comunista na minha geração não tinha sensibilidade moral, política, social. Na primeira eleição no Rio, depois de 1946, a maior bancada de vereadores era do PCB, o senador eleito era Luiz Carlos Prestes. Estava todo mundo fascinado pelo comunismo. Depois veio a desilusão.
Com o stalinismo?
Stalin era louco, um neurótico. Mas a desilusão com ele, apesar de grande, foi digerível. Pensávamos que Stalin podia ser ruim, mas o sistema era o melhor do mundo. Quando o sistema ruiu pela incompetência, ficamos perdidos: não há o que colocar no lugar. Digo-me socialista ainda, e sigo dizendo que a evolução política vai chegar ao socialismo, mas não pela visão do marxismo-leninismo da conquista pela luta armada.
O senhor nunca acreditou na luta armada. Por quê?
Sempre tive aversão ao sistema de força, à ditadura. E a luta armada tem de implantar uma ditadura, não tem jeito. Se você vence uma revolução, tem de implantar uma ditadura para mudar o sistema. Essa ditadura pode ser muito boa até, no início, mas toda ditadura se perpetua e se degrada.
O senhor confessa no livro que teve medo de entrar na luta armada.
Sim. Muitos amigos meus entraram, foram torturados, o Rubens Paiva morreu. E eu ficava pensando que meu nome devia estar nas anotações deles… Toda noite, quando escutava bater uma porta mais forte, pensava: será que os caras vieram me pegar? Porque eu não tinha envolvimento direto, mas tinha um envolvimento indireto.
O medo é algo que no mundo masculi-no não se admite.
É difícil de admitir, mas para si mesmo, tem de admitir. Eu tinha medo, sim.
Seu romance também é o retrato de uma geração psicanalisada, não é?
Talvez a primeira geração psicanalisada no Brasil. As duas marcas da minha geração foram o socialismo e a psicanálise. Lembro quando se começou a falar no casal Kemper (os alemães Kattrina e Werner chegaram ao País em 1948 e fundaram a primeira clínica de psicanálise do Brasil). Eu tinha vontade- de experimentar, mas achava que ia abrir minha caixa de segredos… Minha mulher, Eliana, sempre foi sujeita a depressões e foi fazer análise. Para quê? Nossa vida azedou muito… Claro, a mulher naquele tempo era de uma submissão total. Foi fazer análise, começou uma série de atritos grandes, confrontou-se com a mãe, com o pai, não só comigo. Mas a gente aguentou e foi ótimo ter aguentado.
No livro, a Barra da Tijuca aparece como o “bairro da sacanagem”, para onde iam os adúlteros…
Sim, era um bairro clandestino. Você dizia que ia à Barra e todo mundo: “Foi fazer alguma sacanagem”. Não tinha o túnel ainda, ia pela estradinha do Joá e tinha meia dúzia de boates e motéis. Praticamente, ninguém morava na Barra.
Hoje como o senhor vê a Barra?
Não gosto da Barra. O Rio para mim acaba no Leblon, no máximo, em São Conrado. Quando era prefeito, em 1987, houve uma grande campanha de separação da Barra do Rio. Combati muito e acabei ganhando, não houve a emancipação. Hoje diria que errei. A Barra é outra cidade, outra vida, não tem nada a ver com o Rio. Deveriam emancipar a Barra e Jacarepaguá e também Bangu, Campo Grande e Santa Cruz.
Leonel Brizola aparece rapidamente em seu livro como um paquerador. Ele era mesmo?
Era, mas no velho estilo, discreto, muito respeitador. Tinha aquela coisa galante, no estilo gaúcho.
Vocês brigavam muito, não?
Nunca fomos amigos. Brizola era um cara difícil, não sei se teve alguma amizade de igual para igual com alguém. Talvez com Darcy Ribeiro. Brizola era o chefe. Tenho o maior respeito, foi um grande brasileiro, honrado, que se interessava pela sorte do povo genuinamente. Mas foi o último da geração dos positivistas gaúchos, que veio de Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Getúlio Vargas. O positivismo do Augusto Comte prega que quem tem o saber, a ciência, sabe o que é bom para o povo melhor do que o próprio povo. Getúlio foi o maior estadista do País, mas nunca foi um democrata. Assim era Brizola, fingia, mas não era um democrata. Era um caudilho, embora bem-intencionado. Lula, não. A eleição de um torneiro mecânico foi a síntese do antipositivismo, mostrou que o povo é que sabe o que é bom para ele.
O senhor aprova as UPPs?
Sim, elas eram extremamente necessárias. Claro que têm de ser complementadas. O primeiro ato era ocupar e pacificar (as favelas), mas tem de se seguir o segundo e o terceiro, que são os serviços públicos e a integração econômica daqueles bairros.
Após 23 anos, o Rio continua falido?
Não. O Rio chegou ao fundo do poço, mas já passou. Estão surgindo megaprojetos econômicos aqui com os quais a cidade e o estado nunca sonharam. O polo petroquímico de Itaboraí, siderúrgicas, o porto do Eike Batista no norte fluminense, coisas gigantescas que vão alavancar a economia. O Rio está numa fase ascendente que vai durar algumas décadas.